A abstracção como estilo e como estética é o título da introdução ao catálogo da Exposição “Arte Partilhada, Millennium BCP, Abstracção”, da autoria da Professora de História de Arte, Raquel Henriques da Silva, que pela sua pertinência transcreverei aqui neste blogue.
“Algo teve inicio quando Kandinsky, ao entrar no seu atelier ao fim do dia, ficou surpreendido por ver uma tela «de indescritível e incandescente beleza» que não reconheceu sendo sua porque tinha sido pendurada de lado”
Michel Seuphor, La peinture abstraite. Sa genèse, son expansion.
Paris: Flammarion, 1964, p.11
O texto que escolhi para epígrafe é a narrativa mítica do nascimento da arte abstracta, através da evocação de Seuphor, um dos seus primeiros historiadores. Como é próprio dos mitos, a descoberta surgiu por acaso determinado, posta diante do olhar do artista, sendo o revelador uma pintura que ele próprio executara mas que não podia reconhecer, pela simples razão de que, pendurada incorrectamente, ela iludia o motivo (uma paisagem?) para enaltecer a “indescritível e incandescente beleza” das cores e das formas libertas da exigência de significarem outra coisa. Este momento fundador determinou o pintor a transpor a abstracção do mito para a história, realizando uma aguarela deliberadamente abstracta. Estava-se em 1909 e os artistas de vanguarda viviam a embriaguez de “tudo é permitido”, segundo a expressão do mesmo pintor (Seuphor: 12). De facto a reivindicação do fim da tirania do significado vinha de longe, preparando esse tempo revolucionário (a época das primeiras vanguardas, como lhe hão-de chamar os historiadores) que viu nascer o cubismo, o fauvismo, o futurismo, o orfismo, o suprematismo e, logo em 1913, os primeiros ready made Marcel Duchamp. O sistema das artes, que o século XIX questionara num crescendo de afirmação de subjectividades, colapsava perante uma energia criativa extraordinária que envolvia os artistas, os seus críticos e um número escasso mas aventuroso de coleccionadores. Esse tempo fundador que depressa adquiriu dimensão aurífica, só semelhante à da cultura pictórica italiana entre os séculos XV e XVI, foi vivido como um imperativo. Segundo Henri Matisse, “nós nascemos com a sensibilidade de uma época de civilização. Não somos mestres da nossa produção, ela é-nos imposta” (Seuphor: 9). Para clarificar melhor, vale a pena citar o início da narrativa do autor que vimos seguindo:
“Este século de invenções em cadeia, de crises sociais, de retraimento precipitado do mundo suscitou entre os seus filhos uma arte à sua imagem: revolucionária, inesperada; uma forma de arte ora irritante e agressiva, ora de aparência inofensiva e vazia de sentido – porque é assim, ainda hoje, o primeiro aspecto da pintura abstracta para o homem da rua que lança, casualmente, um olhar distraído para o interior das galerias de arte.” (Seuphor: 7)
Cinquenta anos depois de Seuphor, nenhum historiador de arte negará esse carácter peculiar da arte moderna nas primeiras décadas do século XX: a sua capacidade para espelhar as mutações da história humana. Mas, avaliando com mais cepticismo as revoluções técnicas, sociais e políticas (que não criaram um mundo mais justo, antes geraram uma escalada inaudita da guerra), estamos hoje em condições de considerar que as revoluções na arte, e na cultura em geral, serão talvez a mais prestigiada herança que a Europa de 1900 legou ao mundo. E não só pelas obras-primas, que as concretizam, mas pela reivindicação de liberdade individual e de direito ao sonho que as impuseram, Este esplendor com que a arte se ergue das histórias mortas, representando-as com imortal energia, não o encontramos apenas na Europa de 1900: Florença dos Médici, para restringir a situações consabidas do nosso espaço de pertença.
Na sucessão dos “ismos” que, desde finais do século XVIII, com o Romantismo, marca o advento da modernidade, o Abstraccionismo foi, para gerações de artistas, uma espécie de cumprimento de uma escalada quase natural. Do cruzamento fecundo entre a afirmação do direito do pintor escolher os temas do seu trabalho (liberto da autoridade, antes imperativa, do palácio e da igreja) e a consciência, também técnica e científica, de que o sistema pictórico clássico fora uma convenção idealizada, surgirão rupturas imperativas: a realidade não era um dispositivo de passividades que o artista diligente captava, mas um permanente construído, captável, segundo o naturalismo e o impressionismo, pela velocidade do registo, a valorização do espaço, o trabalho em série, a decomposição externa das possibilidades da cor. Destruídos e sucessivamente recriados, os motivos da pintura (também sob o impacto crescente da fotografia) serão, por volta de 1880, cada vez mais motivos picturais que as particularidades do fauvismo, do expressionismo e do cubismo particularmente exercitaram. A abstracção nasceu pela intensificação deste espírito experimentalista e do confronto de sensibilidades e possibilidades, como ponto de chegada natural do enfraquecimento das iconografias e do exercício académico da profissão. Será assim que Kandinsky poeticamente a afirma, nesse extraordinário livro intitulado Do Espiritual na Arte, publicado em 1910:
“Para o artista criador que quer e que deve exprimir o seu universo interior, a imitação das coisas da natureza, ainda que bem sucedida, não pode ser um fim em si mesma. E ele invejava a facilidade com a que a mais imaterial das artes, a música, o consegue. Compreende-se assim que o artista se volte para ela e que se esforce por descobrir e aplicar processos similares. Daí, a existência em pintura da actual procura do ritmo, da construção abstracta, matemática e também do valor que hoje em dia se atribui à repetição dos tons coloridos, ao dinamismo da cor. Emancipada da natureza como é, a música, para se exprimir, não tem contrário, na hora actual, ainda se encontra dependente desse processo. A sua função é ainda analisar os seus meios e formas, aprender a conhecê-los, como a música, por seu lado, fez desde há muito, e esforça-se por utilizá-los como objectivos exclusivamente picturais, integrando-se nas suas criações”.
Além de Kandinsky e mantendo-nos na esplendorosa cultura alemã vinda do séc. XIX, vale a pena recordar que também a história da arte contribuiu para a valorização da expressão abstracta, Basta evocar a obra de Alois Riegel (1838-1903), que estudou a produção artística da época romana tardia, distinguindo-a do classicismo, pelo seu pendor para a abstracção decorativa, em detrimento da representação do humano idealizado. É neste contexto que aquele historiador propõe o conceito de Kunstwollen, “a vontade artística” ou “a vontade de arte”, analisável ao nível da criação anónima, abarcando e transbordando a vontade individual. Pouco depois, outro historiador da arte, Wilhelm Worringer (1881-1965), abordará questões idênticas em Abstraction et Einfublung (1907), conceito este que significa “comunicação intuitiva com o mundo”, verificável em todos os estádios iniciais das diversas épocas artísticas.
O que esta nova história da arte trata – afastando-se das correntes positivistas ainda dominantes – é de uma dissolução de artisticidade que, afinal, não se restringe aos períodos de grande esplendor estilístico, antes aparece como consubstancial à vida subjectiva e à vida social, relacionada com geografias e histórias precisas. Este reconhecimento da amplidão da vontade e da capacidade artística é um dos aspectos mais interessantes da época: nas academias, desdobrem-se e valorizam-se os períodos de decadência, ao mesmo tempo que se estudam as artisticidades dos “povos primitivos” e das comunidades populares europeias. Simultaneamente, o novo domínio científico da psicologia irá revelar a importância da arte das crianças, dos doentes e dos loucos, pesquisas relacionadas também com as teorias gestaltistas da visão.
Sendo verdade que não há sempre articulações directas entre o trabalho da investigação e o dos artistas, é inquestionável que, nesses anos do início do séc. XX, os cruzamentos se fizeram de diversos modos, contribuindo para democratizar a ideia da arte e os seus desempenhos e para consolidar a sua importância na vivência individual mas também a todos os níveis da existência social.
Os artistas fundadores da abstracção foram particularmente sensíveis ao alargamento do campo artístico. Mais do que outros movimentos vanguardistas de 1900 (do cubismo, ao fauvismo e ao futurismo) Kandinsky, Mondrian ou Malevitch acreditaram, nas fases iniciais das suas carreiras, que estavam a criar uma arte nova que, apesar de ser admirada por grupos muitos restritos, se destinava, a médio prazo, a democratizar a produção e consumo da arte.
Este é o contexto que explica a articulação da pesquisa pictórica abstracta com movimentos artísticos que envolvem a arquitectura moderna e o nascimento do design, no caso de Mondrian, com o movimento holandês De Stijl; no caso de Kandinsky, com a Bauhaus alemã. Quanto a Malevitch, sabe-se quanto o seu abstraccionismo radical, designado Suprematismo, antecedeu os valores utópicos da Revolução Soviética de 1917, mas neles se integrará, situação de curta duração que depressa foi condenada pelo totalitarismo do Estado e pela sua defesa do realismo socialista. Pode ainda recordar-se que os fundadores da Abstracção, especialmente Mondrian, se interessaram profundamente pela essência do religioso que determinará o universo, numa via espiritualista de desdém pelas artes miméticas e de afirmação dos princípios da filosofia platónica.
A partir de 1918, o clima exasperado e expectante do final da Primeira Guerra, a emergência do Dadaísmo e da organização em movimento do Surrealismo tornam mais complexa a análise da produção artística de vanguarda europeia e, crescentemente, americana (do Norte e do Sul). Muitos artistas, vindos de formações académicas e culturais diversas, se cruzam, misturando, em doses subjectivas, os adquiridos de vinte anos de intensa criação. Progressivamente, a Abstracção tornar-se-á um dos movimentos históricos da vanguarda, ora reivindicado como estilística exclusivista, ora utilizado como poética inter-relacionada com outras. Os pintores que se consideram abstractos têm, à partida, duas matrizes estilísticas e estéticas de referência: o abstraccionismo geométrico, proposto por Mondrian e Malevitch, ou o abstraccionismo lírico de Kandinsky. Este evoluirá para práticas de contornos difusos, como gestualismo, o tachisme e a action painting de Pollock, figura referencial da arte americana dos anos quarenta que, na sua juventude, fora intensamente influenciado pelo realismo mágico e o surrealismo de Orozco. Quanto ao abstraccionismo geométrico, ele articula-se, desde o meio do século, com a Op Art e, com diversos influxos alheios, com o arranque do Conceptualismo.
Numa ampla diversidade interna, o Abstraccionismo é, por volta de 1950, uma das práticas mais internacionalizadas da arte contemporânea, centrado em dois focos irradiadores, Paris e Nova York, mas contando com relevantes escolas ou personalidades em todos os países. Mas não cumpriu o “fim da arte” sonhado pelos jovens Mondrian e Kandinsky, vendo-se permanentemente confrontado com as artes da realidade, imbuídas da dimensão fantasmática do surrealismo, das experiências dos Novos Realismos ou da energia urbana da nascente Pop Art.
Para encerrar esta sintética reflexão sobre a eclosão da arte abstracta, citarei um grande e popular historiador da arte, especialista de inquestionáveis épocas nobres (o Renascimento, por exemplo) mas que dedicou muito do seu trabalho a motivar os seus alunos e leitores para o facto de que a arte não está apenas nos museus e não é feita apenas por grandes mestres, antes nos é consubstancial, condição mesma da nossa existência individual e colectiva enquanto humanidade. Refiro-me a Ernst Gombrich (1909-2001), em texto de 1950:
“Muita gente que não tem paciência para o que chama “estas tretas ultra-modernas”ficaria surpreendida se soubesse como muitas delas já entraram na nossa vida, e ajudaram a modelar o nosso gosto e as nossas preferências. Formas e cores esquema, que foram desenvolvidas por pintores rebeldes ultra-modernos, tornaram-se a moeda corrente da arte comercial; e quando as encontramos em cartazes, capas de revista ou tecidos, parecem-nos afinal muito normais. Pode mesmo dizer-se que a arte moderna descobriu uma nova função ao servir como laboratório para novos modos de combinar formas e padrões.”
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