Habermas, Jürgen – O
discurso filosófico da modernidade. Texto Editora, 2010.
A palavra “modernização“ foi
introduzida como “terminus” apenas
nos anos 50. O conceito de modernização refere-se a um feixe de processos
cumulativos que se reforçam mutuamente: à formação de capital e mobilização de
recursos, ao desenvolvimento de forças produtivas e ao aumento da produtividade
do trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à formação
de identidades nacionais, à expansão de direitos de participação política, de
formas urbanas de vida e da formação escolar formal, refere-se à secularização
de valores e normas.
O primeiro filósofo a
desenvolver o conceito de modernidade foi Hegel. Temos de remontar a Hegel para
compreender o que significa a relação interna entre modernidade [Modernitat] e
racionalidade. Hegel começou por utilizar o conceito de modernidade em
contextos históricos como conceito epocal: os “novos tempos” são os “tempos
modernos”. Isto correspondia ao uso contemporâneo na língua inglesa e francesa
das expressões “modern times” e “temps
modernes”; designam por volta de 1800 os três séculos
precedentes. A descoberta do “Novo Mundo” bem como o Renascimento e a Reforma –
os três grandes acontecimentos à volta de 1500 – constituem a transição epocal
entre a Idade Moderna e a Idade Média. Enquanto no ocidente cristão os “novos
tempos” designaram o tempo ainda para vir que se abria ao homem só após o Juízo
Final, o conceito profano da idade moderna exprime a convicção de que o futuro já
começou, significa a época que vive dirigida para o futuro, a qual se abriu ao
novo que há-de vir. Desta forma, a cesura do começo do novo é deslocada para o
passado, precisamente para o início da idade moderna; foi apenas em pleno séc.
XVIII que o limiar histórico fixado à roda de 1500 foi reconhecido
retrospectivamente como sendo na realidade esse começo.
O mundo novo, o mundo
moderno, se distingue do antigo pelo facto de se abrir ao futuro. Hegel entende
igualmente “o nosso tempo” como “a época mais recente”. Coloca o início do seu
tempo presente na cesura que o Iluminismo e a Revolução Francesa representam
para os homens com mais discernimento vivendo no fim do séc. XVIII e princípios
do séc. XIX.
É inicialmente no domínio da
crítica estética que tomamos consciência do problema de uma fundamentação da
modernidade a partir de si própria, e isso torna-se claro quando se traça a
história do conceito de “moderno”. O processo de separação do paradigma da arte
antiga é iniciado no começo do séc. XVIII pela célebre Querelle des Anciens et des Modernes. Os modernos põem em
questão, com argumentos de crítica histórica o sentido da imitação dos modelos
antigos, em face das normas de uma beleza absoluta, aparentemente desligada do
tempo, elaboram os critérios de um belo relativo e condicionado pelo tempo e,
dessa forma, articulam a auto compreensão do iluminismo francês, como de um
recomeço epocal. Conquanto o substantivo modernista (juntamente com os
adjectivos antitéticos antiqui / moderni) fosse usado num sentido cronológico
desde final da Antiguidade, nas línguas europeias da idade moderna só muito
tarde, mais ou menos, a partir dos meados do séc. XIX, é que o adjectivo
moderno foi substantivado, e de novo pela primeira vez no domínio das Belas
Artes. Assim se explica a razão pela qual as expressões modernidade, moderne, modernitat, modernité,
conservam até hoje um cerne de significado estético marcado pela auto
compreensão da arte de vanguarda.
Para Baudelaire a
experiência estética fundia-se com a experiência histórica da modernidade. Na
experiência fundamental da modernidade estética agudiza-se o problema da auto
fundamentação, porque aqui o horizonte da experiência temporal se reduz à
subjectividade descentrada, que se afasta das convenções da vida quotidiana. É
por isso que para Baudelaire a obra de arte moderna ocupa uma posição peculiar
na intersecção dos eixos da actualidade e da eternidade. A modernidade é o
transitório, o evanescente, o contingente, é uma metade da arte sendo a outra
metade o eterno e o imutável. Esta compreensão do tempo, radicalizada de novo
pelo surrealismo, fundamenta a afinidade da modernidade com a moda.
Baudelaire afirma que o belo
é formado por um elemento eterno e imutável e também por um elemento relativo e
circunstancial, que é representado pela época, pela moda, pela vida espiritual,
pela paixão. Sem este segundo elemento, que é como que a cobertura brilhante e
atraente que abriu o apetite para o bolo divino, o primeiro elemento seria
indigerível, para a natureza humana. Baudelaire, na sua qualidade de crítico de
arte, destaca na pintura moderna o aspecto da beleza fugaz, efémera da vida
presente, o carácter daquilo que o leitor nos permite designar por modernidade.
Baudelaire escreveu a palavra modernidade estre aspas, porque tem plena
consciência de que essa palavra é nova e é usada terminologicamente de forma
particular consequentemente a obra autentica está radicalmente presa ao momento
em que nasce; exactamente porque se consome na actualidade é que pode deter o
fluxo regular da trivialidade, romper a normalidade e saciar por um momento, o
momento da efémera fusão do eterno com o actual, o imortal anseio de beleza.
A beleza eterna desvenda-se
apenas no disfarce do traje da época; Walter Benjamim refere-se mais tarde a
isto usando a expressão da imagem dialéctica. A obra de arte moderna está
marcada pela união do autêntico com o efémero. Este carácter da actualidade
fundamenta igualmente a afinidade da arte com a moda, com o que é novo.
Hegel é o primeiro a elevar
à categoria de problema filosófico o processo de separação da modernidade das
sugestões normativas do passado que lhe são exteriores. Ao mesmo tempo que a
modernidade desperta para uma consciência de si própria nasce nela uma
necessidade de auto certificação, que é compreendida por Hegel como a
necessidade da filosofia. Ele vê a filosofia confrontada com a tarefa de
traduzir em pensamento o seu próprio tempo que, para Hegel significa a época
moderna. Hegel está convencido de que não pode de forma alguma apreender o
conceito que a filosofia faz de si própria sem atender ao conceito filosófico
de modernidade.
Para Hegel os tempos
modernos são caracterizados de uma forma geral por uma estrutura de auto
relação a que ele chama subjectividade: o princípio do mundo moderno em geral é
a liberdade da subjectividade. Quando Hegel caracteriza a fisionomia dos tempos
modernos (ou do mundo moderno) explica a subjectividade por meio da liberdade e
reflexão. O que dá grandiosidade à nossa época é o reconhecimento da liberdade,
a propriedade do espírito, o reconhecimento de que o espírito estando em si
está consigo. Neste contexto a expressão subjectividade implica sobretudo
quatro conotações: a) individualismo, no mundo moderno a peculiaridade
infinitamente particular pode fazer valer as suas pretensões; b) direito à
crítica, o princípio do mundo moderno exige que o que deve ser reconhecido por
cada um se lhe apresente como algo legítimo; c) autonomia do agir, é
característico dos tempos modernos o facto de nos querermos responsabilizar
pelo que fazemos; d) por fim, a própria filosofia idealista, Hegel considera
ser tarefa dos tempos modernos que a filosofia apreenda a ideia que sabe de si
própria. Os históricos acontecimentos chave para o estabelecimento do princípio
da subjectividade são a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Com
Lutero a fé religiosa tornou-se reflexiva, na solidão da subjectividade o mundo
divino transformou-se em algo postulado por nós. Contra a fé da prédica e da
tradição o protestantismo proclama a soberania do sujeito que faz valer o seu
próprio discernimento. Logo depois a Declaração dos Direitos do Homem e o
Código Napoleónico consagram, em detrimento do direito histórico, o princípio
do livre-arbítrio como fundamento substancial do estado, considera-se que o
direito e a eticidade se fundamentavam no terreno presente da vontade do Homem
visto que anteriormente eram apenas um mandamento divino emanado de fora,
escrito no Antigo e no Novo Testamento.
O princípio da
subjectividade determina além disso as configurações da cultura moderna. É o
que acontece, em primeiro lugar, com a ciência objectivamente que despe a
Natureza da magia e liberta simultaneamente o sujeito cognoscente:
contestaram-se então todos os milagres; porque a Natureza é agora um sistema de
leis conhecida e reconhecida, o Homem sente-se bem dentro dela e só conta
aquilo em que ele se sente bem; o conhecimento da Natureza torna-o livre.
A arte moderna revela a sua
essência no romantismo; a forma e o conteúdo da arte romântica são determinados
por uma interioridade absoluta. A auto-realização expressiva torna-se o
princípio de uma arte que se apresenta como forma de vida.
Na modernidade portanto, a
vida religiosa, o estado e a sociedade, bem como a ciência, a moral e a arte
transformou-se em outras tantas incarnações do princípio da subjectividade. A
sua estrutura é englobada como tal na filosofia, nomeadamente como
subjectividade abstracta no cogito ergo
sum de Descartes, na forma de autoconsciência absoluta em Kant. Trata-se da
estrutura da auto relação do sujeito cognoscente que se debruça sobre si como
sobre um objecto para compreender como uma imagem reflectida num espelho
precisamente, numa atitude especulativa.
Na medida em que a teoria da
modernidade se oriente pelos conceitos básicos da filosofia da reflexão, pelos
conceitos de conhecimento da tomada de consciência e da autoconsciência,
torna-se evidente a conexão interna desta teoria com o conceito da razão ou da
racionalidade.
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