segunda-feira, fevereiro 17, 2014

Memórias do meu pai


Manuel Pereira da Silva era extremamente metódico na organização do seu dia-a-dia, geométrico, como os seus desenhos. Todos os dias se levantava às 6h00m da manhã, fazia os seus exercícios de ginástica no quarto, seguia-se uma caminhada de meia hora e às 7h30m estava na escola, uma hora antes de começar as aulas, era o primeiro a chegar, para poder ler as notícias na imprensa e conversar com os amigos e colegas.

Na escola era conhecido como o bata branca, uma vez que usava a bata branca nas suas aulas, bata branca essa que usava também todas as tardes no seu atelier. Como tinha aulas de manhã, todas as tardes ia para o atelier, passando antes pelos cafés da Baixa do Porto, para conversar com os amigos e jogar um pouco de bilhar snooker, e só depois é que ia para o seu atelier, por vezes na companhia dos amigos, eles também artistas, como o escultor Aureliano Lima, o pintor Reis Teixeira, o escultor Fernando Fernandes, o escultor Arlindo Rocha, entre outros.

O Domingo era o único dia em que não ia ao atelier, assim como todo o mês de Agosto, altura de ir para a praia de Salgueiros e depois Miramar, com a família. As noites, após o jantar, eram passadas ou a dormir “a ver televisão” ou os amigos vinham-no buscar a casa para ir para reuniões: ora dos Bombeiros, ora das várias colectividades de Avintes, ora do Partido Socialista, de que era militante, ora da Junta de Freguesia de Avintes, em que chegou a ser Presidente, por três meses, em substituição do então Presidente que tinha adoecido. Sempre recusou desempenhar cargos directivos em qualquer das instituições da sua terra natal, da qual nunca saiu, a não ser num breve período após a sua Licenciatura na Escola Superior de Belas Artes do Porto, em que esteve em para Paris, durante um ano, na companhia de alguns colegas de curso. Nunca sentiu necessidade de viajar, os lugares que frequentava nas suas rotinas diárias e a sua imaginação eram o seu mundo.

Um dos traços da sua personalidade era nunca falar de si, para evitar falar de si inundava as pessoas com perguntas, isto claro está, com todas aquelas pessoas que o abordavam, ora na rua, ora no autocarro, ora onde fosse. Uma outra característica era nunca se queixar de nada, nem do governo! Nunca se queixou dos alunos, dos colegas, dos amigos, da família, da saúde, da vida, da falta de dinheiro, enfim, daquilo que as pessoas normalmente se queixam.

Manuel Pereira da Silva teve sempre a noção que a vida de artista era incompatível com o casamento e ter filhos. Hoje verifico que a sua criação artística teve três fases distintas: a 1ª fase, que vai até aos 40 anos, altura em que se casou e um ano depois nasceu a filha e no ano seguinte o filho, esse período anterior ao casamento é de grande criatividade artística, estagiou a seguir à Licenciatura no atelier do escultor Henrique Moreira, onde trabalhou com Sousa Caldas, Lagoa Henriques e Mário Truta no Monumento aos Heróis das Guerras Peninsulares, da Rotunda da Boavista, no Porto, participou em várias exposições colectivas, no Ateneu Comercial do Porto, com os Independentes, três anos seguidos, nas Caladas da Rainha, em Viana do Castelo, na S.N.B.A (Sociedade Nacional de Belas Artes), na exposição do Mundo Português em Moçambique, teve encomendas do Estado Português: para Angola (Luanda), para a Guiné-Bissau (Bolama), para o Palácio da Justiça do Porto; teve também encomendas da Igreja: para realizar os frescos evocativos da “Paixão de Cristo” na Capela Mor da Igreja de Santa Luzia, em Viana do Castelo, a Nossa Senhora da Areosa, na Igreja da Areosa, no Porto e alguns bustos de padres; a 2ª fase, de constituir família, obrigou-o a ser professor do ensino secundário e a aceitar todo o tipo de encomendas, todo não, porque nunca aceitou fazer santos, algumas comunidades de emigrantes em França e Canadá, sobretudo, fizeram-lhe esse pedido e foi talvez das poucas coisas que ele recusou. Porque para os amigos ele sempre aceitou aceder aos seus pedidos de uma forma generosa, isto é, nunca cobrou um centavo pelo trabalho que fez para todas as instituições de Avintes, inclusivamente para a Igreja paroquial de Avintes, apesar de ser ateu, sempre teve um enorme respeito pelas pessoas e instituições, em várias fases da sua vida, curiosamente, desenhou várias figuras de Cristo, sem ser por encomenda. Neste período fez sobretudo bustos de pessoas de Avintes e de figuras ilustres como: o jornalista Fernando Pessa, o professor José Hermano Saraiva, o major Valentim Loureiro, diversos padres e empresários, além disso, e é outro traço da sua personalidade, fez os bustos de todos os artistas com que trabalhou e de toda a sua família: avô, pai, filhos, netos e o seu próprio busto em pedra. A 3ª fase, surge após se reformar do ensino, aí começou novamente a ter encomendas importantes, como a da Homenagem aos Industriais do Mobiliário, feita pela Câmara Municipal de Paredes, a figura abstracta para uma Estação de Combustíveis na A1, em Gaia, entre outras. Mas é sobretudo no seu atelier, agora de manhã e de tarde, que ele se entrega com paixão às suas criações artísticas. Obras essas que nunca chegaram a ser expostas, a não ser à dois anos atrás a convite da Casa Museu Teixeira Lopes que quiseram fazer uma retrospectiva do seu trabalho e se mostrou uma pequena parte dessas obras. Um outro traço da sua personalidade é o facto de desde a década de 50, isto é, durante cerca de 60 anos, recusou todos os convites para participar em exposições, quer da Casa Museu Teixeira Lopes, que o convidada regularmente, quer do Museu Soares dos Reis, quer de algumas galerias, especialmente do seu colega e amigo Jaime Isidoro.

Apesar de visitar os Museus e Galerias com regularidade, no Porto, a convite de amigos e colegas para as suas exposições, guardou sempre com carinho esses catálogos com dedicatórias desses mesmos artistas.

Não posso deixar de referir a única exposição a que ele alguma vez se referiu que foi quando a Gulbenkian inaugurou a exposição do escultor Henry Moore, em 1981, em Lisboa. Foi um choque para ele, porque ele pensava que aquelas esculturas que ele viu pela primeira vez, tinham semelhanças com as suas, julgava ele ser o primeiro a exprimir-se naquele tipo de linguagem, mulheres reclinadas, figuras humanas com buracos, figuras humanas com formas geométricas. Foi neste momento que ele deixou de se exprimir desta forma, teve um largo período em que só desenhou, até começar a reparar que as folhas de papel deitadas para o chão podiam ser trabalhadas e adquirir formas humanas, ora mulheres, ora homens.

Como nota final, é mais uma preocupação minha, e um desafio a quem me possa estar a ler, faço sempre esta pergunta a todos os meus colegas da escola onde trabalho, que se formaram na Faculdade de Belas Artes, sejam pintores, escultores, arquitetos, designers, que é a seguinte:

Diz-me lá qual é o estilo ou movimento artístico das obras de Manuel Pereira da Silva?

A resposta tem sido muitas vezes um encolher de ombros, um silêncio, um não sei!

Inicialmente ficava dececionado procurava uma melhor resposta, até me aperceber que era mesmo essa a resposta correta. Manuel Pereira da Silva nunca pretendeu representar uma época, um período artístico, um movimento, tal como alguns dos seus colegas e amigos quando criaram o movimento dos “Independentes” nos anos 40, no Porto, na altura eram estudantes da faculdade, grupo esse que pretendia romper com o passado e ao mesmo tempo libertar-se de todos os “ismos”, de todas as correntes e tendências e criar as suas obras com plena liberdade. Constato que é precisamente o que atualmente os artistas pretendem fazer, cada artista representa-se a si mesmo, sem país, sem correntes ou movimentos, cria a sua própria linguagem artística.

Manuel Pereira da Silva teve uma proximidade criativa com alguns colegas e amigos artistas, como Aureliano Lima, Reis Teixeira, Fernando Fernandes e Arlindo Rocha, com quem partilhou o seu atelier, relação essa marcada pela paixão em relação à obra de arte, são aquilo que se poderia chamar uns compagnons de route muito particulares. Refletia o gosto do trabalho em conjunto, da partilha, da troca de ideias e do convívio fora do espaço do atelier nos cafés da Baixa do Porto.

Manuel Pereira da Silva iniciou a sua atividade de escultor no atelier do escultor Henrique Moreira, enquanto estagiário recém-formado pela Escola de Belas Artes do Porto, local esse onde conheceu a minha mãe, sobrinha de Henrique Moreira.

Henrique Moreira era nessa altura, nos anos 40, 50, 60 e 70 o único artista, na cidade do Porto, que vivia exclusivamente da sua atividade artística, todos os outros artistas eram na sua maioria professores do ensino secundário. Dedicou toda uma vida somente à produção escultórica, em Portugal. Após a conclusão da licenciatura passou a trabalhar no atelier do Mestre Teixeira Lopes. A sua obra, figurativa, academista e centrada na representação de figuras ilustres e populares, a maior e mais substancial parte da sua vasta obra foi produzida para a cidade do Porto, sendo por isso justamente considerado "o escultor do Porto".

Manuel Pereira da Silva durante o período que trabalhou no atelier de Henrique Moreira colaborou com ele na realização dos Baixos-relevos do Teatro Rivoli e do Coliseu do Porto, e ainda no “Monumento aos Heróis das Guerras Peninsulares” na Rotunda da Boavista.

Manuel Pereira da Silva tem tendências estéticas abstratas, cujo principal tema é a figura humana e como subtemas: o homem, a mulher, o casal, a família, a maternidade. De um modo geral o processo criativo começa por um ou vários desenhos no papel, folha A4 que depois pode passar para um formato maior de cartolina, em seguida pode passar para a tela, primeiro desenhando a lápis na tela e só depois pintando, recorrendo a vários materiais: guache, aguarela, tinta-da-china, ou a óleo. Por último pode passar a escultura, primeiro feita no barro e depois em gesso em estrutura de alumínio, só passando a bronze se forem encomendas. A finalidade de todos esses estudos elaborados em desenhos, na sua maioria a esferográfica (Bic), podendo ser a lápis ou crayon, é transformá-los em esculturas.

Manuel Pereira da Silva pretendeu apenas desenvolver um projeto pessoal, buscou a singularidade, procurou potenciar toda a humanidade que havia nele sem impor nada a ninguém. Nunca ofereceu como presente as suas obras, à semelhança do que acontecia com muitos dos artistas que conhecia, era comum estes presentearem um aniversariante com uma obra sua.

No entanto tinha um hábito peculiar, pelo Natal enviava todos os anos um postal aos seus amigos com uma poesia da sua autoria. Quando fez oitenta anos, a Junta de Freguesia de Avintes em conjunto com a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, homenagearam-no com a Medalha de Mérito Cultural, num jantar, um dos seus amigos reuniu todos esses postais e surpreendeu toda a gente presente ao expô-los em cartolina nas paredes do Restaurante. Só nesse momento é que a família teve conhecimento desse facto.
A coleção Pereira da Silva tem cerca de 700 desenhos, 280 pinturas e 140 esculturas. Com a divulgação desta coleção pretendo partilhar com o público em geral o espólio deixado por Manuel Pereira da Silva à sua família, perpetuando deste modo no tempo o seu legado.

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