Martha Rosler, tinha 20 anos
quando o século XX entrou na década de 1960. Assistiu à transição entre o que
restava do mundo moderno e o novo mundo contemporâneo. Mudança após mudança.
“Se queremos algum tipo de revolução, temos que fazer manifestações, estar lá
fora, organizarmo-nos, dedicarmo-nos.” E isto nem sequer é ativismo. É
“cidadania”, disse ao PÚBLICO numa entrevista à margem do Fórum do Futuro, no
Porto, onde foi conferencista convidada.
Começou a sua conferência
por explicar que, nos anos 1940, quando Jackson Pollock estava a fazer as suas
pinturas abstratas, nem os artistas nem os públicos da arte poderiam imaginar a
ligação intrínseca entre o seu mundo e os grandes fluxos financeiros internacionais.
A forma como Pollock
trabalhava as telas, no chão, tinha qualquer coisa a ver com a ideia de
território e posse territorial. Na verdade, o facto de ele desistir da perspetiva
– que foi o que fez com a sua pintura – liga-se com a história da posse de
terra. Há isso e o mais óbvio: a relação com o dinheiro, que se intensificou
muito, porque se tornou muito mais visível. Pollock fez parte da primeira
geração de artistas em que os mercados financeiros mundiais se tinham focado
nos Estados Unidos e se tinham tornado completamente hipertróficos. Tudo isso e
a emergência da cultura de celebridades pesou muito sobre os expressionistas
abstratos, a maior parte dos quais faziam parte de uma cultura de boémia outsider vagamente empobrecida.
Acho que podemos dizer que o
expressionismo abstrato foi destruído pela sua relação com o dinheiro e a fama.
Diria ainda que há uma razão para o modelo de transcendência que ele propunha
não poder legitimamente manter-se no mundo do pós-guerra: a economia. Portanto,
sabemos mais [sobre a relação entre arte e dinheiro] e a pressão
intensificou-se vastamente. Toda a gente que tem hoje alguma relação com o
mundo da arte, mesmo ao nível mais popular, percebe a ligação deste mundo ao
mundo das finanças, especialmente nos Estados Unidos. Como alguém dizia,
chegámos a um momento em que alguns dos artistas são tão ou mais ricos quanto
os seus colecionadores. Não é exatamente assim porque alguns dos patronos da
arte são incomensuravelmente ricos, mas, obviamente, há artistas que se
tornaram extremamente ricos. A ‘financialização’ da arte disparou até para o
topo da cobertura [mediática] que se faz do mundo da arte. Em publicações [de
referência] como o New York Times os leilões são tão história quanto [as
exposições]… É como os desportos profissionais – aquilo de que ouvimos
realmente falar é dinheiro, quem custou quanto, quem está a fazer quanto, qual
dos grandes jogadores conseguiu o melhor contrato e quantos milhões de euros ou
dólares por ano faz.
O mundo da arte tornou-se
numa espécie de grande sprint anual,
os cem metros barreiras para ver quem chega ao fim melhor cotado no mercado. É
uma quantificação e ‘financialização’ de qualquer coisa que antes
considerávamos estar fora do sistema de avaliação das mercadorias [cujo valor
depende das leis da oferta e da procura] e que agora sabemos estar
completamente lá dentro. Isto começou a acontecer há pelo menos quatro ou cinco
décadas. Não podemos fingir que é novo. Mas atingiu um ponto inaudito. Vejamos
uma referência mais popular – os filmes: hoje em dia julga-se um filme pelos
seus resultados de bilheteira. Se um filme for um sucesso de bilheteira, as
pessoas nem se dão ao trabalho de falar do facto de ser ou não um bom filme.
Talvez, mais tarde, numa coluna mais especializada [na imprensa], mas o grande
título imediato é sempre: “Nº 1 nas bilheteiras”.
A pintura era uma arte de
cavalete. Depois, tornou-se grande de mais para estar no cavalete. O que
Pollock fez que ninguém tinha feito antes foi tornar a pintura não numa
representação da paisagem mas em paisagem. E há uma certa ironia no facto de a
tela passar a ser um território para ação [action
painting] e de essa ser uma boa janela através da qual ver a relação entre
a arte e o poder. Os terra tenentes não poderem definir a sua propriedade sem
um sistema métrico. Também não se pode representar a paisagem de forma a que
pareça real sem a perspetiva. Ora, a história da pintura é a história do
desenvolvimento e da rejeição da perspetiva – porque o abstracionismo é a
rejeição da perspetiva, a opção pela bidimensionalidade, sendo ainda,
ironicamente, sobre território. Isto é especialmente irónico no caso do
Pollock, porque ele pinta com a tela no chão. A tela dele é um espaço em que
percorremos um território. E mesmo quando ele, no fim, volta a pôr a tela na
vertical [na parede] toda a gente percebe que a forma como ali se chegou a um
“significado” derivou da horizontalidade. Tal como a terra tenência está na
base da acumulação de capital, estas pinturas também se tornaram num princípio
de acumulação de capital. Na altura, ninguém estava a pensar sobre isto, mas eu
não consigo deixar de pensar.
O modelo de transcendência
proposto pelo expressionismo abstrato não poderia ter lugar no mundo e na
economia do pós-guerra, porque os artistas dependem das ideias dos seus
patronos. Por isso é que costumo falar no desenvolvimento dos públicos
burgueses a partir de finais do século XIX e nas teorias que apontam o abstracionismo,
o simbolismo e etc., como formas de fugir às questões do realismo, que levaria
à representação das classes trabalhadoras e da militância do operariado. Claro
que os artistas fizeram muito disso, mas principalmente no desenho e na
gravura. E os que o fizeram não se viram muito bem pagos por isso pelos seus
patronos, que, na verdade, queriam era ver outras imagens.
O modelo de transcendência
corresponde ao facto de os artistas nos mostrarem outro mundo. Era uma teoria
muito importante. Mas, no momento em que o [centro do] mundo da arte se muda
[de Paris] para Nova Iorque [na década de 1940]… O patronato nos Estados Unidos
nunca se interessou muito por especializações intelectuais ou teorias da
representação, quer apenas coisas muito imediatas. Como Rockefeller disse um
dia sobre [a pintura de Mark] Rothko – e vou parafrasear: oferece um espaço de
relaxamento ao homem de negócios cansado. Isto é perfeito! O espaço da abstração
é uma vista sobre outro mundo, sem quaisquer especificidades. Mas isto não
podia durar, porque a arte passou a ser apreciada de forma massificada. Quando
se tornou numa mercadoria, uma mercadoria cara, Jackson Pollock apareceu na
capa da revista Life. A revista Life estava praticamente em todos os lares
americanos! Estava nos consultórios médicos – estava em todo o lado. Definia a
imagem do mundo. Antes de a televisão estar em casa de toda a gente, estava lá
a Life. E, na capa, um dia, apareceu este artista que estava a destronar
Picasso como o mais importante artista do século XX. Pollock acabou por morrer
bêbado num acidente de carro muito pouco tempo depois e esta ideia de que a
arte é suposto ser sobre outra coisa qualquer, misteriosa, transcendente… É um
bocadinho doutrina católica, tudo isto. Não sei…
Os jovens artistas hoje
vêem-se como produtores de mercadorias transacionáveis. Os que se projetam numa
carreira de sucesso de cerca de 10 anos. É como os milionários.com: tinham uma
ideia, que era comprada, reformavam-se e tinham uma vida feliz algures a não
fazer nada que não quisessem. É o que pensam muitos jovens das escolas de
elite, pelas quais pagaram muito dinheiro. Pensam: faço uma fortuna e
desapareço durante a noite.
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