Laura Castro
A Escola de
Gaia
Ao falar de artistas de Gaia num período compreendido entre
os anos 60 do século XIX e os anos 20 do século XX, o panorama reduz-se quase
obrigatoriamente à escultura.
De Escola de Escultores de Gaia se começou a falar
insistentemente desde que António Arroio, em 1909, utilizou a expressão para
caracterizar o núcleo de escultores que nasceram ou trabalharam em Gaia,
sobretudo a partir da figura de Soares dos Reis. É com José Joaquim Teixeira
Lopes (1837-1918), e à laia de preâmbulo, que começa a história dos escultores
de Gaia. Só depois do introito que representou a sua atuação, se pode definir
uma primeira geração com o nome de Soares dos Reis (1847-1889), ao qual se segue
um grupo de escultores nascidos na década de 60: Joaquim Gonçalves da Silva
(1865-1912), José Fernandes Caldas (1866-1923), António Teixeira Lopes
(1866-1942), Augusto Santo (1869-1907), estes dois últimos discípulos de Soares
dos Reis, a que pode reunir-se António Fernandes de Sá, da década seguinte
(1875-1959). Contemporâneo deste núcleo é o pintor Manuel Maria Lúcio
(1865-1943). Por último um conjunto de escultores nascidos nas décadas de 80 e
90, com numerosa presença de discípulos de Teixeira Lopes: José de Oliveira
Ferreira (1883-1942), António Alves de Sousa (1884-1922), Diogo de Macedo
(1889-1959), António Azevedo (1889-1968), Zeferino Couto (1890-), Henrique
Moreira (1890-1979), José Fernandes Sousa Caldas (1894-1965), Adolfo Marques
(1894-1960). Contemporâneos deste núcleo, sublinhem-se o pintor Joaquim Lopes
(1886-1956) e o arquiteto Francisco Oliveira Ferreira (1884-1957).
Soares dos Reis regressa de Paris e Roma em 1872. Será
preciso esperar treze anos para ver partir Teixeira Lopes para a capital
francesa. E quando Teixeira Lopes se prepara para entrar na Academia (1901) e
Fernandes de Sá, mesmo na viragem do século, obtém êxito em Paris (1896-1901),
Oliveira Ferreira e Alves de Sousa estuda ainda nas Belas Artes do Porto,
terminando o curso em 1905. Finalmente, quando Alves de Sousa está como
pensionista em Paris e Oliveira Ferreira chega ao fim do seu período de
bolseiro, terminam o curso António de Azevedo, Sousa Caldas, Henrique Moreira,
Diogo de Macedo e Zeferino Couto (1911). Poucos anos separam a formação destes
escultores, cuja atividade haveria de cruzar-se em diversas ocasiões. Necessário se torna esclarecer a este
respeito de “artistas de Gaia” que a questão da naturalidade não me parece
decisiva na definição de vocações e de formações, sendo mesmo um critério pouco
legítimo para apurar gerações de artistas e suas tendências dominantes ou mesmo
para organizar, unicamente em função dele, uma exposição ou um estudo. O século
XX veio diluir, de forma acentuada, a questão da geografia artística que
impunha escolas por países ou regiões. Na contemporaneidade, e salvo algumas
exceções, o termo “terra natal” não tem grande sentido quando falamos de artes
plásticas. Portanto, esta fronteira gaiense é um pretexto para encarar um
conjunto de artistas que viveram e desenvolveram a sua atividade a partir de
Vila Nova de Gaia. Verifica-se até que alguns dos representantes dessa “Escola
de Gaia” são oriundos de outros pontos do país: José Joaquim Teixeira Lopes é
natural de S. Mamede de Riba Tua.
Para enfatizar esta ideia deve referir-se que, se a maioria é
natural de Gaia, quase todos trabalharam no Porto e para o Porto. Ou seja, em
Gaia medita-se, concebe-se, produz-se; no Porto, concretiza-se a obra,
implanta-se em local público, perpetua-se a peça e o seu autor. Porto e Gaia
mantiveram desde sempre estas relações estreitas, porque se as oficinas e os
ateliers existiam em Gaia, era no Porto que se cumpria a formação. Afinal, este
grupo de artistas apenas tirava partido das condições de mercado que lhe
oferecia a cidade vizinha. E era também aí que se encontravam os locais de
exposição: Ateneu, Misericórdia, Palácio de Cristal, Pátio da Associação
Comercial (o local preferido por Teixeira Lopes, segundo relata nas suas
Memórias) Salão Silva Porto.
Mesmo em relação aos ateliers que os escultores mantinham,
alguns situavam-se no Porto: Fernandes de Sá trabalhava na R. Álvares Cabral
(Bertino Daciano, 1949), Joaquim Gonçalves trabalhou numa oficina de escultura
religiosa na R. da Fábrica (Romero Vila, 1964) e Henrique Moreira no Largo
Actor Dias. O caso mais paradigmático desta situação é o de Henrique Moreira,
natural de Gaia e que marcou decisivamente a imagem da cidade do Porto, em
termos de estatuária pública.
Na mesma ordem de ideias, mas de razão inversa, refiram-se os
irmãos Oliveira Ferreira – arquiteto e escultor – naturais do Porto, mas com
oficina em Gaia, e com parte fundamental da sua obra aqui desenvolvida.
Forçando o esquema a adaptar-se aos exemplos disponíveis,
outros poderiam ser acrescentados, como Eduardo Tavares, natural de S. João da
Pesqueira, professor da Escola de Belas Artes do Porto e que manteve atelier na
oficina de Soares dos Reis, já numa fase mais avançada do nosso século.
Prova bastante da apetência por esta terra e pelas suas
figuras emblemáticas, e da capacidade de proporcionar alguma continuidade ao
movimento nascido no século XIX. Apesar de toda a contenção de critérios
anunciada, convém reconhecer a existência, em Gaia, de uma comunidade de
escultores, em número muito razoável, que dominou parte da atividade artística,
das encomendas e das exposições na passagem do século. As causas, se não cabem
desenvolvidamente nesta abordagem, também não se poderão alhear dela. Têm sido
frequentemente aduzidas razões como a proliferação de oficinas de barristas, de
canteiros, de fundidores; a tradição da imaginária em madeira; a existência de
fábricas de cerâmica; a realização de figuras de proa para os barcos, nos
estaleiros de Gaia.
Mas o movimento inverso também será verdadeiro, a julgar
pelas palavras de outro autor que considera terem as imagens religiosas de
Teixeira Lopes – como a de Santa Isabel – exercido influência na arte dos
santeiros populares (António Arroio, 1909). Todos estes fatores, ainda que
indiretamente, contribuíram para um ambiente propício à criação artística e à
decoração; montaram uma atmosfera habituada a conviver com estas áreas como atividades
produtivas, conferindo-lhe um sentido utilitário e interveniente; geraram a
habituação à tridimensionalidade, à modelação, em formas acabadas e prontas a
colocar no remate de uma fachada, na decoração de uma frontaria, no conjunto
ornamental de uma fonte, num jardim. É neste sentido que Ramalho Ortigão
discorre sobre a superioridade da escultura, baseando-se no facto de os
“escultores terem de ser submissamente, obrigatoriamente, operários (…)
indispensavelmente (…) canteiros, fundidores, cinzeladores, barristas ou
entalhadores” (Ramalho Ortigão, 1905).
Nesta linha, leiam-se atentamente as considerações de outro
crítico que estranha a falta de interesse pela escultura porque, reconhecendo
que é mais difícil do que a pintura, é também “menos abstrata. Ocupa-se da
forma em toda a sua verdade (…). Nenhuma convenção tem o escultor, apresenta a
forma real que a sua conceção criou. (…) Passam as multidões quase sempre
impassíveis diante das realidades do mármore ou do bronze para correrem
entusiasmadas às seduções convencionais das imagens coloridas”. E noutro passo:
“É pena por ser ela a arte que melhor faz a educação artística de um povo, pois
em lugar de esconder-se sempre no recinto fechado dos edifícios, é à luz plena
e livre das praças e dos jardins que ostenta o melhor das suas maravilhas.”
(Ribeiro Artur, 1896).
A consciência crítica da época em relação à escultura revela
ainda: “é a expressão de arte que em Portugal descreve a mais completa linha de
evolução ininterrupta, desde os primeiros monumentos arquitetónicos coevos da
fundação da nacionalidade até aos nossos dias”. E continua: “Não podemos,
portanto, dizer, ao deparar-se-nos no século XIX tão admiráveis escultores como
foi Soares dos Reis, como é Teixeira Lopes, que na sua raça não existisse a
poderosa seiva artística de que eles desabrocharam”. (Ramalho Ortigão, 1905).
Qualquer dos dois autores citados trabalhou e exerceu atividade
crítica face ao movimento de escultores que em Gaia se gerava e o facto de
realçarem desta arte o seu lado mais oficinal e a sua faceta mais concreta,
parece-me conferir-lhes um entendimento muito correto quanto ao interesse
dedicado à escultura naquela vila. Toda esta argumentação encontra
correspondência na conceção segundo a qual “a escultura se ocupa do corpo e a
pintura da alma” (António Arroio, 1899).
Um caso muito particular da relação entre o tipo de oficinas
referido e a escultura, é o de Adolfo Marques. Filho de um entalhador com o
mesmo nome, desenvolveu, a partir da tradição familiar dos trabalhos em
madeira, um conjunto de pequenas imagens celebrizadas como “bonecos de pau”. As
peças realizadas, que recorrem à nogueira como material predominante, são de
pequenas dimensões e apresentam uma fatura que cruza uma visão representativa
com traços construtivos, tornando-as duras e facetadas. Traem a aprendizagem
familiar inicial, mas também uma vontade de enveredar por novos caminhos que
teriam sido aprofundados, não fora a desistência da Escola de Belas Artes
frequentada até ao quarto ano. E é impossível não ver nestes “bonecos”, de
ferreiros, de varredores, de figuras de procissão, de outras lendo a sina, de
velhos sentados, de músicos populares, de D. Quixote e outros tantos de recorte
literário, um aceno das figuras de cerâmica de Teixeira Lopes (Pai), no
inventário de profissões e atividades populares. Muito mal conhecidas estas
esculturas de Adolfo Marques provam a influência e a continuidade, atrás
referida, da produção de barros, cerâmicas e trabalhos em madeira.
Um outro caso é o de Sousa Caldas que começou a conviver com
a estatuária realizada pelo pai – José
Fernandes Caldas – autor de numerosas imagens religiosas, das quais as mais
célebres se destinaram à Capela dos Bragas, no Porto, encontrando-se outras no
Brasil, onde se radicou após a implantação da República, aí vindo a falecer.
Sem que se possa estabelecer uma ligação direta entre as obras de Fernandes
Caldas e as do filho, em termos de resultados plásticos, é inevitável admitir
um traço de união entre as atividades que ambos escolheram.
Uma terceira figura é a de Fernandes de Sá, cujo pai tinha
uma oficina de marmorista, o que permitiu transmitir àquele escultor o gosto
pelos materiais que mais tarde viria a utilizar.
Diogo de Macedo iniciou-se na escultura a partir do contacto
com a oficina de Fernandes Caldas, onde aprendeu a desenhar, a modelar e a
esculpir a madeira.
Finalmente, nas suas memórias, Teixeira Lopes conta como
começou por realizar os olhos de vidro com que abastecia os santeiros e figuras
em barro, fornecendo feiras e romarias.
Da atividade destas gerações, Gaia conserva três edifícios
simbólicos: o atelier de Soares dos Reis; a Casa Museu Teixeira Lopes, atelier
do escultor a que se associaram, mais tarde, as Galerias Diogo de Macedo; o
atelier de Oliveira Ferreira em Miramar. Edifícios que, na existência
atribulada que conheceram, relatam também histórias dos artistas a eles
associados.
O atelier de Soares dos Reis foi sempre um objetivo dos
defensores do escultor que propunham a sua aquisição pela Câmara de Gaia, em
movimentos mais ou menos organizados a partir dos anos 10 (Joaquim Antunes,
1990). Foi adquirido pelo industrial Manuel Pinto de Azevedo em 1938 e legado,
por este, à Escola de Belas Artes do Porto, em 1947. Neste processo foi de
grande importância a pressão exercida, nomeadamente por Joaquim Lopes, à imagem
do que fazia em prol de uma casa oficina António Carneiro.
A Casa Museu Teixeira Lopes resulta do atelier fundado em
1895 pelo escultor e concebido pelo seu irmão arquiteto, José Teixeira Lopes.
Em 1932 é doada com todo o seu recheio à Câmara Municipal de Gaia ficando o
escultor como seu conservador e recebendo uma pensão mensal vitalícia. A este
espaço ficou associado o nome de Diogo de Macedo ao qual foi igualmente
dedicado um espaço de exposição das suas obras e da sua coleção, de que a
Câmara tomou posse em 1971, tendo-se repetido a fórmula de uma pensão a
receber, neste caso, pela viúva do artista.
O atelier de Oliveira Ferreira, onde trabalharam os dois
irmãos, o escultor e o arquiteto, foi concebido por este último, autor muito
desigual na sua produção que espelha ainda característica do ecletismo da
passagem do século, que desenhou, entre outros, o edifício dos Paços do
Concelho de Gaia (1925), rompe radicalmente com traços historicistas na Clínica
Heliântia (1916). A oficina de Oliveira Ferreira foi doada à Associação
Cultural Amigos de Gaia (Boletim dos Amigos de Gaia, 12, Maio 1982).
Com a preservação destes três edifícios, com o monumento a
Soares dos Reis, com o busto de Henrique Moreira (de Manuel Pereira da Silva) e
o de Teixeira Lopes (de Gustavo Bastos) Gaia vai homenageando a sua escola de
escultores. Ultrapassando o âmbito cronológico, haveria ainda um conjunto de
artistas a tratar: José Pereira dos Santos (1902-), Manuel Teixeira Lopes
(1907-) Guilherme Camarinha (1912-1994), António Sampaio (1916-1994), António
Coelho de Figueiredo (1916-1991), Manuel Pereira da Silva (1920-2003), Isolino
Vaz (1922-1992), Paulino Gonçalves.
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