terça-feira, agosto 06, 2019

A Escola de Belas Artes do Porto


Após a passagem pela Escola Industrial Faria de Guimarães, Arlindo Rocha iniciou o Curso Especial de Escultura, na Escola de Belas Artes do Porto, numa altura em que o ensino nas Belas-Artes, implicava uma formação inicial, fundada nos valores do desenho, proporcionando aos alunos, depois de quatro anos de aulas intensivas de desenho de cópia, iniciarem o estudo de modelação, igualmente através da cópia do antigo; logo depois de concluir o Curso Especial, Arlindo concorre ao Curso Superior de Escultura na mesma escola. Acompanhando uma reforma de ensino, que visava modernizar o mesmo, Arlindo Rocha foi aluno de professores como Rodolfo Pinto do Couto, Carlos Ramos, Dórdio Gomes e Joaquim Lopes.

Nesta época, o responsável pela disciplina de Escultura é Rodolfo Pinto do Couto (1888-1945); discípulo de Teixeira Lopes, Pinto do Couto foi, enquanto pintor e escultor, um fiel seguidor do ensino das normas clássicas, apresentando como programa para o curso de Escultura um estudo aprofundado da figura humana, dando continuidade à Escola do seu Mestre, que viria desde Soares dos Reis. 

Durante cinco anos, os alunos respondiam aos vários exercícios de cópia dos modelos do antigo, modelando em barro pequenas estatuetas, as quais ao longo do curso evoluíam para exercícios de maior porte. O barro, dotado de uma grande plasticidade, oferece pouca resistência ao movimento da mão, livre de grandes cuidados, ou de grandes utensílios para ser trabalhado, tornando-se na matéria de eleição para os estudos de escultura, permitindo uma evolução gradual no trabalho de imitação de referentes naturais. Esta matéria, capaz de satisfazer as duas mais importantes condições para um escultor – sujeitar-se a todas as formas que lhe precisa de dar e conservar essas formas de maneira quase inalterável – convertendo-se no material de eleição para estudos de escultura, possibilitando ainda a realização de exercícios de pequena, média e grande escala. 

A aprendizagem do corpo humano iniciava-se com estudos que partiam da cópia de fragmentos de cabeças e extremidades do corpo humano em gesso, retratados numa primeira fase, em exercícios de relevo, onde os alunos tinham como objetivo aprofundar o domínio dos contornos aparentes e volumes ilusórios cuja preocupação recaía em maior parte sobre a vista frontal do relevo, podendo então o aluno evoluir, mais tarde, para figuras de vulto redondo, no qual o estudo de perfis é mais aprofundado. Da observação e representação do pormenor, os alunos chegavam à composição da figura completa no fim do curso, para além das cópias dos modelos de gesso antigos, sendo que, apenas no terceiro ano, se introduzia o estudo do modelo vivo, proporcionando assim aos alunos um domínio pleno na representação das formas do real. Na escultura, os materiais definitivos mais habituais são a pedra e o bronze, apesar de nesta altura estarem a ser introduzidos materiais industriais ou alternativos, considerados como materiais pobres. 

O atraso na procura de materiais ditos modernos para a realização de escultura está relacionado, por um lado, com o facto de Portugal se encontrar “fechado” às evoluções a que se assistia na Europa, e, por outro, com a ausência de disciplinas tecnológicas nas Escolas de Belas Artes. Seguindo o modelo de programa idêntico ao das escolas francesa e italiana, não cabia à Academia passar o conhecimento das tecnologias da escultura como a pedra, a madeira ou a fundição. Podemos dizer que a escultura era tida apenas como modelação. 

A preocupação de maior, seria induzir os alunos em disciplinas teóricas, como a Composição, deixando de parte as técnicas de “reprodução”. O talhe direto não era entendido como possibilidade de execução de obra final, mas sim como um meio ou técnica de reprodução da peça original, modelada. As técnicas da escultura eram por isso entregues a profissionais especializados, que muitas vezes tinham formação enquanto escultores, mas que carregavam em si uma tradição antiga e familiar de canteiros e santeiros, cujos usos e costumes os dotavam de uma sabedoria inalcançável em tão poucos anos de curso numa Escola de Belas-Artes. 

Os alunos de escultura, após a realização dos seus modelos em barro, acompanhavam o trabalho de formadores, responsáveis pela realização dos moldes, permitindo depois a passagem a gesso do estudo inicial. Porém, o gesso não oferece a mesma durabilidade que uma matéria nobre; aprender a dominar uma tecnologia, como a pedra ou o processo da fundição, era apenas possível àqueles que conseguiam estagiar posteriormente no ateliê de grandes mestres, que passavam aos seus discípulos os saberes, a tecnologia e as ferramentas adaptadas que evoluíam a grandes passos, tornando o trabalho de desbaste ou de fundição cada vez mais simplificado e rápido, o que irá influenciar em parte a tendência de síntese e de procura de uma linguagem pessoal do artista.

Logo após a morte de Pinto do Couto, Barata Feyo (1899-1990) toma o lugar de regente da Escultura, provocando uma série de alterações pedagógicas, iniciadas em 1949, com o objetivo de alargar o fechado ciclo académico em que o ensino da escultura se encontrava. Com a ação criativa e pedagógica de professores como Carlos Ramos, Joaquim Lopes e Dórdio Gomes, os alunos obtêm uma maior tolerância ideológica, a qual unida às iniciativas de exposições, que se realizavam de forma a unir professores e alunos numa arte tida como vanguardista, dão corpo à tentativa de modernizar o ensino portuense face à escola de Lisboa, onde se viviam os valores e as bases académicas seguidas por Simões de Almeida, Tio e Sobrinho e depois por Leopoldo de Almeida. Contudo, o ensino do Porto apenas pode ter em conta o alargamento dos ensinos da escultura, que então se encontrava em expansão, e que dera origem à construção de novos pavilhões, que tinham como objetivo introduzir os alunos nas mais variadas tecnologias. Os valores e as disciplinas teóricas permaneciam com a mesma ligação aos valores clássicos, apenas traduzidos em soluções modernas. A aprendizagem e as próprias avaliações deixam de estar balizadas por exercícios de modelos, podendo o aluno explorar e aprofundar novos temas e problemas da arte que surgiam em simultâneo com as vagas modernistas que se praticavam de forma vigorosa fora do país.

A formação académica de Arlindo Rocha acaba por ser levada, involuntariamente, pelos caminhos do «ensino hermético da morfologia humana», como podemos observar nas esculturas que realiza durante este período, dotadas de uma grande influência clássica, próximas do cânone grego, como é o caso de Juventude, um retrato de colega passado a gesso, baseado num processo de mimese; ou seja, através da representação direta, onde a idealização formal vai ao encontro do belo, carecendo a obra de elementos capazes de caracterizar o “estilo” do escultor. Curiosamente, passados quatro anos, Arlindo volta a este mesmo tema, idealizando um outro retrato intitulado igualmente de Juventude, onde tenta, de uma forma primária, libertar-se de volumes concretos que compõem um rosto humano. Desta vez, o rosto é feminino, composto de planos facetados, resultando de uma sintetização de formas e volumes, proporcionando ao escultor um primeiro exercício de libertação formal, afirmando aqui o contraste de idealização comparada à primeira Juventude, realizada em 1943, quando ainda aluno na EBAP. Neste trabalho percebemos que Arlindo Rocha procura libertar-se das formas da natureza como referentes, iniciando um processo de interiorização, no qual começa por idealizar os volumes orgânicos, que compõem um rosto, como volumes concretos, através de planos geométricos, iniciando o escultor num percurso que se demonstraria, mais tarde, uma afirmação formal e abstrata da escultura.

Arlindo Rocha afirma ter começado a aprender escultura quando deixaram de lhe a ensinar, não por desprezar a sua formação académica, mas por se interessar, desde cedo, pela possibilidade de desmaterialização da escultura, procurando assim novas respostas para uma prática escultórica nunca antes explorada em Portugal. Esta pesquisa pessoal seria, no entanto, dificultada quer «pelo longo estágio em volta de objetos somente vistos», quer pelo «clima de completa estagnação e absoluta falta de informação, que os alunos procuravam quebrar com iniciativas próprias».

Arlindo Rocha realiza a sua obra de fim de curso apenas em 1951, onde apresenta, para avaliação, um relevo alusivo à morte de António Francisco Ferreira da Silva Porto (1818-1890). Tratava-se de um baixo-relevo, que faria parte integrante do Monumento a Silva Porto – O Pioneiro, o qual Arlindo, juntamente com o arquiteto Vasco Vieira, se encontrava a desenvolver, para erigir na cidade de Silva Porto, Bié.

Devido às dimensões do seu trabalho final, Arlindo Rocha requer ao Director da Escola de Belas Artes do Porto a realização do relevo no ateliê onde trabalhou até 1956. Tratava-se do ateliê do escultor Henrique Moreira (1890-1979), instalado ao fundo do Jardim Arnaldo Gama, que Arlindo partilhou com o amigo Manuel Pereira da Silva (1920-2003). Com um percurso dentro de uma estética realista, Henrique Moreira era um escultor também da antiga escola, cujo modelar académico é completamente visível nos seus trabalhos, particularmente naqueles que resultaram em fundição, mas que deixa visível uma certa influência da Arte Déco, quando talha a pedra, em particular as figuras femininas. Não podemos, por isso, afirmar que Henrique Moreira tenha transmitido a Arlindo qualquer característica da sua forma de pensar ou fazer escultura. Porém, seria interessante fazer o estudo da vivência do escultor Henrique Moreira com os seus discípulos, uma vez que, apesar da sua evidente admiração pela linguagem clássica, esse convívio parece ter deixado impressiva marca nos dois discípulos os quais, de forma diversa, se dedicaram à procura de uma linguagem pessoal, dentro uma linguagem de cariz abstratizante. 

Na foto vemos de frente Arlindo Rocha e de costas Manuel Pereira da Silva, no atelier de Henrique Moreira.

Obtendo a nota final de 17 valores, o referido trabalho de final de curso reúne em si a composição e idealização clássicas, com uma conceção mais sintetizada, que nos relembra um pouco o trabalho do seu colega de ateliê, Manuel Pereira da Silva. Com a maior simplicidade e resultante de um demorado processo de sintetização, o homenageado é representado sem vestes, envolto apenas numa bandeira, figurando a nota biográfica da morte de Silva Porto. O corpo e a bandeira são de um contraste de claros e escuros absolutos, para um trabalho quase sem modelação volumétrica, assemelhando-se a uma incisão de desenho no próprio granito. O resultado final, podemos considerar, vai ao encontro de um trabalho contemporâneo para o seu tempo, uma vez que não se baseia na modelação, mas no talhe direto, em que apenas duas maquetas, à escala, foram realizadas anteriormente. Através da criação de planos e linhas cortantes, escavadas em profundidade na pedra, Arlindo obtém os contrastes necessários à perceção do seu tema, não tendo assim de se preocupar em realizar a passagem de luz entre volumes orgânicos, o que reforça um pouco a aparência mais geométrica deste relevo, que se aproxima da linguagem pessoal do artista, que se vinha a afirmar em dois campos distintos da escultura, um mais figurativo e outro desprovido de figuração, oi mais próximo de um esquematismo e antítese formais. 

Num meio onde as notícias sobre as principais figuras da Arte Contemporânea eram escassas, valia a estes jovens a partilha, por entre tertúlias, das experiências pessoais durante viagens ou mesmo a troca de revistas internacionais, raras na época, o que faz com que os ecos do modernismo em Portugal assumam uma grande importância. Os jovens estudantes procuravam conhecer os novos valores da arte que se fazia e vivia fora do país. Nesta geração portuense evidenciam-se vários nomes, os quais constituiriam um grupo particular: Fernando Lanhas, Nadir Afonso, Arlindo Rocha, Fernando Fernandes, Amândio Silva, Manuel Pereira da Silva, Altino Maia, Eduardo Tavares, entre outros. São jovens estudantes, da Escola de Belas Artes do Porto, que realizaram um conjunto de exposições Independentes, manifestando assim uma vontade de descentralização cultural, além das iniciativas de maior visibilidade e impacto que aconteciam quase de forma exclusiva na capital.

Em 1943, este grupo de estudantes da Escola do Porto resolve unir-se contra os grandes centros de exposições que decorriam quase de forma exclusiva na capital. Com o nome de Independente, a primeira exposição decorre nas instalações da própria Escola de Belas Artes do Porto, contando com a presença quase exclusiva de alunos.

Fernando Lanhas expõe, nas Independentes, as suas primeiras experiências abstratas, sugerindo mesmo aos colegas a experimentação do vasto campo da abstração. Ao mesmo tempo que Lanhas mostra as suas pinturas abstratas, Arlindo Rocha, que à data assinava como Arlindo Gonçalves, apresenta as suas primeiras experiências abstratizantes no campo da escultura.

O grupo expande-se cedo, abrindo portas a professores ou artistas que demonstrassem vontade de prosseguir essa vontade de descentralização cultural, através de várias iniciativas, nas quais é evidente a recusa à filiação de um estilo.

As Exposições Independentes assumem justo valor, por constituírem uma primeira ação coletiva à época, mesmo não estando estruturada sob uma vanguarda definida, inaugura um diálogo inovador no campo da arte portuguesa, proporcionando condições favoráveis ao aparecimento e desenvolvimento da tendência abstratizante.

Ana Luísa Oliveira
MESTRADO EM ESCULTURA PÚBLICA


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