terça-feira, agosto 06, 2019

A Escultura em Portugal na primeira metade do séc. XX


O início do séc. XX em Portugal foi marcado por um período instável devido à sucessiva queda e posse de governos durante a Primeira República (1910- 1926). A sociedade portuguesa encontrava-se longe de obter as condições necessárias para o desenvolvimento cultural e ideológico, avançando, a passos largos, para um ritmo desacertado que se sentiu entre a arte portuguesa e a arte realizada fora do país.

As academias permaneciam fechadas, mantendo o mesmo regime de ensino, valorizando e dando continuidade ao sistema clássico, onde a representação concreta do real, obtida através de um processo de cópia, é a preocupação maior dos artistas. As matérias-primas de eleição continuam a ser as mais tradicionais. Na pintura, o óleo; na escultura, o barro é a matéria predileta para as modelações, posteriormente passadas a um material definitivo. Enquanto isso, lá fora os novos materiais e tecnologias despertam o interesse plástico dos artistas, contribuindo para o surgimento de novas tecnologias e tipologias artísticas, como a introdução do ferro, alumínio, aço inoxidável, as resinas e cerâmicas ou aglomerados de madeira, às quais se seguiram as novas vanguardas que se afirmavam contra a tradição académica.

Porém, e em parte devido a experiências vividas fora do território nacional, assistimos a pequenos grupos que iniciaram uma procura modernista com trabalhos que renunciam à tradicional estética de raiz aristotélica, assente na mimese, evidenciando nas suas obras uma linguagem bastante pessoal, uma representação do mundo baseada numa visão muito própria, afirmando-se como procura de uma realidade, possivelmente, mais verdadeira, que o artista encontraria no seu interior e não no mundo comum. Contribuíram para uma primeira reflexão, em torno da arte de cariz mais expressionista e abstrata, as obras de Santa Rita Pintor e Amadeu de Souza-Cardoso a quem se juntou, numa fase posterior, um grupo de estudantes da Escola do Porto, onde se destacam nomes como Fernando Lanhas, Nadir Afonso, Manuel Pereira da Silva e Arlindo Rocha. Um pensamento estético e literário renovado iniciava-se nestes pequenos grupos organizados, aventurados em estratégias provocatórias face às práticas políticas e culturais conservadoras e, de certo modo, reacionárias à modernidade. A revista Orpheu, publicada em 1915, procurou afirmar uma grande influência na modernidade, sendo o seu “vanguardismo” inspirador de movimentos literários, que cedo despertaram as piores críticas, uma vez que propunham uma arte cosmopolita no tempo e no espaço, uma arte verdadeiramente moderna, que traria consigo a renovação da literatura e das artes em Portugal. Na revista Presença (1927-1940), assistimos a uma continuidade da linha de pensamento e intervenção iniciadas com a revista Orpheu. Estas revistas tornam-se numa fonte de divulgação de novos pensamentos estéticos de autores portugueses, bem como de alguns ensaios de escritores europeus. A estas edições juntaram-se ainda exposições e conferências organizadas com o fim de mostrar as novas opções culturais, quase sempre através de iniciativas privadas. Este novo despertar cultural que parecia acompanhar de perto o pensamento artístico internacional, não obtém da parte do público uma grande atenção, uma vez que o nível de alfabetização é muito baixo e nos meios urbanos as inovações intelectuais não tomam o lugar do conservadorismo que então se fazia sentir. A sociedade portuguesa da época encontrava-se pouco esclarecida a nível cultural, permanecendo fechada nos gostos da velha ordem, reforçando o desfasamento cronológico e ideológico entre as vanguardas e os artistas portugueses. A falta da livre circulação de livros, e informação, acaba por resultar na falta de uma consciencialização plena da arte que se vinha a praticar fora do país.

O Estado Novo (1933-1974) tornou-se em esperança contra o desgoverno político e económico em que se encontrava Portugal devido à Primeira República; para isso, o Estado reforça os valores ideológicos de Deus, Pátria e Família; autoridade, disciplina e ordem; corporativismo e catolicismo. As artes plásticas tornam-se em veículo de propaganda ideológica mais conveniente e favorável, sendo o país “adornado” de norte a sul com pequenas e grandes obras públicas resultantes em edifícios rígidos, revestidos com obras de escultura, pintura e tapeçaria.

Este período ficou associado a uma arte nacionalista, deixando uma marca equilibrada e funcional entre arte e poder, como demonstrou a Exposição do Mundo Português em 1940. Esta iniciativa atingiu dimensões até então nunca antes vistas, tendo como missão passar ao acto, em forma de comemoração, a consagração pública e a legitimidade representativa do Estado a nível ideológico e histórico. Cabia aos artistas transmitir de forma clara ao público esses valores, dando a conhecer também as personagens míticas portuguesas, exaltando a grandeza do passado, que se revia na do presente, esperançosa de alcançar o mesmo impacto no futuro de Portugal.

O Estado define uma arte associada ao sistema clássico, uma vez que seria a forma de melhor dialogar com os portugueses de qualquer classe social; o artista deveria ainda pontuar a obra de arte com pequenos apontamentos construtivos, conduzindo-o, de forma subtil, por caminhos que, avançando para a síntese das figuras, posteriormente o aproximam da abstração. Como a síntese formal faz parte da interpretação pessoal de cada um, a procura da individualização do artista e a procura da autonomia da arte tornam-se cada vez mais conscientes. Volta a ser visível uma vontade de rutura vanguardista que busca na natureza comum e na natureza pessoal uma reinterpretação do mundo, espelhado na obra de arte sem referências diretas às leis da beleza da realidade concreta.

Portugal atinge assim um período, dentro do possível, estável, onde o poder do Estado Novo conseguirá restituir valores, já perdidos, no seio da sociedade portuguesa, que, em conjunto com a ação de propaganda nacional, através do apoio das artes, acaba por modelar a sociedade, tornando possível a abertura cultural e ideológica que se encontrava com um grande desfasamento temporal em relação à Europa. Se na opinião de alguns autores, o Estado Novo origina crises sociais devido à censura e à imposição de estilos oficiais que geram algum atraso no desenvolvimento cultural do país, outros entendem este período como áureo, no sentido em que, no âmbito cultural e, em boa parte, devido ao trabalho de António Ferro, o governo se torna numa estrutura organizada, quase como máquina de propaganda dos valores heroicos nacionais, permitindo assim o desenvolvimento das artes plásticas, regularmente subsidiadas de uma forma exorbitante. O poder do Estado Novo é transmitido à população por meio da sua obra majestosa, ficando assim o país a ganhar com exemplos curiosos de arquitetura estado-novista e, por acréscimo, das artes ao serviço do estado, como será o caso da escultura, pintura, tapeçaria entre outras.

A importância e a ação determinante das vanguardas artísticas e a necessidade dos seus momentos de rutura são por isso de valorizar: «[a] função social do artista ao aperfeiçoar ou a inventar aquilo a que veio a chamar de “linguagens”, cria condições de consciencialização» do contexto político e social da época em que viveu.

No domínio artístico, a «revolução contida e pacata» surge mais fundamentada por volta de 1945. Neorrealismo, Surrealismo e Abstracionismo são praticados de forma muito contida, acompanhados de polémicas violentas até meados dos anos 50. Contudo, isto não será impedimento para a realização de Exposições Independentes, ou para a inauguração da primeira escultura abstrata adquirida pelo Estado para um espaço público. Os artistas modernos exploram estas novas linguagens plásticas, opositoras à linguagem clássica, no seio de uma luta de valores éticos e estéticos, perante uma sociedade que, como vimos, não estava preparada para os acompanhar.

Neste mesmo período, dá-se um dos grandes momentos da história cultural portuguesa dos tempos modernos. A redescoberta da obra de Fernando Pessoa, até aí desconhecida para a maioria dos cidadãos. Depressa a obra deste autor se revelou de grande interesse para as artes nacionais, possibilitando o retorno do ritmo perdido, no início do século, das primeiras manifestações modernistas, exaltadas também com a redescoberta das obras de Santa Rita e Amadeu, que como vimos, marcaram a primeira geração de modernidade, a qual permanecerá, como referência, até meados da década de 1940, como veremos.

Ana Luísa Oliveira

MESTRADO EM ESCULTURA PÚBLICA

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