Durante milhares de anos, as
artes em vigor nas sociedades ditas primitivas não foram de facto criadas com
uma intenção estética e tendo em vista um consumo puramente estético,
“desinteressado” e gratuito, mas com um objetivo essencialmente ritual. Nestas
culturas, o que se pretende com o estilo não pode ser separado da organização
religiosa, mágica, sexual e do clã. Inseridas em sistemas coletivos que lhes
dão sentido, as formas estéticas não são fenómenos de funcionamento autônomo e
separado: é a estruturação social e religiosa que por todo o lado pauta o jogo
das formas artísticas. São sociedades em que as convenções estéticas, a
organização social e religiosa estão estruturalmente ligadas e indiferenciadas.
Ao traduzir a organização do cosmos, ao ilustrar os mitos exprimindo a tribo, o
clã, o sexo, ritmando os momentos importantes da vida social, as máscaras, os
toucados, as pinturas do rosto e do corpo, as esculturas, as danças tem
primeiramente uma função e um valor ritual e religioso.
Porque a arte não tem existência
separada, informa a totalidade da vida: rezar, trabalhar, trocar, combater,
todas estas atividades implicam dimensões estéticas que são tudo menos fúteis ou
periféricas, uma vez que são necessárias ao sucesso de diferentes operações
sociais e individuais. O nascimento, a morte, os ritos de passagem, a caça, o
casamento, a guerra dão lugar, em todo o lado, a um trabalho de artialização
feito de danças, de cânticos, de fetiches, de adereços, de narrativas rituais estritamente
diferenciados segundo a idade e o sexo. Artialização em que as formas não se
destinam a ser admiradas pela sua beleza, mas a conferir poderes práticos:
curar doenças, opor-se aos espíritos negativos, fazer chover, estabelecer
alianças com os mortos. Muitos destes objetos rituais não são fabricados para
ser conservados: deitam-nos fora, destruídos após o seu uso ou, então,
repintados antes de cada cerimónia. Nada de artistas profissionais ilustres,
nada de obras de arte ”desinteressadas” nem mesmo muitas vezes termos como “arte”,
“estética”, “beleza”. E, no entanto, como sublinhou Mauss, “a importância do fenómeno
estético em todas as sociedades que nos precederam é considerável”.
Semelhante controlo do todo
coletivo sobre as formas estéticas não exclui certamente, numa ou noutra
circunstância, alguma liberdade de criação ou de expressividade individual. Mas
são fenómenos limitados e pontuais, assim como práticas estéticas, nestas
sociedades, são basicamente exigidas pelas suas funções culturais e sociais e
são acompanhadas de regras extremamente precisas. Por toda a parte, as artes
são executadas no respeito de regras draconianas e fidelidade à tradição. Não
se trata de inovar e de inventar novos códigos, mas obedecer aos cânones
recebidos dos antepassados ou dos deuses. È uma artialização ritual,
tradicional, religiosa, que marcou o mais longo período da história dos
estilos: uma artialização pré-reflexiva, sem sistema de valores essencialmente
artísticos, sem intenção estética específica e autónoma.
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