Escultor e desenhador lisboeta, Jorge Vieira (n. Lisboa, 1922, e m. em Évora, 1998) permanece na memória de muitos como autor do monumental Homem-Sol erguido no Parque das Nações, para a Expo98. Com as suas hastes atravessando o espaço em múltiplas direcções, Homem-Sol constitui uma espécie de testamento-síntese da obra que Jorge Vieira criou ao longo de uma carreira de cerca de 50 anos. Uma obra duplamente pioneira, pela renovação dos materiais escultóricos, como pela renovação poética da linguagem da escultura, que testou nas formas cheias, redondas, de um imaginário pagão trabalhado no barro (touros, crescentes lunares, sóis...) ou na pedra, mas também nas formas austeras, abertas, de linhas e planos estirados no metal, em que o artista experimentou uma redução fundamental da forma a signo.
Jorge Vieira fez a sua formação na Escola de Belas-Artes de Lisboa. Começou por frequentar o curso de Arquitectura, mudando, pouco depois, para o de Escultura. Ainda estudante, participou nas Exposições Gerais de Artes Plásticas (1947 e 1951) e aproximou-se do Surrealismo. De facto, algumas esculturas deste período, em barro e de pequenas dimensões, reflectem a assimilação de um vocabulário primitivista, sincrético, em que a metamorfose e a transfiguração das formas encontram uma expressão consentânea com as práticas surrealistas.
No entanto, Jorge Vieira não pode definir-se apenas como um escultor surrealista: já em 1948, realizara um conjunto de trabalhos em barro, de dimensões reduzidas, no qual evidenciava o seu interesse pela redução da figura a um núcleo orgânico, sinal elementar traduzido no movimento ondulante do volume polido da terracota.
“ A lírica e a mística do surrealismo seduziram-me na altura e seduzem-me ainda. Sentia-me imanado com essa gente e comecei a fazer coisas, se calhar sem muita consciência, que podiam já filiar-se numa atitude surrealista.”
Essa adesão de Jorge Vieira a uma politica conotada com o surrealismo não o leva, no entanto, a alinhar oficialmente num grupo, a subscrever objectivos programáticos ou a formalizar uma luta de cariz ético ou politico. Também, apesar de ter participado na II e IV exposições gerais de artes plásticas, não alinha pelo neo-realismo, que viria a considerar “assente numa demagogia, num panfleto, numa coisa muito interessante mas que ruiu. Evita os rótulos e mantém uma postura de coerente independência, que lhe permite movimentar-se livremente por entre as propostas radicalizadas de neo-realistas, surrealistas e abstraccionistas, descobrindo as culturas primitivas, mediterrânicas e africanas, que ele próprio considera conduzirem às coisas com mais pureza e mais força, herdando delas o gosto pelos materiais pobres, pelas cores térreas e as formas fantásticas. Mais do que tudo, admira-lhes a capacidade de fazer participar da arte da vivência quotidiana. Esta independência, e a consequente mobilidade, por entre a diversidade formal da modernidade alicerça-se em sólida aliança entre uma tranquila mas instável postura ética e um evidente prazer na manipulação do barro e na exploração das técnicas tradicionais de o trabalhar.
Na sua primeira exposição individual, em 1949, na SNBA, Jorge Vieira expõe pequenas esculturas em terracota de inspiração surrealista, que, também pelo seu grau de abstracção, constituem propostas inéditas no panorama da escultura em Portugal, ao lado das peças que Arlindo Rocha executava no Porto.
A liberdade formal e o humor que percorre estas formas “risonhas” ou “tristes” serão uma constante na obra do escultor, que, no entanto, não se fixará nessa escultura abstracta, recorrendo a ela, episodicamente, sobretudo em trabalhos destinados a lugares públicos; apresenta também figuras humanas, animais e híbridas, mantendo, ao nível da figuração, a mesma liberdade expressiva evidente nas formas abstractas.
Nesta primeira exposição, Jorge Vieira elege já o território em que se irá mover, um território sem fronteiras formais e apenas demarcado pela necessidade imposta pelos materiais, por sua vez frequentemente definidos pela encomenda, mas que, no seu trabalho mais livre, se caracterizam pela maleabilidade do barro ou, mais tarde, a ductibilidade da chapa metálica.
Em 48, havia viajado por Paris e Londres e viera de barriga cheia, visitara o Louvre, o Museu de Arte Moderna, as galerias onde viu Picasso e Braque e o Trocadero, onde começou o “meu amor pela arte africana, que eu acho que é fundamental”
Em 51, viaja novamente, a gora na companhia dos amigos pintor Rolando Sá Nogueira e arquitecto Duarte Castel-Branco. De motorizada atravessam a Espanha, visitam o Sul da França e percorrem a Itália. A viagem não deixa vestígios visíveis na obra, mas antes no seu autor, na maneira de ver a arte, a cultura, a vida.
Em 52, participa no concurso internacional do Monumento ao Prisioneiro Politico Desconhecido com uma maqueta que viria a ser premiada, teria um percurso internacional e viria a concretizar-se, em monumento, em Beja, já em 1994.
O sucesso no concurso internacional terá contribuído para que se lhe abrissem as portas da Slade School of Fine Arts, a escola com mais nome, onde pontificavam Reg Butler e, de vez em quando, o próprio Henry Moore.
Em Londres, a aprendizagem far-se-á a outro nível, num ambiente bastante mais estimulante do que o de Lisboa, com gente muito interessante. Estabelece amizade com o escultor F. E. McWilliam, professor na Slade que partilhava com Jorge Vieira uma maneira de encarar as situações marcada por um espírito de independência, temperado por uma ironia, e aligeirada por um desenvolvido sentido do absurdo. Revê-se também na atracão que ambos sentem pela “abstracção biomórfica”, bem como numa certa afinidade McWilliam pelo surrealismo, apesar de ambos, enquanto movimento, ele deixar de interessar. Trava igualmente contacto com Henry Moore que, numa das suas visitas à Slade, utiliza o trabalho em curso de Jorge Vieira para uma das suas lições.
Em 55 e 56 expõe, colectivamente, em Londres, na Hanover Gallery, e de regresso a Portugal, expõe na Galeria Pórtico, com António Areal e Carlos Calvet, algumas das suas esculturas mais vincadamente surrealistas, em sintonia com os dois pintores que o acompanham e exemplares do seu trabalho da década de 50. As referências ao corpo são evidentes, afastando-se contudo da fidelidade anatómica para apresentar um vocabulário umas vezes inquietantemente abstracto, outras de anatomias sincopadas, deslocadas, ou simplesmente inventadas.
Nos anos 60 e 70, alguns trabalhos orientam-se para uma concepção de teor construtivo. Uma composição de três pilares em cimento, revestidos com planos geométricos de bronze, é a opção escolhida para a escultura do Tribunal do Redondo (Alentejo), em 1965. O agenciamento dinâmico de planos geométricos, em chapa de aço, é retomado em 1972, noutra obra executada para o Laboratório Nacional de Engenharia Civil de Lisboa. O cinetismo – já antes ensaiado no barro – manifesta-se na estrutura da peça, de configuração assimétrica e instável.
Mais tarde (anos 70 e 80), Jorge Vieira recupera a figura humana, novamente numa dimensão onírica e surreal. Com ela, cria combinações insólitas (com várias peças), em que os corpos aparecem sobrepostos, desmembrados ou mutilados, como no Violoncelista Decapitado (1981), pertencente à colecção do
CAMJAP.
No conjunto, a obra de Jorge Vieira reflecte a consolidação de um programa alheio às formulações tradicionais da escultura como “monumento”. Este carácter anti-apologético das formas assinala-se também na ausência de plintos ou pedestais: o objecto dá-se a ver na continuidade do espaço que o envolve ou atravessa, sem ruptura de níveis, como se pode ver na obra Sem Título (1966), pertencente à colecção do CAMJAP: a escultura, uma armação de hastes em ferro soldado, não é massa compacta e fechada, mas oferece-se ao olhar e ao próprio espaço físico que a penetra (processo já utilizado em Rã, de 1957).