Espelho do Mundo traça a evolução das artes visuais através do tempo e do espaço, derrubando fronteiras entre tribos, países e religiões, oferecendo-nos uma análise – transversal e intercultural – da diversidade das obras de arte e do modo como estas podem relacionar-se entre si ou mesmo enraizar-se umas nas outras e nos respectivos contextos sociais e políticos.
Os seres humanos contam histórias, e os seres humanos fazem objectos para fascinar os olhos. Por vezes, estas histórias dizem respeito a esses objectos. Este tipo de narrativa, a que se chama história de arte, nasce do desejo de alguém imaginar como seria viver numa outra época, e de se surpreender com o que essas mãos fizeram. Os historiadores de arte procuraram também explicar por que motivo os objectos são feitos de diferentes maneiras, consoante a época e o lugar. É isso que este livro pretende fazer.
Porém um relato deste tipo tem uma dificuldade inerente. Uma obra de arte procura captar e prender a nossa atenção: uma história de arte impele para a frente, desbravando o caminho através dos territórios da imaginação. Numa história de arte de âmbito geral, como esta, a tensão pode ser constante. A cada passo, o narrador e o ouvinte sentirão o desejo de ter um pouco mais e olhar por mais tempo.
Porquê então insistir neste modelo? Vivemos sufocados por imagens. Em todo o mundo, ruas e ecrãs oferecem um amontoado de informação visual diverso e desconexo. Somos confrontados com uma amálgama de citações artísticas – Japão do séc. XIX, França do séc. XIII, Roma do séc. XVI, Austrália aborígene – e seria bom conhecer o vocabulário necessário de onde veio o quê. E também seria bom compreender a sua gramática. Como se relacionam entre si as imagens? Como se enraízam na experiência alheia? O que temos em comum com os seus autores?
Perguntas como estas geram histórias, e não certezas científicas. A história que se segue é contada por alguém, na Inglaterra do início do séc. XXI, que tenta abarcar milénios de confecção de objectos em seis continentes, esperando que, nessa base, o leitor possa continuar as suas próprias histórias. É mais uma introdução geral a objectos e temas da história da arte global do que um conjunto de conclusões acerca delas. Não pretendo definir ou redefinir o que constitui a arte, mas descreve r a sua gama de conteúdos correntemente aceite. O objectivo é mais a amplitude do que a profundidade, a abertura do que o rigor.
Porém, o método desta obra poderia ser considerado relativamente minucioso. A narrativa será urdida em torno de objectos cuja reprodução me parece surtir um bom resultado na página. A arte não se resume a uma questão de imagens compactas e fáceis de enquadrar, embora o leitor possa ter essa impressão aqui. Neste aspecto, tenho de admitir um preconceito pessoal.
Empreendi esta tarefa depois de uma vida inteira a pintar. Como tal tenho o hábito de estar numa sala perante um dado objecto que, espero, venha ater ter uma vida e uma fala própria. Nesta obra, encaro as imagens da mesma maneira: o tipo de arte sobre a qual ela incide é menos o que nos rodeia – um ambiente, edifícios, decoração, utensílios, trajes, adornos – do que aquilo com que nos confrontamos, desde a pintura até às estatuetas e monumentos. A imobilidade de cada imagem introduz outra limitação à discussão.
Ao escrever este relato, trabalhei segundo três regras gerais. Primeiro, se não houver maneira de mostrar uma coisa, mais vale não a referir. Escolher algo como trezentas e cinquenta obras para abarcar a história de arte mundial significa um exercício de equilíbrio difícil. Muitos ficarão decepcionados com o que ficou de fora; outros, aborrecidos por eu citar demasiados nomes, sem lhes dar um rosto. Quando se revelou imprescindível referir o nome de alguma figura ou fenómeno importante que não podem ser ilustrados, optei por uma politica de “parece-se bastante com”. Noutros casos, preferi ignorar o que não posso apresentar.
Segundo, manter a sequência cronológica. Esta directiva vantajosa para o leitor nem sempre se revelou possível em absoluto, pois a análise oscila entre um país e outro, mas espero que isso, se funcionar, dê uma perspectiva dos contrastes de região para região, bem como das afinidades entre culturas.
O meu título, Espelho do Mundo, indicia a terceira das minhas premissas. Entendo a história da arte como uma moldura dentro da qual vemos continuamente reflectida a história universal em toda a sua amplitude – e não como uma janela que se abre para um reino estético independente. Admito que os registos das alterações artísticas estão relacionados com registos de alterações sociais, tecnológicas, politicas e religiosas, por mais invertidos ou reconfigurados que se mostrem estes reflexos.
Os espelhos só podem funcionar com a luz que recebem, embora possam mostrar-nos as coisas de um modo diferente. O meu título indica também o que quero crer – que as obras de arte podem revelar realidades de outro modo invisíveis e actuar como molduras da verdade. Contudo, é sobretudo o modo como são feitos esses objectos, e não o seu estatuto último, que irá dominar a história. A principal razão por que me interesso pela história de arte é o facto de ela parecer tornar-me mais próximo de certas coisas extraordinárias e das pessoas que as fizeram.
Perguntas, confluências
Europa, 1909-1914
Porque na realidade, a arte consiste em objectos elaborados de maneira requintada, não é verdade? Objectos que demonstrem o seu valor intrínseco: não é isso que o mercado procura? Assim, todo o artista deveria criar um nicho para produtos profissionais, fosse qual fosse o seu modo de expressão.
A “imitação da natureza”, essa velha receita europeia para a pintura, deixara de ser relevante.
As doutrinas da “nova era” ganharam ímpeto e maior visibilidade com a chegada do séc. XX. Por volta de 1910, estavam em marcha muitas incursões na música visual pura, na “abstracção”, entre os artistas da Europa Ocidental e Oriental – o Checo Frantisek Kupla e o Lituano Mikalojus Ciurlionis, para mencionar apenas dois. O momento de ruptura de Kandinski, como ele próprio o descreve, ocorreu quando uma noite entrou no estúdio e viu em cima do cavalete uma “imagem da indescritível e incandescente beleza que não representava nenhum objecto identificável”. Não reconhecera uma das suas vibrantes paisagens, que se encontrava virada de lado. Desse momento em diante, deduziu Kandinski, a pintura podia passar sem a representação. A elegância visual que impregna composição VII a sua obra principal de 1913, inspira-se indubitavelmente nos ornamentos folclóricos Russos, com as suas encantadoras cores vivas, não obstante, insistiu ele, todos os elementos ditados pelo espírito, e estavam repletos de intenção simbólica.
O mundo visível não se evaporava simplesmente nesta nova arte. As suas essências haviam sido destiladas e libertadas, como fórmulas com as quais se podia construir um novo universo pictórico. Elas não eram senão aquelas coisas que o olhar adora fazer: reconhecer contrastes, discernir imagens e formas limitadas, vaguear, focar e retorcer, mergulhar nas intensidades da cor, precipitar-se e saltar para o lado. Durante um período concentrado de quatro dias, o pincel de Kandinski agitou-se sobre a enorme tela de 3 metros, com a alegre inocência de uma abelha a explorar uma flor.
Aquém da visão, além da visão
Outras iniciativas dos anos vinte reflectiram o construtivismo Russo. Na Holanda, formou-se um grupo de desenho de vanguarda ao redor da revista De Stiff em 1917, enquanto na Alemanha Walter Gropius criou a seminal de desenho progressista e social quando fundou a escola conhecida como a Bauhaus em Weimer em 1912. Em ambos projectos participaram pintores. Piet Mondrian foi um dos membros mais importantes do grupo Holandês; como outros muitos visitantes de Paris dos anos dez, este paisagista e teosofo havia-se inspirado nos experimentos dos cubistas. Do que havia feito Picasso e Braque sugeria um podia analisar sistematicamente as pistas que nos dava a visão. Se dispôs a recortar os componentes das imagens das suas paisagens tal como Brancusi recortava suas figuras, e com intenção parecida: quanto mais perto se está da simplicidade, mais se aproxima de um ideal espiritual. Em 1920, ficou-se com uma gramática de signos absolutamente mínima: linhas verticais, linhas horizontais e cores primárias. A sequência de explorações que o levou a esta abstracção parecia proceder com uma lógica redutora inexorável.
A partir desse momento o único caminho para a frente consistia em começar a construir de novo. Na Composição I: com vermelho, negro, azul e amarelo de 1921, Mondrian pedia ao olho que se centrara na sua própria capacidade para julgar as relações e os equilíbrios, e em seu próprio desejo de claridade. Inicialmente, o exercício parece vigoroso, refrescante, deslumbrantemente frio (ressurge esse velho gosto Holandês pela austeridade que vimos anteriormente em Vermeer). E logo astutamente, começa a conquistar. O rectângulo fechado no centro e seu primo maior no canto superior esquerdo dirigem a dança dos espaços, e tudo parece girar à sua volta, como se estivessem catalisando uma reacção química, uma explosão de ordem. Os vermelhos, negros e amarelos abrem-se ao mundo mais além do bordo do quadro, projectando o meio redesenhado que lhe gostava sonhar a De Stijl fazia os espaços indefinidos que estão fora. Talvez a abstracção fosse na realidade um paralelismo recém-criado com a pintura figurativa, um modo mais potente de induzir ilusões.
A Bauhaus, na Alemanha, pretendia conseguir uma honestidade progressista e estabeleceu normas para um desenho de linhas limpas, ergonómicamente eficiente que seria imitado em todo o mundo. No entanto a sua história interna, ao longo de 12 anos de funcionamento e das mudanças de localização, oscilou por causa das tormentosas tensões entre a série de carismáticos inovadores que ali se encontravam. Um deles foi Vasily Kandinsky, que se uniu a eles com um amigo que havia conhecido em Munique anteriormente à guerra, Paul Klee. Klee – uma presença seca e obstinada o pessoal – levou a cabo uma honrada investigação visual de enormes implicações. Daria às aspirações democráticas da escola um nível totalmente novo de superação.
Paul Klee, Máquina de Chilrear de 1922
Como Kandinsky, a Klee interessava-lhe relacionar a pintura com a música, mas trouxe uma inteligência mais analítica ao tema. Tal como Mondrian, Klee separava e isolava os componentes fundamentais da realização de uma pintura. Mas nas suas mãos convertiam-se numa caixa de joguetes. Jogava, testando muitas coisas sem limites. Nos seus desenhos e aguarelas, o pensamento lógico académico estendia uma mão e comungava com as anomalias da imaginação solitária que descobria dignidade nos rabiscos e um poder ressonante no frágil e no trémulo. As investigações de Klee iam a par com as da psicologia, que era uma ciência em expansão. A partir de 1900 em diante, os investigadores haviam aberto os olhos à arte infantil e dos doentes mentais. Uma espécie de empatia recorre o encanto louco de um experimento a caneta e aguarela como a Máquina de Chilrear; em certo sentido, qualquer um que se arrisque a pôr a sua imaginação sobre o papel, quer seja habilidoso ou não, está arriscando-se ao absurdo. O título contem o que Klee se havia encontrado a si mesmo fazendo: um aparelho geométrico que floresce organicamente, estalando numa canção. De facto, esta folha de 1922 instala-se com uma reciprocidade entre o duro e o mole que havia começado a ressonar através do campo da arte “avançada”. É um eco inocente do trabalho mestre muito mais amplo, infinitamente mais frio do absurdo sexual mecânico a que Duchamp dedicou a sua ingenuidade entre 1915 e 1923, o chamado Grande Vidro, um dos grandes buracos negros que tudo absorve da interpretação da arte moderna.
Mondrian e Klee, com o seu desejo de reeducar o olhar, parecem pôr em dúvida toda a possibilidade de pintar com base na observação