Vanessa Rato entrevista
Charles Esche (Público 22/12/2014), diretor do conhecido Van Abbemuseum.
É preciso uma arte útil, uma
arte que possa liderar o processo de reconstrução do Estado, hoje em ruína.
Na conferência que na semana
passada deu na Fundação Calouste Gulbenkian, Charles Esche comparou o
descalabro do conceito de Estado na Europa a uma cidade após um terramoto de
grande escala: num edifício tudo parece intocado e a funcionar, o prédio ao lado,
porém, foi-se – abrimos a porta e percebemos que a fachada guarda apenas uma
ruína, um buraco cheio de escombros.
Isto já aconteceu,
constatamo-lo todos os dias, a cada passo. Agora resta reinventar. E Esche acha
que os museus e teatros podem tomar as rédeas desse processo. Os tempos da arte
pela arte acabaram – é preciso uma “arte útil”, diz ele. Um demagogo? O que ele
diz é: “Eu sei que pareço um marxista enfurecido, mas não sou, sou apenas
realista.”
Há dez anos à frente do
conhecido Van Abbemuseum, de Eindhoven, na Holanda, e um dos responsáveis pela
Afterall Publishing, que fundou em 1998 com o artista plástico Mark Lewis,
Esche foi este ano um dos comissários da Bienal de São Paulo, depois de ter
feito a de Gwangju (2002) e a de Istambul (2005). Fundador, em 2010, da
Internationale, uma confederação de museus europeus, foi apontado pelo Center
for Curatorial Studies do Bard College como o bolseiro de 2014 do Audrey Irmas
Award for Curatorial Excellence, antes atribuído, por exemplo, a Harald Szeemann,
Catherine David, Okwui Enwezor ou Lucy Lippard.
O Estado, ou os Estados,
entraram em crise existencial. Uma crise de um tipo que já não se via há
bastante tempo – provavelmente desde o fim do século XVIII, com o nascimento do
conceito de Estado-nação. Diria que a combinação do projecto europeu com a
globalização do capital e a perda de soberania – que é muito clara em Portugal
mas é visível por todo o lado desde o início da actual crise, em 2008 –
produziu um desafio fundamental: a ideia de Estado, tanto em termos de
estrutura identitária, como em termos económicos e de estrutura social, que
define um grupo de pessoas como cidadãos e lhes atribui direitos e
responsabilidades, essa noção de Estado – que até certo ponto nasce da
Revolução Francesa, mas que também deriva do estabelecimento da
social-democracia na Europa do pós-guerra e que foi o modelo até agora
dominante na Europa –, está ameaçada. Não é um fim que se possa propriamente
celebrar. Em muitos sentidos, torna a vida mais difícil. Mas, através de várias
manipulações e fracassos da social-democracia – manipulações através dos mass
media, mas também fracassos do próprio Estado – a ideia de Estado parece, de
facto, em decadência. E não vejo forma de que possa ser salvo de si mesmo na
forma que até agora lhe conhecíamos. Os objetivos desse Estado talvez ainda se
possam salvar. Mas é preciso que sejam traduzidos para novos suportes.
O fracasso do Estado em se
adaptar a contextos e necessidades em mutação, ao fracasso do modelo do Estado
providência, dos serviços nacionais de saúde, da ideia de que a cidadania é
partilhada pelas pessoas e que, portanto, todas têm certos direitos, a própria
ideia dos direitos que derivam de uma cidadania e dos deveres que lhe estão
associados... No fundo, estamos a afastar-nos de uma estrutura democrática e a
retomar um modelo oligárquico em que um pequeno grupo de pessoas organizam a
maior parte das decisões e em que os governos, que não estão completamente em
controlo, se alinham com essas decisões. Presume-se que um Estado tem um
Governo e que o Governo determina o que acontece nesse Estado. Acontece que
esta oligarquia é transnacional, é global, e é a nível global que opera. Se um
Estado diz: vamos tentar lidar com esse problema, por exemplo, criando impostos
mais altos para as atividades dessa oligarquia, ela diz: ah, bom, então vamos
para outro Estado, o problema é vosso. Neste sentido, o Estado já não opera da
forma que costumava. E isso nos últimos anos tornou-se óbvio para todos nós.
Portanto, é o Estado que está em apuros.
Um dos conceitos para que me
parece que devemos olhar com atenção é o dos “commons”, um conjunto de valores ou de bens que não têm um proprietário
individual, mas coletivo. O Estado manteve para si durante muito tempo a ideia
de “commons”, agora parece-me que há
oportunidade de generalizar a ideia de propriedade coletiva. E parece-me que as
próprias instituições artísticas incorporam já em si o conceito de “common”. As coleções dos museus, por
exemplo: de certa forma, são já propriedade partilhada. Apesar de esta ser a
Fundação Calouste Gulbenkian e de, basicamente, pertencer à família Gulbenkian,
a forma como foi criada permitiu que todos os portugueses sintam alguma
propriedade sobre ela. E é ainda mais assim em relação a uma coleção num museu
nacional. Portanto, há uma ideia de “common”
já inscrita nas instituições artísticas. E esse é um legado sobre o qual
podemos construir. Outra coisa é esta estranha função que a arte manteve em
toda a sociedade democrática e burguesa que é assumir-se como um espaço de
liberdade, um espaço de experimentação. Não é um valor universalmente
partilhado, mas é uma assunção comum que a arte é uma esfera onde são
permitidas coisas que não são permitidas noutras esferas – a maior parte das
pessoas dirá que é importante que a arte seja livre e que os artistas possam
fazer o que querem. E isto é uma coisa de que nos podemos aproveitar. Podemos
instrumentalizar a ideia de autonomia inscrita na aceção ocidental de arte, que
é que a arte faz as suas próprias regras. Podemos instrumentalizar isso para
ajudar a resolver a questão do fracasso do velho Estado social e das estruturas
do Estado em geral.
Vivemos tempos assustadores,
precisamos de conceitos assustadores para lidar com eles. Essa autonomia é uma
posição que a sociedade nos permite ocupar – então vamos usá-la, vamos
aproveitar o facto de podermos usufruir dessa liberdade! Temos uma condição
diferente da das instituições de educação, por exemplo, que são altamente
instrumentalizadas. O tipo de educação que se oferece está hoje diretamente
ligado aos mercados, exatamente como acontece em tantos outros sectores da
sociedade que já pertenceram ao Estado e foram entretanto privatizados, ficando
nas mãos da mesma oligarquia internacional de que falava há pouco. O mundo da
arte, à sua pequena e impotente escala, é ligeiramente diferente. O que peço é
que usemos essa diferença.
A arte se oferece como
espaço para a experimentação. E defendo essa ideia de experimentação. Mas digo
que ela não deve ser apenas estética, deve também implicar-se em termos de
organização social. De novo: é qualquer coisa que os puristas, os modernistas,
vão rejeitar, mas se virmos a arte como tendo uma função, uma delas tem que ser
imaginar qualquer coisa que ainda não existe. Isto é necessário e verdade em
qualquer processo criativo, quer seja socialmente criativo, individualmente
criativo ou mesmo criativo em termos capitalistas, de criação de um novo
produto: o processo de imaginar o que ainda não existe é fundamental – se não
conseguimos imaginar, será muito difícil criar. E o que estou a dizer é que se
o espaço da arte é já imaginar coisas diferentes das que existem, então porque
não imaginar a sociedade? Porque não imaginar uma sociedade diferente da que
temos e não apenas aplicações para um vermelho ou verde?
Uma das grandes questões nos
museus é o que fazer com a herança que recebemos – as nossas coleções. No Van
Abbemuseum temos uma coleção de arte moderna. Uma das perguntas é como podemos
torná-la mais atual, mais contemporânea. Limitamo-nos a mostrá-la? Quer seja um
Sol LeWitt ou um Lawrence Weiner, mostrar e dizer: ‘Esta era a cultura que
existia nos anos 1970; não era maravilhoso?’ Da mesma maneira que podemos
mostrar uma urna grega e dizer: ‘Não era fantástica esta cultura?’ Ou será que
podemos tornar a coleção relevante face a conceitos contemporâneos? Uma coisa
que fizemos com um coletivo dinamarquês, os Superflex: eles copiaram um dos Sol
LeWitt da coleção e depois distribuímos as cópias gratuitamente aos visitantes.
O que aconteceu foi que a ideia de uma obra de arte conceptual, que se
materializou num objeto com um valor de mercado, voltou à sua matriz conceptual
– porque o que o Sol LeWitt dizia que importava era a ideia, não o resultado material
dessa ideia. Neste projeto, voltámos à ideia original e tentámos atualizá-la
para o público de hoje. As pessoas puderam realmente levar uma obra de arte
para casa. Houve um momento maravilhoso em que se via as pessoas a saírem do
museu com uma obra de arte na mão. Que é o oposto do que um museu é suposto
fazer, que é proteger tudo, garantir que não foge. Nós, na verdade,
escancarámos as portas. E ao quebrar os protocolos que dizem que não se
distribuem as obras de arte dos museus pelo mundo, começámos a atualizar o
potencial que existe nessas obras. É um exemplo. Haveria muitos.
A arte pela arte existiu
dentro de uma estrutura socio-politico-económica específica, um contexto de
excesso produzido pela burguesia, que achava que a arte não devia ter uma
função porque a sociedade era rica ao ponto de poder conceber um fora do
utilitarismo. Nessa sociedade, a arte recebeu um papel específico, um papel
que, à sua maneira, também era político. E no período da Guerra Fria essa arte
pela arte foi instrumental, servia para provar a liberdade do mundo ocidental
por oposição à instrumentalização que o leste fazia da arte e dos artistas.
Portanto, tanto em tempos mais recuados como mais recentes, essa ideia existiu
em contextos muito específicos. Contextos que já não existem. Faz muito pouco
sentido em 2014. E a sua sobrevivência até agora foi, na minha opinião, um
acidente histórico, um lastro deixado por regimes anteriores.
No museu usamos a expressão
espanhola “arte útil”. A ideia da arte como ferramenta [porque, em castelhano,
“útil” quer também dizer ferramenta] parece-me mais sedutora do que a ideia de
uma arte utilitária. Creio que transmite bem a capacidade da arte em assumir um
papel funcional dentro das estruturas de pensamento. E isto implicará
determinadas características: uma arte útil terá uma relação real com o mundo,
não será apenas simbólica, não usará apenas uma linguagem simbólica, mas fará
propostas reais para mudanças reais do mundo real, satisfará talvez uma
necessidade ou produzirá um resultado com efeitos fora das instituições da arte.
Isto tem antecedentes. Certas formas modernistas, como as ligadas às vanguardas
russas, estão muito ligadas a ideias como estas. E se formos até ao século XIX
temos as propostas do [crítico de arte e social britânico] John Ruskin, ou as
do [artista e fundador do movimento socialista inglês] William Morris, em
resistência à industrialização. Um conceito como o de “arte útil” recorda que a
arte pode ter uma função genuína na sociedade. O lugar que ocupava e as funções
que tinha no Estado-nação da social-democracia estão a desvanecer-se, tal como
essa ordem do mundo. Temos que encontrar novas justificações para o papel da
arte e acho que esta é uma delas.
Se pensarmos que um Jackson
Pollock foi profundamente instrumentalizado pelas políticas do período da Guerra
Fria, não sei onde fica essa arte pela arte sem uma relação com a sociedade,
sem um papel social. Não me parece que a noção do “espectador desinteressado”
ainda seja especialmente válida. Não me parece que hoje ainda seja possível
ocupar a posição de alguém que pode produzir julgamentos estéticos tendo por
base o seu “desinteresse”, a sua exterioridade e neutralidade. Vivemos tempos
de necessidade, tempos em que temos que perceber o papel da arte. E ela sempre
teve um papel, nunca foi não instrumental. A única questão é que durante muito
tempo nos recusámos a ver isso. Em suma: acho que a questão é como é que
instrumentalizamos a arte e não se podemos instrumentalizá-la.
Quando falamos da crise, no
singular, parece haver apenas uma [a financeira e económica]. Não é verdade.
Uma das crises é ambiental. Algumas pessoas não aceitam a sua existência, mas,
genericamente, vemos que os recursos de que precisamos para viver bem exigem
sistemas de valores e padrões comportamentais diferentes [dos que temos vindo a
adotar]. Depois, também há uma crise política, uma crise de representação – os
políticos já não nos representam. Diria que a maior parte das pessoas que
viveram as velhas democracias não sentem que o atual sistema seja
representativo delas ou das suas comunidades de forma eficaz – o Syriza
[coligação de esquerda grega] ou o [partido espanhol] Podemos são exemplo da
forma como continuamos a batalhar por uma representatividade, mas o próprio
sistema reage contra. É uma tragédia, mas acho que temos que ser honestos:
estamos a encaminhar-nos para uma pseudodemocracia em que os pseudo processos
eleitorais e os sistemas de pseudo representatividade mascaram uma oligarquia.
Uma oligarquia sendo um grupo de pessoas bastante fixo – o chamado 1%, a classe
dominante – que basicamente manipula as decisões políticas de forma a que os
seus interesses sejam protegidos acima de quaisquer outros. Acho que, neste
momento, todos vemos isto e percebemos que essa oligarquia se mantém intocada.
Mas, paradoxalmente, a força e poder dessa oligarquia também se tornaram
maiores. Se olharmos para as consequências da crise, constatamos que a
oligarquia maximizou o seu potencial de rendimento. Fê-lo às custas da maioria
das pessoas. E os media e a maioria das forças de persuasão usadas para nos
convencer de que isso é aceitável dedicam-se a proteger esses interesses. Ou
seja: vivemos tempos oligárquicos, a questão é o que vamos fazer a esse
respeito.
Ao levar o Estado a
retirar-se [a oligarquia] alarga cada vez mais o seu espectro de atuação. A
maioria dos museus foi criada a partir de fundos públicos – e isto tanto é
verdade para os Estados Unidos, com os incentivos fiscais, como para a Europa,
com o financiamento público direto. Entretanto, começaram a abrir cada vez mais
museus privados. O que levou a uma explosão brutal do mercado da arte, que foi
uma consequência do excesso de riqueza que a oligarquia produz. E como o
domínio público tem muito menos riqueza do que o privado, torna-se cada vez
mais difícil reter certo tipo de obras nos museus públicos. Ou seja, o
interesse coletivo começou a ver-se cada vez menos representado, em prol dos
interesses dos colecionadores privados. E houve uma mudança nas estruturas de
poder nos museus, que passaram da dependência de estruturas democráticas como
as câmaras municipais e os ministérios da cultura para a dependência de
conselhos administrativos normalmente compostos por membros diretos da
oligarquia. As fundações privadas, por exemplo: uma vez mais, são instrumentos
usados pela oligarquia para libertar alguns dos seus lucros, algum do seu
excesso financeiro. E os museus estão cada vez mais nas mãos destas figuras
oligárquicas. Dantes, para verem os seus projetos financiados, os diretores dos
museus tinham que ir em visita suplicante a ministros democraticamente eleitos,
agora têm que ir em visita suplicante a oligarcas.
Em qualquer das grandes
feiras de arte contemporânea, seja em Miami, Basel ou Hong Kong, vemos as
consequências estéticas disto. Obras reluzentes, planas, superficiais, grandes.
Sobretudo, obras de grande escala, feitas para grandes palácios. Ainda há pouco
tempo ouvi alguém comentar que a verdadeira felicidade de comprar uma obra de
arte reside na negociação do preço e no momento de vanglória ao jantar. O objeto,
aqui, não é grande coisa – o que importa é o processo de consumo. O que, em
parte, é verdade: o capitalismo construiu uma lógica de consumo em que um objeto
nunca é tão desejável como no minuto exatamente antes de o comprarmos; no
momento em que o compramos surge uma sensação de desilusão. Isto acontece em
grande escala nas oligarquias. A grande emoção está no objeto que se segue. E
claro que isso determina o facto de o [conhecido artista plástico britânico]
Damien Hirst poder fazer uma caveira de [platina e] diamantes [que o artista
disse ter sido vendida por 63,8 milhões de euros]. Pode porque esta estrutura
lho permite. É óbvio que o domínio oligárquico tem consequências estéticas. Mas
a estética e a ética estão muito ligadas: são também decisões éticas as que os
artistas estão a tomar ao decidirem contribuir para esse sistema.
Damien Hirst e alguns
teóricos dirão que a caveira é, na verdade, uma crítica ao sistema. E até certo
ponto é. No sentido em que qualquer sociedade decadente produz uma arte que,
retrospetivamente, poderá sempre ser vista como crítica do seu contexto. Assim,
seguramente que o século XXI tardio olhará para tudo isto dessa forma. A
maioria da arte a ser feita hoje poderá ser vista assim. Os Damien Hirst e Jeff
Koons, gente assim. Que realmente capturam o sabor deste momento, sem dúvida…
O que me interessa não são
tanto os objetos, mas os próprios processos da arte e o que eles possam
possibilitar. E o Damien Hirst e o Jeff Koons também poderão possibilitar
certas coisas. Mas menos do que os artistas a trabalhar hoje em contextos muito
específicos no nordeste do Brasil, por exemplo, ou no Líbano, ou artistas maori
da Nova Zelândia. Interessam-me as culturas onde há um sentido especial de
relação à terra e à história mas onde, ao mesmo tempo, se tenta transcender
isso, construir um diálogo entre a experiência da maioria da raça humana e uma
noção de existência planetária, um discurso que leva em consideração as
condições ambientais em que vivemos e a dureza da história de dado lugar.
Trabalhos que lidam com a complexidade destas relações são os que me
interessam, porque acho que são aqueles que antecipam um futuro. No fundo, acho
que são uma vanguarda, enquanto os Damien Hirst e os Jeff Koons são o “mainstream”. No fundo, estou à procura
do que será, em vez de daquilo que já é.