Após
a passagem pela Escola Industrial Faria de Guimarães, Arlindo Rocha iniciou o
Curso Especial de Escultura, na Escola de Belas Artes do Porto, numa altura em
que o ensino nas Belas-Artes, implicava uma formação inicial, fundada nos
valores do desenho, proporcionando aos alunos, depois de quatro anos de aulas
intensivas de desenho de cópia, iniciarem o estudo de modelação, igualmente
através da cópia do antigo; logo depois de concluir o Curso Especial, Arlindo
concorre ao Curso Superior de Escultura na mesma escola. Acompanhando uma
reforma de ensino, que visava modernizar o mesmo, Arlindo Rocha foi aluno de
professores como Rodolfo Pinto do Couto, Carlos Ramos, Dórdio Gomes e Joaquim
Lopes.
Nesta época, o responsável pela disciplina de
Escultura é Rodolfo Pinto do Couto (1888-1945); discípulo de Teixeira Lopes,
Pinto do Couto foi, enquanto pintor e escultor, um fiel seguidor do ensino das
normas clássicas, apresentando como programa para o curso de Escultura um
estudo aprofundado da figura humana, dando continuidade à Escola do seu Mestre,
que viria desde Soares dos Reis.
Durante cinco anos, os alunos respondiam aos
vários exercícios de cópia dos modelos do antigo, modelando em barro pequenas
estatuetas, as quais ao longo do curso evoluíam para exercícios de maior porte.
O barro, dotado de uma grande plasticidade, oferece pouca resistência ao
movimento da mão, livre de grandes cuidados, ou de grandes utensílios para ser
trabalhado, tornando-se na matéria de eleição para os estudos de escultura,
permitindo uma evolução gradual no trabalho de imitação de referentes naturais.
Esta matéria, capaz de satisfazer as duas mais importantes condições para um
escultor – sujeitar-se a todas as formas que lhe precisa de dar e conservar
essas formas de maneira quase inalterável – convertendo-se no material de
eleição para estudos de escultura, possibilitando ainda a realização de
exercícios de pequena, média e grande escala.
A aprendizagem do corpo humano
iniciava-se com estudos que partiam da cópia de fragmentos de cabeças e
extremidades do corpo humano em gesso, retratados numa primeira fase, em
exercícios de relevo, onde os alunos tinham como objetivo aprofundar o domínio
dos contornos aparentes e volumes ilusórios cuja preocupação recaía em maior
parte sobre a vista frontal do relevo, podendo então o aluno evoluir, mais
tarde, para figuras de vulto redondo, no qual o estudo de perfis é mais
aprofundado. Da observação e representação do pormenor, os alunos chegavam à
composição da figura completa no fim do curso, para além das cópias dos modelos
de gesso antigos, sendo que, apenas no terceiro ano, se introduzia o estudo do
modelo vivo, proporcionando assim aos alunos um domínio pleno na representação
das formas do real. Na escultura, os materiais definitivos mais habituais são a
pedra e o bronze, apesar de nesta altura estarem a ser introduzidos materiais
industriais ou alternativos, considerados como materiais pobres.
O atraso na
procura de materiais ditos modernos para a realização de escultura está
relacionado, por um lado, com o facto de Portugal se encontrar “fechado” às
evoluções a que se assistia na Europa, e, por outro, com a ausência de
disciplinas tecnológicas nas Escolas de Belas Artes. Seguindo o modelo de
programa idêntico ao das escolas francesa e italiana, não cabia à Academia
passar o conhecimento das tecnologias da escultura como a pedra, a madeira ou a
fundição. Podemos dizer que a escultura era tida apenas como modelação.
A
preocupação de maior, seria induzir os alunos em disciplinas teóricas, como a
Composição, deixando de parte as técnicas de “reprodução”. O talhe direto não
era entendido como possibilidade de execução de obra final, mas sim como um
meio ou técnica de reprodução da peça original, modelada. As técnicas da
escultura eram por isso entregues a profissionais especializados, que muitas
vezes tinham formação enquanto escultores, mas que carregavam em si uma
tradição antiga e familiar de canteiros e santeiros, cujos usos e costumes os
dotavam de uma sabedoria inalcançável em tão poucos anos de curso numa Escola
de Belas-Artes.
Os alunos de escultura, após a realização dos seus modelos em
barro, acompanhavam o trabalho de formadores, responsáveis pela realização dos
moldes, permitindo depois a passagem a gesso do estudo inicial. Porém, o gesso
não oferece a mesma durabilidade que uma matéria nobre; aprender a dominar uma tecnologia, como
a pedra ou o processo da fundição, era apenas possível àqueles que conseguiam
estagiar posteriormente no ateliê de grandes mestres, que passavam aos seus
discípulos os saberes, a tecnologia e as ferramentas adaptadas que evoluíam a
grandes passos, tornando o trabalho de desbaste ou de fundição cada vez mais
simplificado e rápido, o que irá influenciar em parte a tendência de síntese e
de procura de uma linguagem pessoal do artista.
Logo
após a morte de Pinto do Couto, Barata Feyo (1899-1990) toma o lugar de regente
da Escultura, provocando uma série de alterações pedagógicas, iniciadas em
1949, com o objetivo de alargar o fechado ciclo académico em que o ensino da
escultura se encontrava. Com a ação criativa e pedagógica de professores como
Carlos Ramos, Joaquim Lopes e Dórdio Gomes, os alunos obtêm uma maior
tolerância ideológica, a qual unida às iniciativas de exposições, que se
realizavam de forma a unir professores e alunos numa arte tida como vanguardista,
dão corpo à tentativa de modernizar o ensino portuense face à escola de Lisboa,
onde se viviam os valores e as bases académicas seguidas por Simões de Almeida,
Tio e Sobrinho e depois por Leopoldo de Almeida. Contudo, o ensino do Porto
apenas pode ter em conta o alargamento dos ensinos da escultura, que então se
encontrava em expansão, e que dera origem à construção de novos pavilhões, que
tinham como objetivo introduzir os alunos nas mais variadas tecnologias. Os
valores e as disciplinas teóricas permaneciam com a mesma ligação aos valores
clássicos, apenas traduzidos em soluções modernas. A aprendizagem e as próprias
avaliações deixam de estar balizadas por exercícios de modelos, podendo o aluno
explorar e aprofundar novos temas e problemas da arte que surgiam em simultâneo
com as vagas modernistas que se praticavam de forma vigorosa fora do país.
A
formação académica de Arlindo Rocha acaba por ser levada, involuntariamente,
pelos caminhos do «ensino hermético da morfologia humana», como podemos
observar nas esculturas que realiza durante este período, dotadas de uma grande
influência clássica, próximas do cânone grego, como é o caso de Juventude, um
retrato de colega passado a gesso, baseado num processo de mimese; ou seja,
através da representação direta, onde a idealização formal vai ao encontro do
belo, carecendo a obra de elementos capazes de caracterizar o “estilo” do
escultor. Curiosamente, passados quatro anos, Arlindo volta a este mesmo tema,
idealizando um outro retrato intitulado igualmente de Juventude, onde tenta, de
uma forma primária, libertar-se de volumes concretos que compõem um rosto
humano. Desta vez, o rosto é feminino, composto de planos facetados, resultando
de uma sintetização de formas e volumes, proporcionando ao escultor um primeiro
exercício de libertação formal, afirmando aqui o contraste de idealização
comparada à primeira Juventude, realizada em 1943, quando ainda aluno na EBAP.
Neste trabalho percebemos que Arlindo Rocha procura libertar-se das formas da
natureza como referentes, iniciando um processo de interiorização, no qual
começa por idealizar os volumes orgânicos, que compõem um rosto, como volumes
concretos, através de planos geométricos, iniciando o escultor num percurso que
se demonstraria, mais tarde, uma afirmação formal e abstrata da escultura.
Arlindo
Rocha afirma ter começado a aprender escultura quando deixaram de lhe a
ensinar, não por desprezar a sua formação académica, mas por se interessar,
desde cedo, pela possibilidade de desmaterialização da escultura, procurando
assim novas respostas para uma prática escultórica nunca antes explorada em
Portugal. Esta pesquisa pessoal seria, no entanto, dificultada quer «pelo longo
estágio em volta de objetos somente vistos», quer pelo «clima de completa
estagnação e absoluta falta de informação, que os alunos procuravam quebrar com
iniciativas próprias».
Arlindo
Rocha realiza a sua obra de fim de curso apenas em 1951, onde apresenta, para
avaliação, um relevo alusivo à morte de António Francisco Ferreira da Silva
Porto (1818-1890). Tratava-se de um baixo-relevo, que faria parte integrante do
Monumento a Silva Porto – O Pioneiro, o qual Arlindo, juntamente com o arquiteto
Vasco Vieira, se encontrava a desenvolver, para erigir na cidade de Silva
Porto, Bié.
Devido
às dimensões do seu trabalho final, Arlindo Rocha requer ao Director da Escola
de Belas Artes do Porto a realização do relevo no ateliê onde trabalhou até 1956.
Tratava-se do ateliê do escultor Henrique Moreira (1890-1979), instalado ao
fundo do Jardim Arnaldo Gama, que Arlindo partilhou com o amigo Manuel Pereira da Silva
(1920-2003). Com um percurso dentro de uma estética realista, Henrique
Moreira era um escultor também da antiga escola, cujo modelar académico é
completamente visível nos seus trabalhos, particularmente naqueles que
resultaram em fundição, mas que deixa visível uma certa influência da Arte
Déco, quando talha a pedra, em particular as figuras femininas. Não podemos,
por isso, afirmar que Henrique Moreira tenha transmitido a Arlindo qualquer
característica da sua forma de pensar ou fazer escultura. Porém, seria
interessante fazer o estudo da vivência do escultor Henrique Moreira com os
seus discípulos, uma vez que, apesar da sua evidente admiração pela linguagem
clássica, esse convívio parece ter deixado impressiva marca nos dois discípulos
os quais, de forma diversa, se dedicaram à procura de uma linguagem pessoal,
dentro uma linguagem de cariz abstratizante.
Na foto vemos de frente Arlindo Rocha e de costas Manuel Pereira da Silva, no atelier de Henrique Moreira.
Obtendo
a nota final de 17 valores, o referido trabalho de final de curso reúne em si a
composição e idealização clássicas, com uma conceção mais sintetizada, que nos
relembra um pouco o trabalho do seu colega de ateliê, Manuel Pereira da Silva. Com a maior
simplicidade e resultante de um demorado processo de sintetização, o
homenageado é representado sem vestes, envolto apenas numa bandeira, figurando
a nota biográfica da morte de Silva Porto. O corpo e a bandeira são de um
contraste de claros e escuros absolutos, para um trabalho quase sem modelação
volumétrica, assemelhando-se a uma incisão de desenho no próprio granito. O
resultado final, podemos considerar, vai ao encontro de um trabalho
contemporâneo para o seu tempo, uma vez que não se baseia na modelação, mas no
talhe direto, em que apenas duas maquetas, à escala, foram realizadas
anteriormente. Através da criação de planos e linhas cortantes, escavadas em
profundidade na pedra, Arlindo obtém os contrastes necessários à perceção do seu
tema, não tendo assim de se preocupar em realizar a passagem de luz entre
volumes orgânicos, o que reforça um pouco a aparência mais geométrica deste
relevo, que se aproxima da linguagem pessoal do artista, que se vinha a afirmar
em dois campos distintos da escultura, um mais figurativo e outro desprovido de
figuração, oi mais próximo de um esquematismo e antítese formais.
Num
meio onde as notícias sobre as principais figuras da Arte Contemporânea eram
escassas, valia a estes jovens a partilha, por entre tertúlias, das
experiências pessoais durante viagens ou mesmo a troca de revistas
internacionais, raras na época, o que faz com que os ecos do modernismo em
Portugal assumam uma grande importância. Os jovens estudantes procuravam
conhecer os novos valores da arte que se fazia e vivia fora do país. Nesta
geração portuense evidenciam-se vários nomes, os quais constituiriam um grupo
particular: Fernando Lanhas, Nadir Afonso, Arlindo Rocha, Fernando Fernandes,
Amândio Silva, Manuel
Pereira da Silva, Altino Maia, Eduardo Tavares, entre outros. São jovens
estudantes, da Escola de Belas Artes do Porto, que realizaram um conjunto de
exposições Independentes, manifestando assim uma vontade de descentralização
cultural, além das iniciativas de maior visibilidade e impacto que aconteciam
quase de forma exclusiva na capital.
Em
1943, este grupo de estudantes da Escola do Porto resolve unir-se contra os
grandes centros de exposições que decorriam quase de forma exclusiva na
capital. Com o nome de Independente, a primeira exposição decorre nas
instalações da própria Escola de Belas Artes do Porto, contando com a presença
quase exclusiva de alunos.
Fernando
Lanhas expõe, nas Independentes, as suas primeiras experiências abstratas,
sugerindo mesmo aos colegas a experimentação do vasto campo da abstração. Ao
mesmo tempo que Lanhas mostra as suas pinturas abstratas, Arlindo Rocha, que à
data assinava como Arlindo Gonçalves, apresenta as suas primeiras experiências abstratizantes
no campo da escultura.
O
grupo expande-se cedo, abrindo portas a professores ou artistas que
demonstrassem vontade de prosseguir essa vontade de descentralização cultural,
através de várias iniciativas, nas quais é evidente a recusa à filiação de um
estilo.
As
Exposições Independentes assumem justo valor, por constituírem uma primeira ação
coletiva à época, mesmo não estando estruturada sob uma vanguarda definida,
inaugura um diálogo inovador no campo da arte portuguesa, proporcionando
condições favoráveis ao aparecimento e desenvolvimento da tendência abstratizante.
Ana Luísa Oliveira
MESTRADO EM ESCULTURA PÚBLICA