quinta-feira, dezembro 09, 2010

A Flor e o Cristal: Ensaios sobre arte e arquitectura moderna

A flor e o cristal são dois velhos motivos da iconografia romântica. Novalis deles se aproximou em seus aforismos de estética. A flor, órgão vegetal de reprodução, reúne nos símbolos sensíveis da sedução, do amor e da recriação da vida. No cristal, a matéria sensível concilia-se espontaneamente com a pureza formal, cuja ordem espiritual, geométrica ou matemática, percebemos antes mesmo de conhecer de conhecer objectivamente suas leis. A vida e o espiritual se confundem nesta dupla metáfora, como um ideal estético e, ao mesmo tempo, cultural. Mas, como no romantismo, também na arte moderna – e, de maneira particular, na pintura, na lírica e na arquitectura do expressionismo europeu –, esses símbolos poéticos articulam artisticamente uma esperança social, em meio a uma crise da civilização da qual se dizia, então, que só o final do milénio seria capaz de compreender todo o alcance. A metáfora do cristalino atravessou a estética do modernismo até o cubismo como um fio de ouro secreto, de profundas repercussões, tanto nas questões de conteúdo artístico, como em seus problemas formais.

Mondrian e a filosofia

Quando a arte reivindica programaticamente o princípio de pureza, exactidão e frieza, abstracção e formalização lógicas, habilidade e precisão, limpeza e clareza, seu fazer já não se distingue, então da actividade e da racionalidade técnicas que regem cegamente o progresso acumulativo da sociedade moderna. A estética cartesiana é uma estética instrumental.

Mas a pretensão da arte abstracta não se detém nesse ponto, na mera estilização da razão instrumental como objecto susceptível de beleza artística. É inerente ao próprio postulado da abstracção formal na arte uma aspiração ao universal. A abstracção estética nunca se efectuou, na realidade, a não ser em função dessa universalidade. Assim, o princípio da racionalização formalizadora e técnica da actividade artística enforma também um valor cultural totalizador.

É esse o caso de Piet Mondrian. A abstracção que define a nova arte – o neoplasticismo – se condensa, em sua obra, como princípio geral de uma humanidade nova.

A trivialidade e a imediatez das categorias que Mondrian emprega em seu programa estético são tão atraentes quanto o espantoso pathos que encerra. “Tanto a filosofia como a arte – escreve – são expressões do universal.” Mondrian suprime o conteúdo de verdade da obra de arte, a qual é sempre mediada por uma experiencia individual do real, e instaura em seu lugar uma universalidade pura, do universal e inamovível, da harmonia original e da essência do homem. O pressuposto de uma totalizadora e totalitária, que Mondrian considera ponto pacífico, serve-lhe para legitimar uma missão terrorista da arte. Desse modo, a actividade artística é reduzida a uma receita de cozinha, cujo segredo, na realidade, está na ignorância e ausência de uma verdadeira experiencia estética. Mas não é precisamente o despedaçamento da arte que torna a obra de Mondrian temível, e sim o desprezo e a violência à existência empírica do indivíduo e da sociedade, que, em sua obra, apenas se anunciam e se vestem de uma linguagem formal.

O abstracto universal, que o neoplasticismo postula, é, todavia, um princípio chocho, trivial e vazio, considerado em sua positividade. Já que não transmite, nem pode transmitir, a experiencia real que o tivesse produzido, nem tampouco a história empírica que o percorre, seu conceito de abstracção se converte numa falácia. A abstracção estética de Mondrian só adquire um sentido material e concreto onde coloca em evidência o que as linhas, planos, pontos, cores e formas reprimem, descartam e encadeiam. A declaração da formalização abstracta revela-se, sob esse aspecto, como princípio da violência material esteticamente estilizada. O terrorismo de semelhante missão artístico cultural manifesta-se, em primeiro lugar, na agressividade da linguagem que Mondrian emprega em seus programas estéticos. Assim, o conceito de abstracção do neoplasticismo significa “supressão do trágico”, “superação da nostalgia e da alegria, do fascínio e da dor”; significa, também, “subjugação do feminino e do material, tanto na vida quanto na sociedade”; enfim, “a destruição da corporeidade”, a “ aniquilação do individual”, a “violação dos meios formais”. Mondrian pretende manejar o pincel do mesmo modo que o censor as tesouras: como instrumento de depuração e limpeza. No fundo, sob o extremo racionalismo lógico desse verdugo da arte contemporânea, oculta-se um imperativo moral de resignação e ascese. O mondrianismo, em que pese a novidade que pretende significar na história moderna, pode estar certo de que os princípios tradicionais da repressiva ética cristã proporcionam-lhe sólidas bases.

A agressão verbal é o modo pelo qual veicula este impulso repressor. Essa violência é responsável pela aniquilação do particular e do empírico que a pintura abstracta de Mondrian efectua. A estética do absoluto anuncia, na obra teórica e plástica de Mondrian, um mundo novo: o universo de uma harmonia acabada e de um poder total.

Angustia e abstracção

Temos o grande grito que atravessa a natureza, o grito do desespero.
Edward Munch
Em 1914, Paul Klee escrevia em seu diário: Quanto mais assustador é o mundo (como em nossos dias, precisamente), mais abstracta a arte, enquanto que um mundo feliz cria uma arte terrena.

Apenas algumas linhas adiante, encontramos um comentário nada assombroso para a figura de interioridade que a obra de Paul Klee encarna: “A guerra – escreve ele – eu a tenho vivido faz muito dentro de mim mesmo. Daí eu já não ser afectado interiormente”.

Duas citações que põem em evidência algo mais que uma perspectiva pessimista da realidade. É verdade que dão-nos conta da visão de espanto e da aguda sensibilidade ao terror e à dor. Mas, ao mesmo tempo, são testemunho da resolução inquebrantável de resistir a isso, de tornar-se inexpugnável à destruição histórica que, então como agora, ameaçaram a Europa.

Resistência e afirmação diante do desastre. Mas como, por que caminhos, a que preço?

Sigamos o fio desse diário de Klee. Encontramos várias vezes nele o tema da destruição que converte essa obra em páginas daquela Primeira Guerra Mundial, páginas todavia distintas, porque não foram escritas a sangue e a fogo, mas que revelam a mesma aniquilação da cultura europeia.

“Para sair das minhas ruínas, tive que voar”, acrescenta Klee no mesmo contexto. Uma frase que evoca e nos faz pensar em sua incessante de uma expressão sorridente ou, pelo menos, não patética da dor e da tristeza, ou em sua tendência ao etéreo, em sua inclinação pelos anjos e pelas figuras que voam ou se afastam.

“Pensei que fosse morrer – diz também Klee – guerra e morte. Mas será que posso morrer, eu, cristal?” E na linha seguinte, repete-se a invocação mágica e salvadora: “Eu, cristal”.
Temos aí uma paisagem dilaceradora de ruínas, guerra e morte. E, diante delas, o voo em direcção ao espiritual e ao ideal nórdico de uma existência cristalina e transparente.

Por que esquecemos sempre, ao falar de abstracção ou de arte abstracta, esse outro lado, obscuro, irracional e infernal, que, no entanto, impulsiona-as?

Voltemos um instante às páginas dessa obra.

O coração que bateu por este mundo – prossegue Klee – foi-me ferido mortalmente. É como se já apenas as recordações me ligassem a “estas coisas”. Acaso nascerá a partir de mim o tipo cristalino? Abandona-se o âmbito do aquém e constrói-se, em compensação, um mundo além, que possa ser todo afirmação. Abstracção.

Visão do espanto, pressentimento do caos e do apocalipse. Tudo está aí. È o fim. Mas, depois, invocação de uma nova ordem, afirmação de um reino de beleza, embora à custa de uma transcendência; depois, enfim, o anseio, pictoricamente realizado, da utopia do cristalino.

Podemos considerar como novo o conflito entre o caos, o apocalipse e a dor, e a invocação do cristalino, do transparente e de uma ordem geométrico-matemática, que essas frases de Klee sugerem? Na verdade, não. O ideal de uma espiritualidade cristalina encontra-se, muito antes, no pensamento místico. Muito perto de nós, Santa Teresa d’Ávila expõe, em seu Caminho da perfeição, uma temática idêntica:

“Vivendo eu tão grandes males, pareceu-me que isso é mister, como quando os inimigos em tempo de guerra correram toda a terra e, vendo-se o senhor dela perdido, ele se recolhe a uma cidade que manda fortificar.”

Também aqui, o caminho da perfeição espiritual começa pela conjuração da angústia e da destruição. A ameaça de morte encontra-se às portas da nova ordem que reina nas moradas, na fortaleza da alma crente. E, nas Moradas precisamente, essa identidade do eu, que assume a união mística da alma com Deus, aparece com todo o esplendor radiante de uma cidade celeste: é a fortaleza de cristal, transparência, geometria e espiritualidade. Não diz Santa Teresa, nas primeiras linhas dessa obra, que a alma é “como um castelo todo de diamante e mui claro cristal”?

Mas também na tradição do pensamento filosófico se assume esse ideal cristalino. Devemos recordar, sobretudo, que a estética platónica fundava-se na ordem das formas geométricas (Filebo), mas, já na modernidade, são irrecusáveis os nomes do racionalismo, como Descartes e Spinoza. Este último talvez proporcione o exemplo mais diáfano da conjuração do caótico, do demoníaco e do mal, precisamente sob o signo da geometria, sob o rigor do more geométrico.

Parecerá certamente surpreendente – diz a Ética, de Spinoza – que eu me proponha tratar dos vícios dos homens e das suas doenças à maneira geométrica e que deseje demonstrar, por meio de um raciocínio rigoroso, o que não cessam de proclamar contrário à razão, vão, absurdo e digno de horror.

Não se trata, portanto, apenas do facto de que o princípio da abstracção e da geometrização conta com um passado glorioso, por exemplo, aquele que, na arqueologia, remonta à decoração no alto Egipto ou à cerâmica neolítica. A questão está, antes, num lugar bem definido da nossa cultura, que contrapõe o ideal do cristalino e de uma ordem racional à ideia do caos ou da destruição.

Antes de examinar com maior detalhe essa dualidade de princípios – a angustia e a abstracção – podemos reler as páginas de um dos pioneiros da arte não objectiva e abstracta: V. Kandinsky. O delicado panorama cultural que descreve sua conhecida obra Do espiritual na arte pode prestar-nos algum auxílio.

Kandinsky sempre evoca a exteriorização plástica de um espiritualismo hermético. Os signos sensíveis que nos mostram suas obras aludem a um universo ideal que de imediato, parece-nos fechado, incompreensível. O princípio da abstracção parece sustentar um mundo próprio e interior nesses quadros, cujo acesso dir-se-ia proibido. Que há detrás dessas figuras geométricas simples, sob essas combinações difíceis de cores, realizadas, porém, com uma decisão aparentemente categórica? Que se deve ler ou sentir diante das combinações estritas e rígidas de cores e formas geométricas, ou de formas geométricas entre si? Arnold Gehlen considera que a análise Kandinskiana da interioridade, seus signos e seus ritmos musicais são simplesmente inextrincáveis. “Kandinsky é incompreensível” – escreve esse autor, directa e provocantemente. Grohmann diz ele: pintor absoluto. Os qualificativos, se não exactos, ao menos são sugestivos: hermético, absoluto, dogmático, metafísico.

No entanto, caberia outra possibilidade, outro caminho: não seria mais adequado perguntar-se ante que circunstâncias ou que contexto se ergue a defesa Kandinskiana do espiritual na arte, sua apologia de uma “necessidade interior”, sua busca fanática de uma harmonia matemática das formas e das cores? O próprio Kandinsky veste de bom grado a figura de artista profético e visionário. Que teme, porém, sua visão de um mundo de formas puras e de ideias abstractas e absolutas?

Nas primeiras páginas de Do espiritual na arte, esse pintor expõe um panorama cultural de seu tempo com uma curiosa metáfora:

…como numa grande cidade firmemente construída segundo as regras matemáticas e arquitectónicas, que, de repente, fosse sacudida por uma força incomensurável. Uma parte do espesso muro se desmoronou como um baralho. Uma torre, que se erguia até ao céu, gigantesca, construída sobre muitos pilares espirituais, delicados e imortais, jaz em ruínas. O velho cemitério esquecido estremece. Velhas tumbas abandonadas se abrem e espíritos esquecidos saem delas. No sol, construído com tanta arte, aparecem manchas e tudo fica escuro.

Estranha metáfora? A cidade destruída, os muros que caem, as ruínas, as altas torres derrubadas, as trevas e a ressurreição dos mortos. Na realidade, ninguém poderia jurar que Kandinsky é espiritual na arte evocam, quase involuntariamente, aspectos dos cultos órficos ou, pelo menos, a tradição do platonismo. Já aludi ao carácter iniciático contido em toda a sua teoria da arte e das cores, mas outros autores reconstruíram a experiência artística de Kandinsky nos termos de um processo extático:

Não eram raras as vezes em que Kandinsky tinha êxtases que o transportavam “além do espaço e do tempo” – comentava, nesse sentido, Johannes Eichner. – O rapaz procurava a redenção da opressora inquietude que sentia diante das portas da vida num mundo de signos em que ele “já não sentia a si mesmo”. Quando, posteriormente, converteu-se em artista, tratava também de despertar a mesma a mesma superação do eu nos espectadores de seus quadros.

A concepção da experiencia artística como êxtase procede do próprio Kandinsky, em sua obra Ruckblicke (Retrospectos). O que Eichner acrescenta a essa posição mística é somente a contraposição entre a supressão da consciência individual, por um lado, e, por outro, a identidade contemplativa do “interior” e do “exterior” no quadro, com momentos que, entretanto, já conhecemos: o “ocultamento do eu”, a superação da “inquietude opressora da vida” ou o carácter “perturbador” da realidade imediata.

Em outro contexto cultural, o da literatura, as coisas não parecem ser muito diferentes. Também aqui se fala da crise e da angústia de nosso tempo e da necessidade de sua conjuração espiritual num universo de essências eternas e puras. Limitar-me-ei, porém, a dois exemplos, o de Hermann Hesse e o de Hermann Broch.

Hesse escreveu, por volta de 1922, uma trilogia de ensaios que tinham o título significativo de Blick ins Chaos (uma olhada no caos). A constelação que Hesse descreve é idêntica. Da mesma maneira que os programas artísticos da vanguarda, esse livrinho foi escrito sob o signo da catástrofe e da compulsão do fim da Europa. O primeiro de seus ensaios, dedicado à obra de Dostoiévski, termina com as seguintes palavras:

Já meia Europa, pelo menos a metade oriental da Europa, acha-se a caminho do caos; caminha ébria e presa de um frenesi sagrado pelo abismo, e canta, canta hinos de embriaguez, como os que cantou, uma vez, Dimitri Karamazov. E o burguês ri de nervoso com essas canções, e o santo e o vidente ouvem-nas com lágrimas nos olhos.

O topos literário repete-se nessa citação: fim da Europa e caos; o artista estilizado na figura do santo e do vidente. O mesmo que na obra de Kandinsky. A visão do caos serve de legitimação para as exigências de uma ordem espiritual abstracta. Hesse também inscreve em sua bandeira o princípio de uma necessidade ou de uma ordem espiritual e interior. “Nada é exterior, nada é interior, pois todo o exterior também é interioridade” – é seu grito romântico de guerra.

A complexa obra de Broch ilustra esse mesmo contexto precisamente através do seu romance mais importante, Tod des Vergil (A morte de Vergílio), que é uma alegoria do fim da Europa através da descrição das últimas horas de agonia do seu primeiro poeta. Esse longo romance é, também, uma paisagem de confusão e aturdimento, de espanto e de decrepitude. No entanto, uma nova Babel da harmonia se ergue acima do caos, sob a forma de um Eu absoluto, de irisações platónicas e místicas: isto é, uma vez, mais, na figura cristalina de uma identidade absoluta.

Quer dizer, pois, como ponto final dessa problemática cultural de nosso tempo?

Esse problema pode ser resumido numa só frase: a estética da “construção sobre uma base espiritual pura” não desconhece a dor e o desespero, nem tampouco a destruição e o caos; e os princípios do equilíbrio dogmático físico-matemático das cores ou das formas postulados por Mondrian, Kandinsky Itten ou Klee, passaram anteriormente, apenas sem confessá-lo, pelas visões de decadência de Maeterlinck ou pelos monstros impiedosos de Ensor, George Grosz ou Kubin. A abstracção afunda suas raízes no solo da destruição, da qual pretende escapar como seu contrário, como porta-voz excelso de uma nova positividade. Poderíamos parafrasear, nesse sentido, o título de um romance de Kubin: A outra parte. A arte abstracta da modernidade sabe dessa “outra parte” – a realidade histórica e individual da angústia –, mas comporta-se como quem nega e pretende transcender e superar.

O tema de que tratamos tampouco é novo na reflexão sobre a arte contemporânea, embora a partir da Segunda Guerra Mundial o nexo entre abstracção e angústia tenha sido esquecido em benefício de uma arte abstracta e de uma vanguarda que, à imagem do mundo tecnológico do que pretendeu ser a legitimação artística e a expressão ornamental, existia, vivia e se desenvolvia por e para si, como abstracção pela abstracção.

A relação entre angústia e abstracção foi aludida precisamente durante aqueles mesmos anos em que nasceu a arte abstracta e se configuraram seus princípios programáticos, entre 1906 e 1914, pelo filósofo alemão Wilhem Worringer, embora de um ponto de vista bastante alheio ao que vim esboçando nestas páginas.

Podemos considerar Worringer, em primeiro lugar, como um pioneiro da abstracção, embora no campo específico da reflexão filosófica e histórico-cultural. Sua primeira obra, Abstraktion unt Einfuhlung, publicada em 1908, adianta-se, sob muitos aspectos, às teses formuladas mais tarde por Mondrian, Kandinsky, Severini, Klee ou Malevitch, apesar de não referi-las, como esses últimos, à realidade mais actual das tendências artísticas, mas sim à história da arte e à arqueologia. O lugar de Worringer no pensamento contemporâneo deve ser considerado como ao lado dos primeiros quadros cubistas e dos inícios da arte não objectiva.

É importante tratar a obra de Worringer em relação à arte abstracta por sua formulação do cristalino como categoria geral subjacente a essa concepção estilística e em virtude da sua análise da abstracção formal na arte, da geometrização e da repressão da representação espacial como momentos constitutivos e fundamentais desse ideal cristalino. Tudo isso é sugestivo e actual, mais do que parecia ver o próprio Worringer ao escrever aquela obra; e esses conceitos são susceptíveis de aplicação À realidade histórica e evolutiva da arte abstracta, por exemplo, da obra de Mondrian ou Malevitch. Mas sua análise interessa, no contexto desse ensaio, por um motivo diferente, que não desempenha, porém, em sua obra, um papel central: o problema da angústia.

Citarei um trecho representativo, a esse propósito:

Quais são as premissas psíquicas do impulso da abstracção? – Pergunta-se Worringer. Sua resposta já nos é familiar, depois de termos lido os textos precedentes, de Kandinsky ou de Klee. – Essas premissas, é preciso buscá-las no sentimento cósmico dos povos (primitivos), em sua atitude psíquica diante do universo. Assim como Tibulo dizia “primum in mundo fecit deus timor”, podemos afirmar, também, que esse mesmo sentimento de angústia se encontra na raiz da criação artística. As possibilidades de satisfação que (os povos primitivos) buscavam na arte não consistiam num abandonar-se às coisas do mundo exterior e gozá-las, mas em subtrair a coisa particular do mundo exterior à sua arbitrariedade e aparente causalidade, em eternizá-las na medida em que aproximavam-nas das formas abstractas e em encontrar, assim, uma quietude em meio ao fluxo de aparências. A linha simples e o desenvolvimento regido por leis geométricas deviam proporcionar as possibilidades mais elevadas de satisfação para aquele homem atemorizado diante da falta de claridade e de confusão dos fenómenos.

A tese de Worringer é simples: diante da angústia ocasionada por uma natureza ameaçadora, o prazer estético de geometrização e do cristalino. E parece ilustrar, de uma perspectiva antropológica, os trechos citados de Klee, Kandinsky ou Hesse. Contra o medo, a abstracção.

Naturalmente, como teoria antropológica – e assim a apresenta Worringer –, essa concepção é ridícula; como explicação psicológica das origens da arte é igualmente tola. Em contrapartida, no contexto aqui considerado, da arte abstracta e sua circunstância histórica, essa angústia é plausível, contando que seja considerada como uma simples projecção de um nexo actual no terreno da arqueologia e da história da arte.

Só me deterei mais um instante para considerar esse dualismo no movimento artístico do Stijl holandês. Limitar-me-ei a citar um trecho significativo, nesse sentido, de um ensaio, importante aliás, publicado em 1922 por Theo van Doesburg, sob o título de “A vontade de estilo”:

Se dirigirmos nossa atenção para a imagem geral da nossa vida actual partindo de pontos de vista próprios, chegaremos à conclusão de que essa imagem é portadora de um carácter caótico, e não podemos estranhar que os que se sentem descontentes nesse caos aparente querem fugir do mundo ou perder-se em abstracções espirituais.

Abstracção contra o apocalipse, construção de uma ordem cristalina contra a realidade caótica, na sociedade ou no pensamento. Exemplos: Klee, Kandinsky, Feininger e Gropius, Hesse e Broch, Van Doesburg, Mendelson, Taut e tantos outros. Não se trata de atitude individual, idiossincrática: é antes, um elemento geral que pertence à atmosfera espiritual da época.

Todavia, ao expor o tema desse dualismo, coloca-se uma pergunta imediata. Uma vez cumprido o postulado da abstracção, uma vez realizado o mundo espiritual e harmonioso na esfera da arte, que resulta daquele mundo real dos conflitos, da morte: o caos ou a angústia? Esses momentos são realmente suprimidos e superados, na nova estética do universal e do espiritual e na utopia socialmente efectiva que, desde Mondrian e Le Corbusier, fundava-se nessa estética da abstracção?

Tentarei formular a mesma questão com outras palavras. Até agora, foi considerada a arte abstracta fora do contexto histórico da destruição e da angústia (da guerra, da problemática do fim da Europa e da sua cultura, da consciência de dissolução de uma época). É o que poderia chamar-se de uma reconstrução abstracta da abstracção artística. Mas, considerada do ponto de vista aqui exposto, a arte abstracta constitui fundamentalmente uma forma específica, entre muitas outras que também foram possíveis, de elaboração individual e social do problema da angústia. Uma forma específica e não única, porém, aquela elaboração dessa questão que estava destinada a ter maiores consequências no decurso do progresso das sociedades capitalistas europeias. Pois bem, essa elaboração artística conseguiu dominar e superar realmente o problema histórico da angústia? A arte abstracta e a utopia social a ela ligada se sobrepuseram aos conflitos e tensões da crise europeia, de cuja dilaceração nascia? O princípio da abstracção conseguiu superar a dor?

Eis uma pergunta simples, quase ingénua, cuja formulação, não obstante, me parece extraordinariamente delicada a incómoda. Por uma razão muito clara: que a angústia individual e social deva ser superada e suprimida, não é coisa que, para nossa cultura, por mais paradoxal que isso pareça, seja óbvia. Muito pelo contrário: no medo, precisamente (o medo do castigo, do senhor, do poder, o medo da destruição), fundou-se nosso reino. Em nome da angústia, os poderes tornaram-se grandes e conquistaram impérios. Desde Hegel até Heidegger ou Sartre, a filosofia moderna legitimou, por isso, a angústia como princípio criador. Graças à angústia, foi possível erigir uma imensa cultura espiritual – afirma Kierkegaard, o apologista máximo do medo e da morte. A própria morte, como astúcia do triunfo histórico da razão, não é o mistério secreto oculto pela Fenomenologia do espírito, de Hegel?

Se a morte e o medo são dois princípios constitutivos da cultura, a história da arte abstracta, seu caminho da angústia ante o caos à invocação de uma ordem universal, não seria nada mais que a reiteração dessa eterna litania. Mas que seja realmente essa repetição, é um tema que deixarei em aberto aqui. Pois o que se trata é saber até que ponto aquela angústia foi superada. O que, sublinho mais uma vez, supõe um ponto de vista crítico, tanto diante de uma filosofia que legitimou o império da razão em nome da morte, como diante de uma sociedade que se reproduz infinitamente através da perpetuação do medo, da guerra e da destruição.

Talvez a obra de Klee permita dar um passo adiante em nossa argumentação. Vimos, nas citações anteriores de seu diário, o papel substantivo e explícito desempenhado pela angústia na constituição de uma arte abstracta. Mas a angústia, como as experiencias, a elas ligadas, do caos, da morte, do mal, do misterioso e obscuro, ou do invisível, não são banidas nem suprimidas em sua obra, senão conservadas precisamente em sua tensão e contraposição com o geométrico-construtivo e cristalino. O que klee escreve sobre o caos, em particular (“Eu começo, como é lógico, pelo caos, pois é o mais natural. Nele, sinto-me tranquilo, já que, no início, eu mesmo posso ser caos”); também poderia dizer-se de qualquer elemento artístico dentro de sua concepção decididamente dual do mundo. O princípio do cristalino mantém uma luta com o irracional, o desconhecido, e com a morte, mas sem que nenhum dos dois consiga prevalecer absolutamente sobre o seu contrário.

O caso de um quadro pode proporcionar-nos uma explicação mais precisa desse facto. Trata-se de uma obra deliciosa. Mas sua composição é simples, em aparência, como em muitos quadros de Klee. Há, como base, uma firme trama quadricular, uma estrutura geométrica firmemente construída. Sobre essa estrutura, Klee realiza tensões tonais e luminosas. O resultado é uma obra estritamente construtiva e abstracta: quadrados, cores complementares, tensão finalmente calculada entre claros e escuros. Termina aqui a descrição desse quadro? Absolutamente.

Sua tonalidade geral é escura: o quadro descreve um universo crepuscular. Adivinhamos uma paisagem, um monte, árvores: as paisagens da melancolia e da solidão. Na banda central da composição, Klee abre uma zona apagada. Nela reina uma escuridão ainda maior. Gera-se um silêncio. E, em meio a esse apagado, surge a claridade nítida da lua. É o mundo lírico da noite. Klee intitula, por conseguinte, o quadro de Saída da lua.

Esse quadro, escolhido ao acaso, deixa patente a coexistência do abstracto-construtivo e do princípio cristalino, com o reino da noite e todas as associações poéticas ligadas a ele, com a experiência individual e lírica. Diria mais, porém, acerca dessa relação: o construtivo permite precisamente fixar o lírico, dar firmeza à expressão da dor. O que significa que, em Klee, o princípio da abstracção não suprime o seu oposto, mas permite elaborá-lo, dominá-lo.

No outro extremo dessa problemática dualista, uma obra como a de Mondrian apresenta o facto consumado e imediato da abstracção, o que, em outro contexto, chamei de abstracção da abstracção. Os quadros neoplasticistas afirmam sem reticências uma nova ordem universal, fazendo tábua rasa da menor recordação daquela experiência original do caos. Pois bem, podemos falar aqui da elaboração do caos, de confrontação artística com ele, de luta, tensão? Dificilmente. A realidade da angústia foi deslocada, foi literalmente banida da expressão artística. Aqui não há elaboração da angústia, mas sim sua mais nítida e estrita repressão.

Uma nova questão nos espera ao chegarmos a este ponto. A realidade ruim de que o artista abstracto queria livrar-se, precisamente por meio da abstracção, não foi suprimida realmente por ter sido deslocada e reprimida da realidade artística “obra de arte”. No entanto, onde terá ido parar? A arte abstracta não a superou, mas, antes, desentendeu-se com ela.

Chegamos, assim, ao término das vanguardas, mas não à nossa última palavra. Pois, entretanto, o sonho que habitava o coração da arte abstracta tornou-se realidade. Nosso mundo já é o universo daquela segunda natureza abstracta e absoluta, que a pintura e a arquitectura de vanguarda reivindicaram como nova idade de ouro. Já tivemos em cidades de torres cristalinas e de catedrais brancas e transparentes, encerrados entre paredes lisas e espaços geométricos puros, submetidos à estética da frieza, da exactidão e da esterilidade.

A reflexão crítica sobre a arte moderna deve proceder a partir de agora com a delicada paciência dos restauradores, que têm de separar de um fresco magnífico a fina capa de estuque ou a película de outra pintura que o recobre. Assim, por trás da construção cristalina de um Mondrian ou de um Tatlin, terá de descobrir, não a felicidade Diamantina de uma ordem geométrica acabada, mas a figura da solidão e da morte que inspiravam essa arte, que só encontramos em toda a sua horrível potência nas obras de Schab, no Tríptico da guerra, de Otto Dix, ou nas visões de Hofer.

Talvez seja preciso recordar, como exemplo paradigmático, que um óleo como o Montagne Sante Victoire, de Cézanne, isto é, a representação já clássica, para nós, da natureza como uma ordem abstracta, construtiva e cristalina, é contemporâneo e reflecte a mesma realidade espiritual do Grito, de Edward Munch, em que uma das paisagens mais doces de toda a Europa, a dos fiordes, arde e se agita convulsivamente como um inferno, ao grito da angústia.

Em segundo lugar, esse caminho de recuperação da realidade empírica, tanto histórica como individual, que a arte abstracta havia deslocado, não deve informar apenas a tarefa reconstrutiva da reflexão crítica. Ele é também uma possibilidade aberta para a reflexão artística de nosso tempo.

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Maria Helena Vieira da Silva

Maria Helena Vieira da Silva
Porto, 1962
Têmpera s/ papel


Maria Helena Vieira da Silva (Lisboa, 13 de Junho de 1908 — Paris, 6 de Março de 1992) foi uma pintora portuguesa, naturalizada francesa em 1956.

Era filha do embaixador Marcos Vieira da Silva, e neta de José Joaquim da Silva Graça, fundador do jornal O Século, tendo vivido na casa do avô, em Lisboa.

Despertou cedo para a pintura. Aos onze anos ingressou na Academia de Belas-Artes, em Lisboa, onde estudou desenho e pintura. Motivada também pela escultura, estudou Anatomia na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Em 1928 acompanhada pela mãe, vai viver para Paris.

Em Paris inscreve-se na Académie de la Grande Chaumière, onde frequenta o curso de escultura de Bourdelle; estudou com Fernand Léger, e trabalhou com Henri de Waroquier (1881-1970) e Charles Dufresne, é aqui que conhece o pintor Arpad Szenes, húngaro, com quem se casou em 1930. Nesse ano, participa no 1º Salão dos Independentes, na Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa, aquela que é a sua primeira exposição colectiva em Portugal.

Em Janeiro de 1936, no seu atelier de Lisboa, Vieira da Silva e Arpad Szenes, expõem as suas pinturas abstractas.

Realizou inúmeras viagens à América Latina para participar de exposições, como em 1946 no Instituto de Arquitectos do Brasil (IAB).

Devido ao facto de seu marido ser judeu e de ela ter perdido a nacionalidade portuguesa, eram oficialmente apátridas. Então, o casal decidiu residir por um longo tempo no Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial e no período pós-guerra. No Brasil, entraram em contacto com importantes artistas locais, como Carlos Scliar e Djanira. Ambos exerceram grande influência na arte brasileira, especialmente entre os modernistas.

Vieira da Silva foi autora de uma série de ilustrações para crianças que constituem uma surpresa no conjunto da sua obra. Kô et Kô, les deux esquimaux, é o título de uma história para crianças inventada por ela em 1933. Não se sentindo capaz de a escrever, a pintora entregou essa tarefa ao seu amigo Pierre Guéguen e assumiu o papel de ilustradora, executando uma série de guaches.

A partir de 1948 o Estado Francês começa a adquirir as suas pinturas e em 1956 tanto ela como o marido obtêm a nacionalidade francesa. Em 1960 o Governo Francês atribui-lhe uma primeira condecoração, em 1966 é a primeira mulher a receber o Grand Prix National des Arts e em 1979 torna-se cavaleira da Legião de Honra francesa.

Participou na Europália, em 1992, e veio a morrer nesse ano.

Para honrar a memória do casal de pintores, foi fundada em Portugal a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, sediada em Lisboa

As pinturas de Vieira da Silva são lentas na execução. Não uma lentidão exclusiva da matéria e da composição, erguida em pequenas pinceladas, por acumulação, na demora da espera que a tinta seque ou que determinada solução ganhe corpo, consistência; um tempo de regressos em que cada solução parece inacabada, sendo de novo continuada com persistência. Mas sobretudo uma lentidão dos dias através do quadro, das estadas no ateliê em observação abandonando trabalhos por anos e regressando a eles mais tarde, deixando assentar o encontro entre o que se gera mentalmente e o que ganha forma no quadro, como referiu em entrevista, confessando levar muito tempo a pintar. Não há desenhos prévios sobre a tela, os esboços sucessivamente feitos a ganhar a mão raramente têm utilização posterior.

Conferem destreza, agilizam ideias, são outra etapa do pintar, Desenho e pintura tornados um só quando, nas primeiras pinturas de início da década de 1930, recém-chegada a Paris, onde estudou, Vieira da Silva simplificava o visto em telas de grande despojamento. Mas também mais tarde, quando o encontro com Bonnard ou Cézanne conduziram à percepção dos múltiplos espaços na tela e à sua construção, que irá perseguir obra a obra. Primeiro, o ensaio sobre o espaço fechado, a estrutura das coisas. E depois, o traço a romper os limites, estilhaçando sobre a tela a unidade e fazendo da bidimensionalidade um terreno de polissemia. Chamada pintora de cidades, estratigrafiza a paisagem, desmultiplica construções, arruamentos, filamentos, estruturas, movimentos. Como se a cidade vista fosse apenas uma teia de sugestões erguida com a sabedoria de Ariadne.

Dirá a artista: teço a minha teia de aranha, à medida e ao passo que vivo: e tudo vem parar aqui. Tudo aqui se resume. Poeira, moscas, flores, folhas secas e, de tempos a tempos, faço o inventário das minhas riquezas mas como não tenho nenhum talento para inventários, perco-me e não o faço nunca completamente, e ponho-me de novo a tecer”. Nas telas-teia de Vieira da Silva advinham-se catedrais, labirintos, bibliotecas, jardins, vendavais, arrebatamentos de estilo, sentidos à flor da tela.




Maria Helena Vieira da Silva
Lisbonne, 1962
Têmpera s/ papel