segunda-feira, novembro 24, 2014

Quatro lógicas principais do capitalismo artístico

Os traços gerais que especificam o capitalismo artístico podem ser reduzidos a quatro lógicas principais:

Primeira: a integração e generalização da ordem do estilo, da sedução e da emoção nos bens destinados ao consumo comercial. O capitalismo artístico é o sistema económico que funciona para a estetização sistemática dos mercados de consumo, dos objetos e do contexto quotidiano. Agora o paradigma estético já não é exterior às atividades industriais e comerciais, mas incorporado nestas. Resulta de um modo de produção marcado pela osmose ou pela simbiose entre racionalização do processo produtivo e do trabalho estético, espirito financeiro espirito artístico, lógica contabilística e lógica imaginaria. Nesta configuração, o trabalho artístico é mais frequentemente coletivo, confiado a equipas com uma autonomia criativa limitada, enquadrado por gestores e integrado no seio de estruturas hierárquicas mais ou menos burocráticas. O facto é que se trata de criar beleza e espetáculo, emoção e entertainment para conquistar mercados. Neste sentido, é uma estratégia ou uma “engenharia do encantamento” que caracteriza o capitalismo artístico.

Segunda: uma generalização da dimensão empresarial das indústrias culturais e criativas. Agora, os mundos da arte, constituem cada vez menos um “mundo à parte” ou uma “economia às avessas” são regidos pelas leis gerais da empresa e da economia de mercado, com os seus imperativos de concorrência e de rentabilidade. Com o capitalismo artístico triunfa o management das produções culturais. Mesmo os museus devem ser geridos como empresas, implementando políticas de comercialização e de comunicação, fazendo aumentar o número de visitantes e encontrar novas formas de receita. No capitalismo artístico as obras são julgadas em função dos seus resultados comerciais e financeiros, muito mais do que pelas suas características propriamente estéticas.

Terceira: uma nova superfície económica dos grupos comprometidos nas produções dotadas de uma componente estética. O que era uma esfera marginal tornou-se num setor importante da atividade económica envolvendo capitais gigantescos e realizando negócios de verbas colossais. Já não estamos no tempo das pequenas unidades de produção de arte mas no de mastodontes da cultura, dos gigantes transnacionais das indústrias criativas, da moda e do luxo, tendo o globo como mercado.


Quarta: o capitalismo artístico é o sistema no qual são desestabilizadas as antigas hierarquias artísticas e culturais, ao mesmo tempo que se interpenetram as esferas artísticas, económicas e financeiras. Onde funcionavam universos heterogéneos desenvolvem-se, agora, processos de hibridação que misturam de uma maneira inédita estética e indústria, arte e marketing, magia e negócio, design e cool, arte e moda, arte e divertimento.

quarta-feira, novembro 19, 2014

Arte business

Se a idade hipermoderna do capitalismo, que é a do mundo desde há cerca de três décadas, é a da planetarização e financeirização, da desregulação e da excrescência das suas operações, também é a que está marcada por uma outra espécie de inflação a inflação estética. Não são apenas as megalópoles, os objetos, a informação, as transações financeiras que são envolvidas numa escalada hiperbólica, mas o próprio domínio estético. Eis os mundos da arte envolvidos por sua vez nas redes do híper, o capitalismo contemporâneo que incorpora em grande escala as lógicas do estilo e do sonho, da sedução e do divertimento, nos diferentes setores do universo consumista. Se há uma bolha especulativa, existe um outro tipo de bolha cujo extremo inflado não conhece, no entanto, nem crise nem crash, com a exceção notável do domínio circunscrito do mercado de arte contemporâneo, cuja bolha especulativa, como vimos, poderia explodir em diferentes momentos, vivemos o tempo do boom estético sustentado pelo capitalismo do hiperconsumo.

Com a época hipermoderna exige-se um novo período estético, uma sociedade sobre-estetizada, um império onde os sois da arte nunca se põem. Os imperativos do estilo, da beleza, do espetáculo adquiriram uma tal importância nos mercados de consumo, transformaram de tal maneira a elaboração dos objetos e dos serviços, as formas de comunicação, de distribuição e do consumo que se torna difícil não reconhecer o advento de um verdadeiro modo de produções estética que chega, agora, à maturidade. Chamamos este novo estado da economia comercial liberal: capitalismo artístico ou capitalismo criativo, transestético.

No momento da financeirização da economia e dos seus danos sociais, ecológicos e humanos, a própria ideia de um capitalismo artístico pode parecer oximórica e mesmo radicalmente chocante. Contudo, este é o rosto do novo mundo que, ao esbater as fronteiras e as antigas dicotomias, transforma a relação da economia com a arte como Warhol transformara a relação da criação artística com o mercado, defendendo uma art business. Depois da época moderna das disjunções radicais, temos a idade hipermoderna das conjunções, desregulações e hibridações, onde o capitalismo artístico constitui uma figura particularmente emblemática.

A importância das lógicas mercantis no mundo da arte não é nova, mas evidentemente, no momento da globalização, é um novo patamar que se atinge, como o testemunham particularmente o crescimento dos investimentos dos colecionadores e os aumentos vertiginosos a que chegam os preços das obras. A arte aparece cada vez mais como uma mercadoria entre outras, como um tipo de investimento do qual se espera uma alta rentabilidade. A idade romântica da arte deu lugar a um mundo no qual o preço das obras é mais importante e mediatizado do que o valor estético: é agora o preço comercial e o mercado internacional que consagram o artista e a obra de arte. Estamos no momento da “arte business” que vê triunfar as operações de especulação, de marketing e de comunicação. Se o capitalismo incorporou a dimensão estética, esta encontra-se cada vez mais canalizada ou orquestrada por mecanismos financeiros e comerciais. Donde o sentimento muitas vezes partilhado de que quanto mais o capitalismo artístico domina, menos haverá arte e mais haverá mercado.

quinta-feira, novembro 13, 2014

Arte para o mercado

Uma quarta fase de estetização do mundo é estabelecida, remodelada no essencial, por lógicas de comercialização e de individualização extremas. A uma cultura modernista, dominada por uma lógica subversiva em guerra contra o mundo burguês, sucede um novo universo no qual as vanguardas são integradas na ordem económica, aceites, procuradas, apoiadas pelas instituições oficiais. Com o triunfo do capitalismo artístico, os fenómenos estéticos já não regressarão aos pequenos mundos periféricos e marginais integrados nos universos de produção, de comercialização e de comunicação dos bens materiais, constituem imensos mercados moldados por gigantes económicos internacionais.

No momento da estetização dos mercados de consumo, o capitalismo artístico multiplica os estilos, as tendências, os espetáculos, os lugares de arte, lança continuamente novas modas em todos os setores e cria em grande escala o sonho, o imaginário, emoções; artializa o domínio da vida quotidiana no mesmo momento em que a arte contemporânea, por seu lado, está comprometida num largo processo de desdefinição. Uma desdefinição da arte que, no entanto, implica uma forma inédita de experiencia estética. É um universo de superabundância ou de inflação estética que se combina aos nossos olhos: um mundo transestético, uma espécie de hiperarte em que a arte se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da vida vulgar. O domínio do estilo e da emoção passou ao regime híper: isto não quer dizer beleza perfeita e acabada, mas generalização das estratégias estéticas com fim comercial em todos os setores das indústrias de consumo.

Uma hiperarte igualmente no que já não simboliza um cosmos nem exprime narrativas transcendentes, já não é a linguagem de uma classe social, mas funciona como estratégia de marketing, valorização distrativa, jogos de sedução sempre renovados para captar os desejos do novo consumidor hedonista e aumentar o volume de negócios das marcas. Estamos no momento do estado estratégico e comercial da estetização do mundo, na idade transestética.

Cada vez mais as indústrias culturais ou criativas funcionam em modo hiperbólico, com filmes com orçamentos colossais, campanhas de publicidade criativas, séries de televisão diversificadas, emissões de televisão que misturam o erudito e o music-hall, arquiteturas-esculturas de grandes efeitos, videoclipes delirantes, parques de diversão gigantescos, concertos pop com encenações “extremas”. Nada mais escapa à rede da imagem e do divertimento e tudo o que é espetacular cruza-se com o imperativo comercial: o capitalismo artístico criou um império transestético fecundante onde se misturam design e star system, criação e entertainment, cultura e show business, arte e comunicação, vanguarda e moda. Uma hipercultura comunicacional e comercial que vê degradar-se as oposições clássicas da famosa “sociedade do espetáculo”: o capitalismo criativo transestético que não funciona com a separação, com a divisão, mas com o cruzamento, com a trama dos domínios e dos géneros. O antigo reino do espetáculo desapareceu, foi substituído pelo hiperespetáculo que consagra a cultura democrática e comercial do divertimento.

As estratégias comerciais do capitalismo criativo transestético já não poupam nenhuma esfera. Os objetos comuns são invadidos pelo estilo e pelo look, muitos deles tornam-se acessórios de moda. Os designers, os artistas plásticos, os criadores de moda são convidados a redesenhar o aspeto dos produtos básicos industriais e dos templos de consumo. As marcas de moda do grande público copiam os códigos do luxo. As lojas, os hotéis, os bares e os restaurantes investem nas suas imagens, na decoração, na personalização dos seus espaços. O património é reabilitado e encenado à maneira dos cenários cinematográficos. Os cenários urbanos são retocados, encenados, “disneyficados” com o intuito do consumo turístico. A publicidade quer ser criativa e os desfiles de moda parecem performances. As arquiteturas de imagens florescem, valem por si mesmas, pela sua atração, pela sua dimensão espetacular e funcionam como vetor promocional nos mercados concorrenciais do turismo cultural.

Os termos utilizados para designar as profissões e as atividades económicas têm igualmente a marca da ambição estética: os jardineiros tornaram-se paisagistas, os cabeleireiros hair designers, as floristas artistas florais, os cozinheiros criadores culinários, os tatuadores artistas tatuadores, os joalheiros artistas joalheiros, os costureiros diretores artísticos, os construtores de automóveis “criadores de automóveis”. Frank Gehry é celebrado por todo o lado como o arquiteto artista. Mesmo alguns business men são descritos como “artistas visionários” (Steve Jobs). Enquanto se desencadeiam as competições económicas, o capitalismo trabalha para construir e difundir uma imagem artística dos seus atores, para artializar as atividades económicas. A arte tornou-se um instrumento de legitimação das marcas e das empresas do capitalismo.

A extraordinária extensão das lógicas transestéticas vê-se também no plano geográfico. Estamos no momento do capitalismo globalizado a impulsar uma estilização dos bens de consumo de massas que já não está circunscrita ao Ocidente. Nos cinco continentes estão a trabalhar indústrias criativas, criando produtos com estilo, moda, entertainment, uma cultura de massas mundializada.

Mas o processo de estetização hipermoderno extravasa em muito as esferas da produção: conquistou o consumo, as aspirações, os modos de vida, a relação com o corpo, o olhar sobre o mundo. O gosto pela moda, pelos espetáculos, pela música, pelo turismo, pelo património, por cosméticos, pela decoração da casa generalizou-se em todas as camadas da sociedade. O capitalismo artístico impulsionou o reino do hiperconsumo estético no sentido do consumo superabundante de alguns estilos, mas mais largamente, no sentido etimológico da palavra, dos gregos, de sensações e de experiencias sensíveis.

O capitalismo levou não tanto a um processo de empobrecimento ou de delinquência da existência estética mas à democratização de massas de um homo aestheticus de um género inédito. O individuo transestético é reflexivo, eclético e nómada: menos conformista e mais exigente do que no passado, aparece ao mesmo tempo como um “drogado” do consumo, obcecado com o descartável a celeridade, os divertimentos fáceis.


À estetização do mundo económico responde um estetização do ideal de vida, uma atitude estética para com a vida. Já ninguém quer viver e sacrificar-se por princípios e bens exteriores a si, mas inventar-se a si mesmo, criar as suas próprias regras com vista a uma vida melhor, imensa, rica em emoções e espetáculos.

segunda-feira, novembro 10, 2014

Arte pela arte

O terceiro grande momento histórico que organiza as relações da arte e da sociedade corresponde à idade moderna no Ocidente. Encontrando a sua plenitude a parir dos séculos XVIII e XIX, coincide com o desenvolvimento de uma esfera artística mais complexa, mais diferenciada, libertando-se dos antigos poderes religiosos e nobiliários. Enquanto os artistas se emancipam progressivamente da tutela da Igreja, da aristocracia e, depois, da encomenda burguesa, a arte impõe-se como um sistema de alto grau de autonomia ao possuir as suas instâncias de seleção e de consagração (academias, salões, teatros, museus, comerciantes, colecionadores, editoras, críticos, revistas), as suas leis, valores, e os seus próprios princípios de legitimidade. À medida que o campo da arte se autonomiza, os artistas reivindicam em voz alta uma liberdade criativa para obras que apenas têm de prestar contas a si próprias e que deixam de se vergar aos pedidos que vêm do “exterior”. Uma emancipação social dos artistas muito relativa, na medida em que é acompanhada por uma dependência de um novo género, a dependência económica em relação às leis do mercado.

Mas enquanto a arte propriamente dita evidência a sua orgulhosa soberania no desprezo pelo dinheiro e no ódio pelo mundo burguês, constitui-se uma “arte comercial” que, voltada para o lucro, para o sucesso imediato e temporário, tende a tornar-se um mundo económico como os outros ao adaptar-se à exigência do público e ao oferecer produtos “sem riscos”, de obsolescência rápida. Tudo opõe estes dois universos da arte: a sua estética, os seus públicos, assim como a sua relação com o “económico”. A idade moderna organiza-se na oposição radical entre arte e comercial, cultura e industria, arte e divertimento, puro e impuro, autêntico e Kitsch, arte de elite e cultura de massas, vanguardas e instituições. Um sistema de dois modos antagónicos de produção, de circulação e de consagração, que se desenvolveu no essencial dentro dos estritos limites do mundo ocidental.

Esta configuração social histórica traz consigo uma reviravolta geral dos valores, arte investida de uma missão mais alta do que nunca. No fim do século XVIII, Schiller afirma que é pela educação estética e prática das artes que a humanidade pode avançar para a liberdade, para a razão e para o Bem. E para os românticos alemães, o belo, via de acesso ao Absoluto, é posto, com arte, no cume da hierarquia dos valores. A idade moderna constitui o quadro no qual se efetuou uma excecional sacralização da poesia e da arte, únicas reconhecidamente capazes de exprimir as verdades mais fundamentais da vida e do mundo. Enquanto, no seguimento do criticismo kantiano, a filosofia deve renunciar à revelação do Absoluto e a ciência deve concentrar-se com enunciar as leis da aparência fenoménica das coisas, atribui-se à arte o poder de fazer conhecer e contemplar a própria essência do mundo. Agora, a arte é posta acima da sociedade, traçando um novo poder espiritual laico. Não uma esfera destinada a dar o consentimento, mas o que revela as verdades últimas que escapam à ciência e à filosofia: um acesso ao Absoluto, ao mesmo tempo que um novo instrumento de salvação. O poeta entra em concorrência com o padre e toma o seu lugar em matéria de revelação última do ser: a secularização do mundo foi o trampolim da religião moderna da arte.

Deve acrescentar-se, no entanto, que a sacralização da arte realizada pelo romantismo e pelo simbolismo foi seguidamente combatida ferozmente por diversos movimentos vanguardistas, como o construtivismo, o dadaísmo e o surrealismo.

Sacralização da arte que se ilustra tão bem na invenção e desenvolvimento da instituição dos museus. Ao extrair as obras do seu contexto cultural de origem, ao cortar o seu uso tradicional e religioso, ao não limitá-las ao uso privado e à coleção pessoal, mas oferecendo-as ao olhar de todos, o museu encena o seu valor especificamente estético, universal e intemporal; transforma objetos práticos ou culturais em objetos estéticos para serem admirados, contemplados por si próprios, pela sua beleza que desafia o tempo. Lugar de revelação estética destinado a fazer conhecer obras únicas, insubstituíveis, inalienáveis, o museu tem a responsabilidade de as tornar imortais.

Enquanto dessacraliza os objetos culturais, dota-os, por outro lado, de um estatuto quase religioso, as obras-primas devem estar isoladas, protegidas, restauradas, como testemunhos do génio criativo da humanidade. Espaço de adoração consagrado à elevação espiritual do público democrático, o museu está marcado por ritos, solenidade, por um certo ambiente sacro (silencio, recolhimento, contemplação): impõe-se como um templo laico da arte.

Sacralização do museu que ao mesmo tempo desencadeou a ira das correntes de vanguarda denunciando a instituição simbólica pela excelência da arte antiga a destruir: “Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas (…). Museus cemitérios!...” (Filippo Tommaso Marinetti, “Manifesto Futurista” em Le Figaro, de 1909).

A arte supostamente proporciona o êxtase do infinitamente grande e do infinitamente belo, faz contemplar a perfeição, ou seja, abre as portas da experiencia do absoluto, de algo para além da vida comum. Tornou-se o lugar e o próprio caminho da vida ideal outrora reservada à religião. Nada é mais elevado, mais precioso, mais sublime do que a arte, a qual permite, graças ao esplendor que produz, suportara a hediondez do mundo e a mediocridade da existência. A estética substituiu a religião e a ética: a vida apenas vale pela beleza, diversos artistas afirmam a necessidade de sacrificar a vida material, a vida política e familiar à vocação artística: trata-se, para eles, de viver pela arte, consagrar a sua existência à sua grandeza.

Ao afirmar a sua autonomia os artistas modernos insurgem-se contra as convenções, investem incessantemente em novos objetos, apropriam-se de todos os elementos do real para fins puramente estéticos. Impõe-se o direito de tudo estilizar, de tudo transmutar em obra de arte, sejam o medíocre, o trivial, o indigno, as máquinas, as colagens resultantes do acaso, o espaço urbano era da igualdade democrática tornou possível a afirmação de igual dignidade estética de todos os temas, a liberdade soberana dos artistas de qualificar como arte tudo o que criam e expõem. Perante a soberania absoluta do artista já não há realidade que não possa ser transformada em obra e perceções estéticas. Depois de Apollinaire e Marinetti, os surrealistas lançam o lema “A poesia está em toda a parte”. Ao romper com toda a função heterogénea da arte, ao afirmar-se na transgressão dos códigos e das hierarquias estabelecidas, a arte moderna pôs em marcha uma dinâmica de estetização sem limites do mundo, qualquer objeto podia ser tratado de um ponto de vista estético, ser anexado, absorvido na esfera da arte somente por decisão do artista.

Mas a ambição dos artistas modernos foi muito mais além do horizonte exclusivamente artístico. Com as vanguardas nasceram as novas utopias da arte, tendo esta como objetivo último ser um vetor de transformação das condições de vida e das mentalidades, uma força política ao serviço da nova sociedade e do “homem novo”. Em oposição à arte pela arte e ao simbolismo, Breton declara que é “um erro considerar a arte como um fim” e Tatline proclama a: “A arte morreu! Viva a arte da máquina” ao recusar a autonomia da arte, não reconhecendo nenhum valor à estética decorativa “burguesa”, os construtivistas proclamam a glória da técnica e o primado dos valores materiais e sociais sobre os valores estéticos. O belo funcional deve eliminar o belo decorativo e as construções utilitárias (imoveis, vestuário, mobiliário, objetos…) substituir-se ao luxo ornamental, sinónimo de esbanjamento decadente. A arte já não deve ser separada da sociedade e apenas um agradável passatempo para os ricaços: a estética do engenheiro deve poder reajustar num “design total” a integralidade do ambiente quotidiano dos homens. Já não os projetos de embelezamento do quadro de vida, mas “a máquina para habitar” (Le Corbusier), respondendo às necessidades práticas dos homens e a custo mínimo. A era moderna vê assim afirmar-se, por um lado, a “religião” da arte, por outro, um processo de desestetização produzido muito particularmente pela arquitetura e pelo urbanismo, que condenam o ornamento e o embelezamento artificial do edifício, preconizando construções geométricas totalmente despojadas, a substituição da composição harmoniosa dos jardins clássicos por “espaços verdes”.

Ao mesmo tempo, em diversas correntes surge um novo interesse pelas artes ditas menores. Enquanto se multiplicam as críticas dirigidas à indústria moderna – acusada de disseminar a fealdade e a uniformidade – florescem os projetos de embelezamento da vida quotidiana de todas as classes, a vontade de introduzir a arte por toda a parte e em todas as coisas pela regenerescência e difusão das artes decorativas. De Ruskin à Arte Nova, William Morris ao movimento Arts & Crafts, e, depois, à Bauhaus, não faltam correntes modernistas que denunciaram “a conceção egoísta da vida de artista” (Van de Velde), a distinção nefasta entre “Grande Arte” e “artes menores”, preconizando a igual dignidade de todas as formas de arte, uma arte útil e democrática sustentada pela reabilitação das artes aplicadas, das artes industriais, das artes de ornamentação e de construção. Já não se quer quadros e estátuas reservados a uma classe social alta, mas uma arte que investe no mobiliário, nos papéis de parede, nas tapeçarias, nos utensílios de cozinha, nos têxteis, nas fachadas arquitetónicas, nos cartazes. Com a época democrática, a arte assume como missão salvar a sociedade, regenerar a qualidade da casa e a felicidade do povo, “mudar a vida” de todos os dias: o Modern Style foi batizado por Giovanni Beltrami como “socialismo della Belleza”.

A estetização própria da idade moderna seguiu, assim duas grandes vias. Por um lado, a estetização radical da arte pura, da arte pela arte, de obras libertas de todos os fins utilitários, não tendo outros fins senão elas próprias. Por outro, precisamente no oposto, os projetos de uma arte revolucionária “para o povo”, uma arte útil que se faz sentir nos mais pequenos detalhes da vida quotidiana e orientada para o bem-estar da maioria.


Com efeito, o universo industrial e comercial foi o principal artesão da estetização moderna do mundo e da sua expansão democrática.

terça-feira, novembro 04, 2014

Arte para os príncipes

Herdeiro da Antiguidade clássica, pela excecional importância deste período na história da arte, as suas obras constituem um modelo de perfeição estética da Renascença até aos nossos dias. São impostos os princípios de harmonia, de equilíbrio das proporções, de simetria, de justa medida. O processo de estetização já não se separa do projeto de purificação das formas, da aspiração a uma beleza idealizada e equilibrada, sinónimo de elegância e de graça. A arte não imita a natureza, ela deve sublimá-la, transfigurá-la exprimindo a beleza ideal, a perfeição harmoniosa que é a do próprio cosmos.

O humanismo da Renascença reabilita e reivindica expressamente, no fim da Idade Média surge um segundo momento que se estende até ao séc. XVIII. Constitui as premissas da modernidade estética com o aparecimento do estatuto de artista separado do de artesão, com a ideia do poder criativo de o artista-génio assinar as suas obras, com a unificação das artes particulares no conceito unitário de arte no seu sentido moderno, aplicando-se a todas as belas-artes, com obras destinadas a agradar a um público afortunado e instruído e já não simplesmente a comunicar os ensinamentos religiosos e a responder às exigências dos dignatários da Igreja. A dimensão propriamente estética da arte ganha relevo, o artista deve esforçar-se por eliminar todas as imperfeições e procurar imagens que estejam de acordo com o que há de mais belo, de mais harmonioso na natureza. Com a emancipação progressiva dos artistas relativamente às corporações, estes vão beneficiar, através dos seus contratos com os patrocinadores, de uma margem de iniciativa desconhecida até então: a aventura da autonomização do domínio artístico e estético está em marcha.

  Este momento secular é contemporâneo da vida de corte, do aparecimento da moda e dos seus jogos de elegância, dos tratados de “boas maneiras”, mas também de uma arquitetura que oferece a própria imagem do refinamento e da graça, de urbanismo de inspiração estética, de jardins que parecem quadros com esplanadas, esculturas, lagos, fontes, vastas perspetivas, destinados a encantar e a maravilhar o olhar. Não só apenas a commoditas, mas a graça das formas harmoniosas, o prazer estético, a venustas (Alberti), em cidades agradáveis, belas, “de aparência aprazível e de agradável estadia” (Francesco di Giorgio Martini). Os artistas são solicitados e convidados para as cortes europeias para criar cenários magníficos, ornamentar o interior de castelos e a planificação de parques. As igrejas, querendo seduzir e atrair os fieis, oferecem, com o período barroco, um espetáculo teatral exuberante com fachadas sobrecarregadas de esculturas, estruturas que desaparecem sob as ornamentações, efeitos de ótica, jogos de sombra e luz, baldaquinos, tabernáculos, púlpitos, custódias, cálices, cibórios abundantemente decorados: é exibida toda uma arte exuberante para criar um espetáculo grandioso, valorizar a beleza da decoração e esplendor dos ornamentos. Os monarcas, os príncipes, as classes aristocráticas lançam-se em grandes que se destinam a tornar as suas cidades e as suas residências mais admiráveis, mandam edificar castelos marcados pela elegância de estilo, constroem palácios, hotéis, villas sumptuosas, enquadrados por parques imensos cheios de estátuas e confiados aos melhores arquitetos. Remodelam cidades segundo um ponto de vista estético, criando praças compostas por edifícios alinhados de fachadas harmoniosas, ruas que oferecem grandes efeitos de perspetivas o embelezamento das cidades tornou-se um objetivo político de grande importância. Impõe-se uma “arte urbana”, uma encenação teatral da cidade e da natureza, enobrecendo o ambiente habitado e aumentando o prestígio, a magnificência, a glória de reis e príncipes.


A partir da Renascença, a arte, a beleza, os valores estéticos adquiriram um valor, uma dignidade, uma importância social novos, o que é testemunhado pelo planeamento urbano, pelas arquiteturas, jardins, mobiliário, obras de cristal e faiança, pelo nu em pintura e escultura, pelos ideais da harmonia e proporção. Gosto pela arte e vontade de estilização do enquadramento da vida que funciona como um meio de autoafirmação social, maneira de fazer marcar o estatuto e ampliar o prestígio dos mais poderosos. A estetização aristocrática, durante todo este ciclo, o intenso processo de estetização (elegância, refinamento, graça das formas) em vigor nas altas esferas da sociedade não é impulsionada por lógicas sociais, estratégias políticas da teatralização do poder, o imperativo aristocrático de representação social e o primado das competições pelo estatuto e pelo prestígio constitutivo da sociedade holística em que a importância da relação dos homens vence a da relação dos homens com as coisas.      

segunda-feira, novembro 03, 2014

Arte para os deuses

Durante milhares de anos, as artes em vigor nas sociedades ditas primitivas não foram de facto criadas com uma intenção estética e tendo em vista um consumo puramente estético, “desinteressado” e gratuito, mas com um objetivo essencialmente ritual. Nestas culturas, o que se pretende com o estilo não pode ser separado da organização religiosa, mágica, sexual e do clã. Inseridas em sistemas coletivos que lhes dão sentido, as formas estéticas não são fenómenos de funcionamento autônomo e separado: é a estruturação social e religiosa que por todo o lado pauta o jogo das formas artísticas. São sociedades em que as convenções estéticas, a organização social e religiosa estão estruturalmente ligadas e indiferenciadas. Ao traduzir a organização do cosmos, ao ilustrar os mitos exprimindo a tribo, o clã, o sexo, ritmando os momentos importantes da vida social, as máscaras, os toucados, as pinturas do rosto e do corpo, as esculturas, as danças tem primeiramente uma função e um valor ritual e religioso.

Porque a arte não tem existência separada, informa a totalidade da vida: rezar, trabalhar, trocar, combater, todas estas atividades implicam dimensões estéticas que são tudo menos fúteis ou periféricas, uma vez que são necessárias ao sucesso de diferentes operações sociais e individuais. O nascimento, a morte, os ritos de passagem, a caça, o casamento, a guerra dão lugar, em todo o lado, a um trabalho de artialização feito de danças, de cânticos, de fetiches, de adereços, de narrativas rituais estritamente diferenciados segundo a idade e o sexo. Artialização em que as formas não se destinam a ser admiradas pela sua beleza, mas a conferir poderes práticos: curar doenças, opor-se aos espíritos negativos, fazer chover, estabelecer alianças com os mortos. Muitos destes objetos rituais não são fabricados para ser conservados: deitam-nos fora, destruídos após o seu uso ou, então, repintados antes de cada cerimónia. Nada de artistas profissionais ilustres, nada de obras de arte ”desinteressadas” nem mesmo muitas vezes termos como “arte”, “estética”, “beleza”. E, no entanto, como sublinhou Mauss, “a importância do fenómeno estético em todas as sociedades que nos precederam é considerável”.


Semelhante controlo do todo coletivo sobre as formas estéticas não exclui certamente, numa ou noutra circunstância, alguma liberdade de criação ou de expressividade individual. Mas são fenómenos limitados e pontuais, assim como práticas estéticas, nestas sociedades, são basicamente exigidas pelas suas funções culturais e sociais e são acompanhadas de regras extremamente precisas. Por toda a parte, as artes são executadas no respeito de regras draconianas e fidelidade à tradição. Não se trata de inovar e de inventar novos códigos, mas obedecer aos cânones recebidos dos antepassados ou dos deuses. È uma artialização ritual, tradicional, religiosa, que marcou o mais longo período da história dos estilos: uma artialização pré-reflexiva, sem sistema de valores essencialmente artísticos, sem intenção estética específica e autónoma.