quinta-feira, novembro 13, 2014

Arte para o mercado

Uma quarta fase de estetização do mundo é estabelecida, remodelada no essencial, por lógicas de comercialização e de individualização extremas. A uma cultura modernista, dominada por uma lógica subversiva em guerra contra o mundo burguês, sucede um novo universo no qual as vanguardas são integradas na ordem económica, aceites, procuradas, apoiadas pelas instituições oficiais. Com o triunfo do capitalismo artístico, os fenómenos estéticos já não regressarão aos pequenos mundos periféricos e marginais integrados nos universos de produção, de comercialização e de comunicação dos bens materiais, constituem imensos mercados moldados por gigantes económicos internacionais.

No momento da estetização dos mercados de consumo, o capitalismo artístico multiplica os estilos, as tendências, os espetáculos, os lugares de arte, lança continuamente novas modas em todos os setores e cria em grande escala o sonho, o imaginário, emoções; artializa o domínio da vida quotidiana no mesmo momento em que a arte contemporânea, por seu lado, está comprometida num largo processo de desdefinição. Uma desdefinição da arte que, no entanto, implica uma forma inédita de experiencia estética. É um universo de superabundância ou de inflação estética que se combina aos nossos olhos: um mundo transestético, uma espécie de hiperarte em que a arte se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da vida vulgar. O domínio do estilo e da emoção passou ao regime híper: isto não quer dizer beleza perfeita e acabada, mas generalização das estratégias estéticas com fim comercial em todos os setores das indústrias de consumo.

Uma hiperarte igualmente no que já não simboliza um cosmos nem exprime narrativas transcendentes, já não é a linguagem de uma classe social, mas funciona como estratégia de marketing, valorização distrativa, jogos de sedução sempre renovados para captar os desejos do novo consumidor hedonista e aumentar o volume de negócios das marcas. Estamos no momento do estado estratégico e comercial da estetização do mundo, na idade transestética.

Cada vez mais as indústrias culturais ou criativas funcionam em modo hiperbólico, com filmes com orçamentos colossais, campanhas de publicidade criativas, séries de televisão diversificadas, emissões de televisão que misturam o erudito e o music-hall, arquiteturas-esculturas de grandes efeitos, videoclipes delirantes, parques de diversão gigantescos, concertos pop com encenações “extremas”. Nada mais escapa à rede da imagem e do divertimento e tudo o que é espetacular cruza-se com o imperativo comercial: o capitalismo artístico criou um império transestético fecundante onde se misturam design e star system, criação e entertainment, cultura e show business, arte e comunicação, vanguarda e moda. Uma hipercultura comunicacional e comercial que vê degradar-se as oposições clássicas da famosa “sociedade do espetáculo”: o capitalismo criativo transestético que não funciona com a separação, com a divisão, mas com o cruzamento, com a trama dos domínios e dos géneros. O antigo reino do espetáculo desapareceu, foi substituído pelo hiperespetáculo que consagra a cultura democrática e comercial do divertimento.

As estratégias comerciais do capitalismo criativo transestético já não poupam nenhuma esfera. Os objetos comuns são invadidos pelo estilo e pelo look, muitos deles tornam-se acessórios de moda. Os designers, os artistas plásticos, os criadores de moda são convidados a redesenhar o aspeto dos produtos básicos industriais e dos templos de consumo. As marcas de moda do grande público copiam os códigos do luxo. As lojas, os hotéis, os bares e os restaurantes investem nas suas imagens, na decoração, na personalização dos seus espaços. O património é reabilitado e encenado à maneira dos cenários cinematográficos. Os cenários urbanos são retocados, encenados, “disneyficados” com o intuito do consumo turístico. A publicidade quer ser criativa e os desfiles de moda parecem performances. As arquiteturas de imagens florescem, valem por si mesmas, pela sua atração, pela sua dimensão espetacular e funcionam como vetor promocional nos mercados concorrenciais do turismo cultural.

Os termos utilizados para designar as profissões e as atividades económicas têm igualmente a marca da ambição estética: os jardineiros tornaram-se paisagistas, os cabeleireiros hair designers, as floristas artistas florais, os cozinheiros criadores culinários, os tatuadores artistas tatuadores, os joalheiros artistas joalheiros, os costureiros diretores artísticos, os construtores de automóveis “criadores de automóveis”. Frank Gehry é celebrado por todo o lado como o arquiteto artista. Mesmo alguns business men são descritos como “artistas visionários” (Steve Jobs). Enquanto se desencadeiam as competições económicas, o capitalismo trabalha para construir e difundir uma imagem artística dos seus atores, para artializar as atividades económicas. A arte tornou-se um instrumento de legitimação das marcas e das empresas do capitalismo.

A extraordinária extensão das lógicas transestéticas vê-se também no plano geográfico. Estamos no momento do capitalismo globalizado a impulsar uma estilização dos bens de consumo de massas que já não está circunscrita ao Ocidente. Nos cinco continentes estão a trabalhar indústrias criativas, criando produtos com estilo, moda, entertainment, uma cultura de massas mundializada.

Mas o processo de estetização hipermoderno extravasa em muito as esferas da produção: conquistou o consumo, as aspirações, os modos de vida, a relação com o corpo, o olhar sobre o mundo. O gosto pela moda, pelos espetáculos, pela música, pelo turismo, pelo património, por cosméticos, pela decoração da casa generalizou-se em todas as camadas da sociedade. O capitalismo artístico impulsionou o reino do hiperconsumo estético no sentido do consumo superabundante de alguns estilos, mas mais largamente, no sentido etimológico da palavra, dos gregos, de sensações e de experiencias sensíveis.

O capitalismo levou não tanto a um processo de empobrecimento ou de delinquência da existência estética mas à democratização de massas de um homo aestheticus de um género inédito. O individuo transestético é reflexivo, eclético e nómada: menos conformista e mais exigente do que no passado, aparece ao mesmo tempo como um “drogado” do consumo, obcecado com o descartável a celeridade, os divertimentos fáceis.


À estetização do mundo económico responde um estetização do ideal de vida, uma atitude estética para com a vida. Já ninguém quer viver e sacrificar-se por princípios e bens exteriores a si, mas inventar-se a si mesmo, criar as suas próprias regras com vista a uma vida melhor, imensa, rica em emoções e espetáculos.

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