sábado, março 29, 2014

Jürgen Habermas


 
Habermas, Jürgen – O discurso filosófico da modernidade. Texto Editora, 2010.

A palavra “modernização“ foi introduzida como “terminus” apenas nos anos 50. O conceito de modernização refere-se a um feixe de processos cumulativos que se reforçam mutuamente: à formação de capital e mobilização de recursos, ao desenvolvimento de forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à formação de identidades nacionais, à expansão de direitos de participação política, de formas urbanas de vida e da formação escolar formal, refere-se à secularização de valores e normas.

O primeiro filósofo a desenvolver o conceito de modernidade foi Hegel. Temos de remontar a Hegel para compreender o que significa a relação interna entre modernidade [Modernitat] e racionalidade. Hegel começou por utilizar o conceito de modernidade em contextos históricos como conceito epocal: os “novos tempos” são os “tempos modernos”. Isto correspondia ao uso contemporâneo na língua inglesa e francesa das expressões “modern times” e temps modernes”; designam por volta de 1800 os três séculos precedentes. A descoberta do “Novo Mundo” bem como o Renascimento e a Reforma – os três grandes acontecimentos à volta de 1500 – constituem a transição epocal entre a Idade Moderna e a Idade Média. Enquanto no ocidente cristão os “novos tempos” designaram o tempo ainda para vir que se abria ao homem só após o Juízo Final, o conceito profano da idade moderna exprime a convicção de que o futuro já começou, significa a época que vive dirigida para o futuro, a qual se abriu ao novo que há-de vir. Desta forma, a cesura do começo do novo é deslocada para o passado, precisamente para o início da idade moderna; foi apenas em pleno séc. XVIII que o limiar histórico fixado à roda de 1500 foi reconhecido retrospectivamente como sendo na realidade esse começo.

O mundo novo, o mundo moderno, se distingue do antigo pelo facto de se abrir ao futuro. Hegel entende igualmente “o nosso tempo” como “a época mais recente”. Coloca o início do seu tempo presente na cesura que o Iluminismo e a Revolução Francesa representam para os homens com mais discernimento vivendo no fim do séc. XVIII e princípios do séc. XIX.

É inicialmente no domínio da crítica estética que tomamos consciência do problema de uma fundamentação da modernidade a partir de si própria, e isso torna-se claro quando se traça a história do conceito de “moderno”. O processo de separação do paradigma da arte antiga é iniciado no começo do séc. XVIII pela célebre Querelle des Anciens et des Modernes. Os modernos põem em questão, com argumentos de crítica histórica o sentido da imitação dos modelos antigos, em face das normas de uma beleza absoluta, aparentemente desligada do tempo, elaboram os critérios de um belo relativo e condicionado pelo tempo e, dessa forma, articulam a auto compreensão do iluminismo francês, como de um recomeço epocal. Conquanto o substantivo modernista (juntamente com os adjectivos antitéticos antiqui / moderni) fosse usado num sentido cronológico desde final da Antiguidade, nas línguas europeias da idade moderna só muito tarde, mais ou menos, a partir dos meados do séc. XIX, é que o adjectivo moderno foi substantivado, e de novo pela primeira vez no domínio das Belas Artes. Assim se explica a razão pela qual as expressões modernidade, moderne, modernitat, modernité, conservam até hoje um cerne de significado estético marcado pela auto compreensão da arte de vanguarda.

Para Baudelaire a experiência estética fundia-se com a experiência histórica da modernidade. Na experiência fundamental da modernidade estética agudiza-se o problema da auto fundamentação, porque aqui o horizonte da experiência temporal se reduz à subjectividade descentrada, que se afasta das convenções da vida quotidiana. É por isso que para Baudelaire a obra de arte moderna ocupa uma posição peculiar na intersecção dos eixos da actualidade e da eternidade. A modernidade é o transitório, o evanescente, o contingente, é uma metade da arte sendo a outra metade o eterno e o imutável. Esta compreensão do tempo, radicalizada de novo pelo surrealismo, fundamenta a afinidade da modernidade com a moda.

Baudelaire afirma que o belo é formado por um elemento eterno e imutável e também por um elemento relativo e circunstancial, que é representado pela época, pela moda, pela vida espiritual, pela paixão. Sem este segundo elemento, que é como que a cobertura brilhante e atraente que abriu o apetite para o bolo divino, o primeiro elemento seria indigerível, para a natureza humana. Baudelaire, na sua qualidade de crítico de arte, destaca na pintura moderna o aspecto da beleza fugaz, efémera da vida presente, o carácter daquilo que o leitor nos permite designar por modernidade. Baudelaire escreveu a palavra modernidade estre aspas, porque tem plena consciência de que essa palavra é nova e é usada terminologicamente de forma particular consequentemente a obra autentica está radicalmente presa ao momento em que nasce; exactamente porque se consome na actualidade é que pode deter o fluxo regular da trivialidade, romper a normalidade e saciar por um momento, o momento da efémera fusão do eterno com o actual, o imortal anseio de beleza.

A beleza eterna desvenda-se apenas no disfarce do traje da época; Walter Benjamim refere-se mais tarde a isto usando a expressão da imagem dialéctica. A obra de arte moderna está marcada pela união do autêntico com o efémero. Este carácter da actualidade fundamenta igualmente a afinidade da arte com a moda, com o que é novo.

Hegel é o primeiro a elevar à categoria de problema filosófico o processo de separação da modernidade das sugestões normativas do passado que lhe são exteriores. Ao mesmo tempo que a modernidade desperta para uma consciência de si própria nasce nela uma necessidade de auto certificação, que é compreendida por Hegel como a necessidade da filosofia. Ele vê a filosofia confrontada com a tarefa de traduzir em pensamento o seu próprio tempo que, para Hegel significa a época moderna. Hegel está convencido de que não pode de forma alguma apreender o conceito que a filosofia faz de si própria sem atender ao conceito filosófico de modernidade.

Para Hegel os tempos modernos são caracterizados de uma forma geral por uma estrutura de auto relação a que ele chama subjectividade: o princípio do mundo moderno em geral é a liberdade da subjectividade. Quando Hegel caracteriza a fisionomia dos tempos modernos (ou do mundo moderno) explica a subjectividade por meio da liberdade e reflexão. O que dá grandiosidade à nossa época é o reconhecimento da liberdade, a propriedade do espírito, o reconhecimento de que o espírito estando em si está consigo. Neste contexto a expressão subjectividade implica sobretudo quatro conotações: a) individualismo, no mundo moderno a peculiaridade infinitamente particular pode fazer valer as suas pretensões; b) direito à crítica, o princípio do mundo moderno exige que o que deve ser reconhecido por cada um se lhe apresente como algo legítimo; c) autonomia do agir, é característico dos tempos modernos o facto de nos querermos responsabilizar pelo que fazemos; d) por fim, a própria filosofia idealista, Hegel considera ser tarefa dos tempos modernos que a filosofia apreenda a ideia que sabe de si própria. Os históricos acontecimentos chave para o estabelecimento do princípio da subjectividade são a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Com Lutero a fé religiosa tornou-se reflexiva, na solidão da subjectividade o mundo divino transformou-se em algo postulado por nós. Contra a fé da prédica e da tradição o protestantismo proclama a soberania do sujeito que faz valer o seu próprio discernimento. Logo depois a Declaração dos Direitos do Homem e o Código Napoleónico consagram, em detrimento do direito histórico, o princípio do livre-arbítrio como fundamento substancial do estado, considera-se que o direito e a eticidade se fundamentavam no terreno presente da vontade do Homem visto que anteriormente eram apenas um mandamento divino emanado de fora, escrito no Antigo e no Novo Testamento.

O princípio da subjectividade determina além disso as configurações da cultura moderna. É o que acontece, em primeiro lugar, com a ciência objectivamente que despe a Natureza da magia e liberta simultaneamente o sujeito cognoscente: contestaram-se então todos os milagres; porque a Natureza é agora um sistema de leis conhecida e reconhecida, o Homem sente-se bem dentro dela e só conta aquilo em que ele se sente bem; o conhecimento da Natureza torna-o livre.

A arte moderna revela a sua essência no romantismo; a forma e o conteúdo da arte romântica são determinados por uma interioridade absoluta. A auto-realização expressiva torna-se o princípio de uma arte que se apresenta como forma de vida.

Na modernidade portanto, a vida religiosa, o estado e a sociedade, bem como a ciência, a moral e a arte transformou-se em outras tantas incarnações do princípio da subjectividade. A sua estrutura é englobada como tal na filosofia, nomeadamente como subjectividade abstracta no cogito ergo sum de Descartes, na forma de autoconsciência absoluta em Kant. Trata-se da estrutura da auto relação do sujeito cognoscente que se debruça sobre si como sobre um objecto para compreender como uma imagem reflectida num espelho precisamente, numa atitude especulativa.

Na medida em que a teoria da modernidade se oriente pelos conceitos básicos da filosofia da reflexão, pelos conceitos de conhecimento da tomada de consciência e da autoconsciência, torna-se evidente a conexão interna desta teoria com o conceito da razão ou da racionalidade.