domingo, outubro 24, 2010

O Estado Novo e a Arte



O volume agora publicado constitui uma versão muito abreviada da dissertação de doutoramento, igualmente intitulada O Poder da Arte: O Estado Novo e a Cidade Universitária de Coimbra, da autoria de Nuno Rosmaninho.


Este livro integra a arte do Estado Novo no âmbito da dos regimes autoritários e totalitários e verifica se esse confronto tornava mais compreensível a Cidade Universitária de Coimbra. A generalidade dos estudos sobre a arte nos regimes autoritários e totalitários valoriza as relações com o poder político, em particular o processo de sujeição ideológica. O fenómeno de politização da arte supõe a concessão (ou o reconhecimento) do elevado poder de endoutrinamento da arte.
Existe uma arte totalitária?


Apesar dos estudos académicos realizados a partir dos anos sessenta e setenta terem configurado a arte dos regimes totalitários como tema de investigação, a queda do Muro de Berlim, em 1989, facilitou o seu surgimento aos olhos do público, para isso contribuindo mais de uma dúzia de exposições realizadas durante a década de noventa, entre as quais se destaca Arte e Poder: a Europa sob os ditadores (XXIII Exposição do Conselho da Europa; Londres, Barcelona e Berlim, 1996). A falência dos regimes comunistas foi acompanhada pela destruição dos símbolos artísticos do passado, sobretudo a estatutária, mas permitiu, ao mesmo tempo, observá-los com maior distanciamento.


A generalidade dos autores, reconhecendo a existência de similitudes artísticas entre os diversos regimes autoritários e totalitários, divide-se quanto à pertinência da expressão arte totalitária. Igor Golomstock escolheu-a para título de um livro acerca da União Soviética, da Alemanha, da Itália e da China, elevando-a “a segundo estilo internacional da cultura contemporânea”, depois do modernismo. E Sigmum Paas estendeu as similitudes arquitectónicas à Áustria, Suíça, Espanha, Portugal e Europa de Leste. Outros estudiosos, contudo, mais sensíveis às diferenças entre os países ou à diversidade interna de cada um deles, preferem falar de “arte sob os totalitarismos”. Para estes a diversidade estilística patente nos regimes nazi e estalinista, por exemplo, contraria tal conceito. Mas para os que defendem a existência de uma “arte totalitária” as semelhanças suplantam as diferenças, não sendo estas mais do que o resultado de naturais especificidades culturais. Sem tomar partido, Toby Clark enumerou os dois aspectos de modo que parece acentuar as similitudes: tanto o realismo socialista como a arte nazi emergiram nos anos trinta, idealizaram os operários e camponeses, alimentaram o culto dos chefes e reconheceram a um estilo fácil de apreender. Ambos os regimes acabaram por adoptar uma arquitectura monumental, uma escultura heróica e uma linha académica na pintura, na música e na literatura.


Não está no nosso espírito, por exemplo, sugerir uma identidade estrita entre as artes nazi e estalinista. Em contrapartida, parece-nos inequívoca uma proximidade, que pode ser medida:
1º pela supremacia dos objectivos políticos e propagandistas;
2º pelo apertado controlo da arte e dos artistas exercido pelo Estado;
3º pela tendência para recusar as vanguardas em benefício do classicismo monumental, do ecletismo historicista e da expressão pseudo-vernácula, na arquitectura, e de um naturalismo académico, na pintura e escultura.


É neste sentido que adoptamos a expressão “arte totalitária”, mesmo reconhecendo os dilemas postos pelo conceito de “totalitarismo”. Extraindo dele a acepção que melhor descreve o fenómeno artístico, diríamos que a “arte totalitária” reflecte, num grau quase limite, a intervenção do Estado. Mas como exercício do poder nunca é, por definição, total, devemos evitar qualquer absolutização conceitual.


O cerne do problema que estamos aqui tratando é a dimensão política da arte, e não se reduz, como é evidente, ao período de entre as duas guerras. A aproximação entre a arte e a política é muito antiga.


Uma vez que a unidade da “arte totalitária” radica nos seus objectivos políticos, é fundamental não se restringir aos aspectos formais. É o programa político e ideológico que lhe confere mais inteligibilidade. De outro modo, como entender o surgimento de uma arquitectura clássica monumental, tanto nos E.U.A. como na Alemanha nazi? E como explicar que esse classicismo, que na Alemanha representava um sistema político totalitário, exprimisse nos Estados Unidos, desde Thomas Jefferson, a própria democracia?


O conceito de “arte totalitária” permite ultrapassar um quadro cronológico rígido e situar com nitidez formulações teóricas e até alguma actividade partidária. É o caso do Partido Comunista Francês do pós-guerra, em cujas orientações artísticas se detectam princípios importantes na União Soviética. A valorização dos conteúdos políticos conduziu, na pintura, ao primado do tema sobre a forma e à defesa da univocidade da mensagem, ao rigoroso controlo partidário e à imposição do realismo socialista; à hierarquização dos géneros, com predomínio do retrato e da pintura histórica.


A preponderância do elemento constitui o traço dominante da “arte totalitária”. O Estado arroga-se o direito de interferir na actividade, condicionando o mercado, a estética e a mensagem expressa. O próprio Hitler afirmou que, nos seus edifícios, apresentava ao povo uma “vontade de ordem, expressa em signos visíveis”. No limite, a arte apresenta-se como “um suporte passivo do político”, ao ponto de apagar a identidade do criador, como refere André Gunthert. Os pintores que se encontram ao serviço do Marechal Pétain aceitaram anular a individualidade para melhor executarem a hagiografia do poder. No pólo contrário, a arte da Resistência adoptou igualmente o registo propagandista e a simplificação estilística. O juízo estético chega a ser substituído pelo julgamento político. O direito de o estado intervir nos assuntos estéticos transformou-se rapidamente em dever, sob a alegação de que estava em causa o interesse nacional. A política, predominando sobre toda a actividade social, devia determinar também a arte. Com este raciocínio, valoriza-se não tanto a capacidade crítica dos líderes, mas sobretudo o seu discernimento político e ideológico. Mas daqui resultou, na Alemanha nazi, a afirmação da infalibilidade estética de Hitler, exarada por Adolf Ziengler na abertura da Exposição de Arte Degenerada, em 1937. Só ele estaria em condições de mostrar o caminho para a arte Alemã. Em 1939, Marcello Piacentini reconheceu no extraordinário desenvolvimento arquitectónico nazi um importante significado político e artístico, unindo assim os dois aspectos que alguns estudiosos se esforçam por separar.


Num debate acerca da existência de uma “arte totalitária”, além dos aspectos estilísticos, é, portanto, decisiva a sua inserção no aparelho político e cultural totalitário e a percepção da sua função ideológica e propagandística. No contexto dos Estados liberais, a propaganda oficial apresenta um carácter episódico, relacionado com o esforço de guerra. A criação pioneira de um Departamento de Propaganda de Inglaterra, em 1917, traduz uma forma de combate que terminou com o fim da guerra. França e Estados Unidos organizaram também os seus serviços no âmbito do esforço de guerra. Foi com os regimes ditatoriais surgidos nos anos vinte e trinta que propaganda se converteu numa poderosa e permanente máquina de endoutrinamento, abrangendo a imprensa, a música, a arquitectura, as artes plásticas, o cinema e a rádio. A função ideológica e propagandística não constitui um aspecto secundário da arte totalitária, mas o seu verdadeiro nó górdio. Apenas ela torna inteligíveis os enormes investimentos culturais. Os dirigentes acreditavam poder moldar a sociedade através dela, mas tal desiderato exigia um férreo controlo político, bem expresso nos seus objectivos em que Mao Tse Tung encerrou a arte (1956):
- “a arte deverá fortalecer a unidade de uma nação chinesa constituída por numerosos povos;”
- “contribuir para a construção do socialismo;”
- “reforçar a ditadura democrática popular;”
- “reforçar o centralismo democrático;”
- “reforçar a direcção do partido comunista;”
- “permitir o estabelecimento da solidariedade socialista internacional, bem como da solidariedade dos povos pacifistas do mundo inteiro.”


Assim, compreende-se que a arte totalitária exprime de forma manifesta, tanto no estilo como no enunciado, as três características básicas de uma propaganda eficaz: simplicidade, força e concentração.


O controlo da arte e dos artistas


A “arte totalitária” formou-se por oposição ao modernismo, acusado de esteticamente repelente e de politicamente subversivo, mas a ideia de expor a arte considerada de mau gosto, para a educação do público e vergonha dos artistas, não nasceu com o nazismo. A implantação dos totalitarismos coincidiu com a radicalização do fenómeno, de nítidas raízes políticas. Assim, enquanto se processa um movimento antimoderno na União Soviética a partir do final da década de vinte, na Alemanha após 1933 e em Itália poucos anos depois, a Suécia, a Finlândia, os estados Unidos e a América Latina, prosseguiram o desenvolvimento do modernismo.


Na fase inicial do lançamento do aparelho de controlo, a Alemanha mobilizou-se contra as correntes artísticas consideradas “degeneradas”, excluindo dos museus dezasseis mil obras que, depois de confiscadas, foram queimadas ou vendidas no estrangeiro. As razões apresentadas, de natureza estética, política, racial e nacionalista, têm paralelo na União Soviética, que também empreendeu uma campanha contra os formalismos cubista, dadaista, futurista, impressionista e expressionista, “arte de decomposição e putrefacção”. Mas o que na Alemanha demorou apenas quatro anos a realizar-se, prolongou-se na União Soviética por mais de duas décadas. Seguir as correntes modernas correspondeu a praticar um crime contra o Estado e a sujeitar-se a uma sanção penal. Muitos artistas alemães emigraram para o Ocidente, enquanto outros, refugiados na União Soviética, acabaram por morrer nos campos de concentração onde também desapareceram artistas russos recalcitrantes.


Sob a influência soviética, desenvolveu-se na China uma cultura totalitária exemplar. Para reduzir a arte à sua função política, Mao Tse Tung criou um aparelho cultural similar ao soviético e ao germânico. Fundou a Associação dos Trabalhadores de Arte e de Literatura (Junho de 1949) que, reunidos em congresso criaram uma federação estruturalmente mais próxima da Câmara de Cultura do Reich do que dos sindicatos soviéticos. A inscrição obrigatória de todos os artistas nesta federação, o sistema estatal de recompensas (títulos académicos e prémios) e a instauração de uma apertada censura artística foram os passos seguintes. O terror cultural chinês aplicou-se com flutuações durante a segunda metade do século XX, conhecendo um brutal recrudescimento em 1966, durante a chamada “revolução cultural”. Milhares de escritores e de artistas foram então deportados para campos de trabalho ou sujeitos à humilhação pública.


A máquina cultural de Mussolini reflectiu a tardia adopção de um modelo artístico oficial. Apesar da criação de uma academia em 1926 e de um sindicato nacional das artes plásticas no ano seguinte, este último com direito de veto sobre a nomeação de artistas para cargos de natureza cultural, só em 1937 é que começou a funcionar segundo a lógica totalitária. Determinado talvez pelo novo desígnio imperial italiano e pelo reforço do classicismo monumental (correlacionado com a quebra do modernismo e a provável influência germânica), o regime acabou por pender para o monumentalismo, forma privilegiada de invocar a grandeza romana.


Arte e identidade nacional


A ideia de uma arte nacional, surgida com o movimento romântico, adensou-se nos regimes autoritários e totalitários. O que particularmente caracteriza os regimes autoritários e totalitários é a imposição de um discurso estético onde, a par da afirmação do poder do Estado, sobressaem tópicos identitários tão poderosos quanto vagos: romanidade, italianidade e mediaterraneidade, em Itália; nordicidade e arianismo, na Alemanha; herrerianismo, em Espanha; classicismo proletário, na União Soviética; e reaportuguesamento e tradição, no caso Português.


Arte autoritária ou totalitarismo incompleto?


O apelo totalitário


A institucionalização do Estado Novo e a difusão dos seus princípios originou, no campo artístico, um debate polarizado em várias questões: Devia o novo regime controlar a actividade artística? De que modo? Pela regulamentação estrita ou pela propaganda e persuasão? Devia adoptar uma corrente oficial? Cabia-lhe combater o modernismo ou simplesmente desfavorecê-lo? Estas questões, actuais no plano europeu, obtiveram respostas muito diversas em Portugal ao longo dos anos trinta. A reacção tradicionalista, assente em preconceitos políticos e em normas de bom gosto e até de bom senso, criou condições par o surgimento de uma “arte do regime”, exemplarmente reclamada por Portela Júnior, em 1936, na sequência de uma viagem de estudo ao estrangeiro, realizada três anos antes, como bolseiro da Junta Nacional da educação:


“cumpre ao Estado o direito e o dever de não perder oportunidade de intervir por intermédio dos seus organismos idóneos sempre que se pretende imprimir um carácter oficial a qualquer demonstração artística. Impõe-se a formação duma nova mentalidade artística conjugada neste sentido sob a influência da acção disciplinadora do Estado.”


Portela Júnior apontava, deste modo, para um enquadramento totalitário da actividade artística, cuja máxima expressão ocorreu sob os regimes nazi e estalinista. Em Portugal, a “acção disciplinadora do Estado” foi facilitada pela aproximação voluntária de uma parte dos artistas plásticos, mas a rigorosa imposição de uma “arte oficial” (através da exclusão e da perseguição dos artistas plásticos “degenerados” e de um apertado controlo estético da arquitectura) ficou por alcançar, mesmo no seio do aparelho político. A função propagandística atribuída à arte por Salazar, sem dúvida considerável, ficou muito aquém da que se verificou naqueles regimes.


Hitler afirmou num congresso do Partido Nacional Socialista, em Nuremberga, em 1935, que, pertencendo a arte ao povo, não podia tornar-se o luxo de alguns. Afirmação semelhante proferia Lenine quinze anos antes, acentuando a necessidade de, em conformidade com aquele princípio, a arte ser compreendida por todos. Esta ideia teve como corolário lógico o investimento maciço em propaganda, à qual a arte se subordinava. Nesta conformidade, a dotação financeira do Ministério da Propaganda e da Cultura da Alemanha, em 1937, ultrapassou a do próprio Ministério dos negócios estrangeiros.


Ao invés Salazar, questionado em 1933 sobre os apoios concedidos pelo Estado Novo, ao fomento artístico, desculpou-se do fraco investimento com uma curiosa metáfora, que relegava a arte para o campo das coisas superficiais: não se pode pedir a um pobre sem camisa que vista sobrecasaca.


A Exposição do Mundo Português patenteava uma notória uniformidade estética. Tornava-se assim oportuno discutir a possibilidade e a conveniência de uma “arte política” e a importância da liberdade criativa.


Parece evidente que os apelos mais insistentes para uma intervenção estatal coincidiram com a ascensão dos regimes nazi e fascista. Depois da II Guerra Mundial, a liberdade criativa retomou o seu estatuto indiscutível, apesar de, através das inúmeras encomendas, o Estado continuar a agir sobre a expressão artística. Os arquitectos presentes no Congresso de 1948 repudiaram, quase unanimemente, “quaisquer imposições de estilos ou feições tradicionais”.


A intromissão do Estado


Apesar de evidentes intromissões do Estado na expressão artística, alguns autores, sem recusar esse facto, preferem acentuar o papel livremente desempenhado por arquitectos e artistas plásticos na imposição de um estilo. Nuno Portas defende que o “monumentalismo de estafe”da Exposição do Mundo Português foi “concebido, ao que consta, com entusiasmo (em vez de submissão ou vergonha, como se chegou a fazer crer)”.


A influência que o Estado Novo manteve, enquanto encomendante, na feição estética e política da escultura parece indiscutível, embora nem sempre fácil de definir. Gustavo Bastos, conhecedor directo dessa realidade, considera que ela estava bem presente no espírito do artista como condição fundamental para obter trabalho. Em entrevista concedida naquele mesmo ano, Vasco Pereira da Conceição lamentou a “péssima distribuição de trabalhos de escultura realizada pelo Estado. Na sua opinião, estas circunstâncias induziram nos artistas uma atitude de subserviência política e estética. Em face das escassíssimas encomendas privadas, os pintores e os escultores inclinavam-se, por razões económicas, perante o que se pode designar uma estética oficial. Assim, não surpreende que existia no Arquivo Histórico do Ministério da Justiça, como provavelmente noutros ministérios, uma pasta com pedidos de trabalho de escultores, formulados em “tom de súplica”, nos anos de 1955 a 1973, aproximadamente.


No imediato pós-guerra, a acentuação do combate político repercutiu-se na arte. O Estado Novo, que procurara promover as correntes do seu agrado, encetou medidas repressivas esporádicas. Em 1947, investiu sobre a 2ª Exposição Geral de Artes Plásticas, organizada pelo sector intelectual do Movimento de Unidade Democrática em alternativa aos salões de SNI. Obedecendo às ordens do ministro do interior, Augusto Cancela de Abreu, a polícia apressou-se a apreender obras de Mário Dionísio, Júlio Pomar, Rui Pimental, Avelino Cunhal, Maria Keil, Louro de Almeida, Nuno Tavares e Manuel Ribeiro de Paiva. No mesmo ano destruiu o fresco de Júlio Pomar no Cinema Batalha, do Porto. E no ano seguinte impôs a censura prévia aos quadros expostos naquele certame, recusada pelos surrealistas, que preferiram abster-se de expor e organizar a Exposição Surrealista em Janeiro de 1949.

segunda-feira, outubro 18, 2010

A arte dos regimes totalitários do séc. XX – Rússia e Alemanha


Este livro preenche uma lacuna na bibliografia brasileira sobre um tema de grande relevância na historiografia da arte, e ainda pouco estudado: o desenvolvimento de uma estética característica dos regimes totalitários do entre-guerras europeu. Concentrando-se em duas situações específicas, a da Alemanha nazista e da Rússia soviética, a autora apresenta para o leitor um panorama do cenário artístico da primeira metade do século XX. A partir das experiências da vanguarda, passando pelo "retorno à ordem" do pós-guerra, pela Revolução Russa e pela consagração de Hitler e Stalin como ditadores absolutos, Vanessa Bortulucce discute de que maneira a arte se colocou a serviço de ideologias repressoras que ainda hoje intrigam o homem contemporâneo.

A arte moderna revolucionou todo o conceito de arte que se tinha anteriormente, tanto pelo público como pela crítica. Em geral denomina-se uma obra de “moderna” quando esta reflecte, de alguma forma, esta característica de ruptura com a arte oficial, ou seja, a arte que o aspirante a artista aprendia nas aclamadas e respeitadas academias artísticas. Esta noção de uma arte académica é usada muitas vezes em um viés pejorativo, quando associadas à ideia de uma arte dependente de procedimentos e regras imutáveis e incontestáveis pelos seus alunos – em sua maioria oriunda de famílias de considerável poder aquisitivo. Ao longo dos séculos a academia assumiria para si, de um modo monopolizador, a docência da arte, influindo com seus juízos na aceitação ou na recusa social dos artistas. Elas passam a representar a arte oficial; isto equivale a dizer que elas representavam o gosto do público e da crítica dominante, frequentadores das exposições de pintura e escultura. Logo, se desejasse ter visibilidade social e sucesso de carreira, o artista não deveria estar alheio a esta arte oficial e predominante.

Muitos dos artistas que hoje são reconhecidos pelos historiadores da arte como grandes expoentes da arte moderna estudaram nestas tradicionais academias. Contudo, em algum momento de sua trajectória artística questionaram, rejeitaram, transformaram, libertaram sua obra dos formalismos e condutas académicas, criando uma nova forma de arte. Toda a representação pictórica e escultórica passou por uma revisão de seus métodos, de seus temas, de suas intenções. Esta ruptura com a arte oficial foi na maioria das vezes radical: o artista percebe, finalmente, que pode fazer o que quiser com sua arte; que não precisa seguir regras e modelos se estes não o agradam; que não precisa satisfazer o gosto de um público se ele próprio não estiver satisfeito com sua arte. A cor, a linha, o objecto, as formas geométricas, por exemplo, passam a ser vistos como elementos mais independentes, mais livres, desatrelados de qualquer esquema fixo de aplicação. Passam a ser promessas de novas ideias, de novos usos dentro da arte.

A partir destas considerações, os artistas vislumbram um novo horizonte para a sua arte. Muito foi feito desde então: o artista passa a reivindicar um lugar na sociedade para esta nova arte; contesta a academia oficial e as também oficiais exposições de arte; critica o público, desafia os críticos de arte; organiza-se em grupos, em círculos artísticos, em associações; escreve em jornais, redige manifestos, promove debates, discute a arte em bares, em cafés, em saraus literários. Não deseja passar, obrigatoriamente, o dia todo recluso em seu ateliê: vai conhecer a vida que existe além daquela vivida pelos abastados; é assim que descobre que os bordéis, as casas de dança, as ruas nas madrugadas, subúrbios, pensões, indústrias e tantos outros lugares são óptimos temas para a sua arte. Mas esta liberdade é bem mais ampla para o artista, e transcende os temas que ele descobre em novos quotidianos; ele percebe que não existe, por fim, nenhuma obrigatoriedade temática na obra de arte; ela pode, acima de tudo, não ter nenhum tema. A obra pode ser constituída apenas por cores, linhas, planos, madeira, gesso, cera. A cor, por exemplo, não precisa significar nada, apenas informar que ela é cor; a obra de arte, enfim, não possui a obrigação de significar, e nem é esta a sua função, como tantos pensavam. A obra de arte, portanto, desatrela-se de sua ligação com o mundo concreto, da realidade visível – ela possui o potencial da abstracção. Ela pode não apenas reflectir o mundo tal como ele é visto, mas também apresentar uma visão pessoal do artista sobre esse mundo; ou ainda, ela pode ser um vislumbre de um mundo interior deste artista, mundo onírico, mundo cinestésico, mundo geométrico.

Assim, dentro da arte moderna, desenvolve-se a chamada arte abstracta, um dos momentos mais importantes dentro da história de arte. Para muitas pessoas, falar de algo como sendo abstracto é querer dizer “moderno”, tanto nas artes visuais quanto na música, na decoração e no design de objectos, por exemplo. Porem, deve-se ter em mente que a abstracção é apenas uma das características da arte do séc. XX. A abstracção não pode responder por toda a arte moderna, embora talvez seja, dentro dela, o seu aspecto mais subversivo.

A arte abstracta é a denominação que se dá comummente a uma série de estilos artísticos desenvolvidos no séc. XX que repudiaram o tradicional conceito da arte como representação ou imitação da realidade. Esta denominação aplica-se a tendências variadas e às vezes contraditórias entre si, como, por exemplo, o objectivo do artista em reduzir a formas elementares as aparências dos objectos sensíveis. Bem como a tentativa de construir objectos artísticos não-figurativos, isto é, objectos que não sejam representativos, tornando-se puro jogo de formas e cores. A abstracção é, sem dúvida, uma revolução, que ainda está em andamento na história da arte.

Um certo grau de abstracção, na verdade, sempre foi constitutivo de toda a forma de arte, na medida em que o artista não pode reproduzir exaustivamente o objecto real e se vê obrigado a seleccionar os aspectos que julga interessante destacar. Também não é uma novidade absoluta enfatizar na obra de arte os valores formais diante daqueles que são meramente representativos. Mas é certo de que a pintura e a escultura ocidentais haviam evoluído no sentido de comprometer-se cada vez mais empenho de ser como um espelho do real, assumindo todo tipo de convencionalismos. Neste sentido, a presença das academias, com seus patrocínios, exerceu um determinado tipo de controlo que congelou qualquer arroubo de criatividade do artista. Neste contexto situam-se grupos que rompem com este cenário comandado pelas academias oficiais. Um exemplo pioneiro é o caso do Impressionismo, uma corrente formada por um grupo de jovens artistas franceses que, tendo suas obras recusadas pelo júri do Salon oficial, criam a sua própria exposição, alheios ao poder de formação de opiniões e gostos das classes dominantes; surge então, no final do séc. XIX, o Salão dos Recusados. Uma primeira ruptura encontra-se neste episódio; entretanto, os artistas impressionistas ainda estavam comprometidos com uma arte figurativa, na qual a representação do mundo visível é a preocupação central. Não se trata, aqui, do desejo de abolir os aspectos sensíveis, mas sim em encontrar um novo meio de representá-los na tela.

Antes da abstracção surgir efectivamente, os artistas estavam procurando novas formas de representação visual. E a obtenção destas novas formas demanda pensar e sentir a vida de um modo diferente.

E a vida tornou-se, de facto, diferente na Europa do final do séc. XIX e início do séc. XX. O cenário europeu era um caldeirão borbulhante de inovações em várias áreas. Só para criar alguns exemplos, foi neste período que apareceu a Teoria da Relatividade de Einstein, as teorias de interpretação dos sonhos por Sigmund Freud, e muitas das inovações urbanas conhecidas actualmente, como a difusão da luz eléctrica, do automóvel, do comboio; também neste período, a obra de Nietzsche, filósofo alemão que influenciou muitas ideias do no séc. XX, foi traduzida para vários idiomas. Neste sentido, é importante destacar o impacto da substancial mudança introduzida pelos avanços científicos na interpretação da realidade física e que destruíram repentinamente a crença na objectividade das aparências, tidas como certas e imutáveis, colocando em questão aspectos que até então estavam fora de suspeita na estrutura dos objectos. A produção artística, contudo, não se torna um reflexo directo ou uma mera ilustração das inovações científicas; o que ocorre é que a maioria dos artistas é guiada por uma intuição que, no entanto, responde a uma atitude mental que guarda muitos pontos de contacto com os cientistas em seu próprio terreno e onde contam também os factores sociais.

Não se chega de súbito na abstracção senão através de um processo onde são etapas chaves as experiencias dos neo-impressionistas franceses, com suas teorias sobre a óptica e a percepção cromática pelo olho humano, dos fauvistas, que exaltam o valor das cores, e a revolução da forma e da perspectiva iniciada por Cézanne e ampliada pelos cubistas. O Cubismo possui um forte interesse pela forma dos objectos, procurando dotá-los de uma realidade múltipla, constituída por diferentes pontos de vista agregados em um mesmo plano, onde a perspectiva tradicional, desenvolvida principalmente no Renascimento italiano, rompe-se tal qual um grande espelho quebrado, que reflecte em suas lascas prateadas de luz a nova realidade dos objectos. Uma nova e diversa percepção do mundo propiciou uma nova e diversa arte.

O resultado destas experiências pictóricas foi a desagregação de todos aqueles elementos que a pintura tradicional havia unido: a partir delas, as cores, as linhas e as formas passam a ser pensadas como autónomas; as matérias usadas na arte são reavaliados e outros novos são agregados a estes já existentes; o espaço do quadro deixa de ser um local onde vive a ilusão, convertendo-se em um espaço real com tempo e leis próprias. O pintor francês Maurice Denis escreveria, no final do séc. XIX: “lembrar que um quadro – antes de ser um cavalo de guerra, uma mulher nua ou uma anedota qualquer – é essencialmente uma superfície plana recoberta de cores combinadas numa dada ordem”.

Obtida esta autonomia dos elementos pictóricos, o próximo passo seria mais radical: renunciar ao próprio objecto. Tal foi o caminho iniciado pela arte abstracta. Uma renúncia que permite ao artista explorar até as últimas consequências os potenciais plásticos das cores e das formas. Não existe mais, dentro da arte abstracta, a intenção de representar um objecto já existente, mas sim o desejo de realizar experimentos e composições, testar as possibilidades, identificar novas harmonias, pensando a pintura como uma música, tal como fez o artista russo Wassily Kandinsky (1866-1944), por exemplo. O artista toma consciência das infinitas opções que sua arte lhe oferece; a criação artística está, finalmente, desatrelada do conceito de mimesis, ou seja, de imitação da natureza, possibilitando o desenvolvimento de uma arte nunca vista antes.

Para a história da arte, a arte abstracta possui uma data de nascimento precisa: 1910, quando Kandinsky cria o que foi considerada a primeira tela abstracta, uma aguarela sem titulo. Outros artistas representativos são o russo Kasimir Malevtich (1878-1935) e o holandês Piet Mondrian (1872-1944), artistas cuja arte baseia-se no uso das formas geométricas.



Wassily Kandinsky, primeira aguarela abstracta sem título, 1910.

A arte abstracta possui muitos desenvolvimentos posteriores, passando à escultura pelas mãos do russo Vladimir Tatlin (1885 -1953), que lançaria os fundamentos daquilo que um pouco mais tarde chamou-se Construtivismo, uma importante corrente artística que será bastante difundida na Rússia das primeiras décadas do séc. XX. Outros escultores que foram destaque na escultura abstracta são Alexandre Archipenko (1887 -1964), Constantin Brancusi (1876 - 1957), Laszlo Moholy-Nagy (1895 -1946) e Jean Arp (1887 -1966). Muitos destes escultores eram inicialmente pintores; eles aproximaram-se da escultura e contribuíram em ambas as artes. A abstracção traz consigo um desejo pela síntese das artes que é, sem dúvida, um dos aspectos mais importantes da arte do séc. XX.

Pode-se dizer que, quanto mais o artista aproxima sua arte da abstracção, mais internacional a obra se torna, afastando-se das características específicas que fazem dela uma arte de carácter nacional. Fora do campo da abstracção, que fazem dela uma arte de carácter nacional. Fora do campo da abstracção, muito da temática da arte moderna concentrou-se na representação de temas “clássicos” de uma obra de arte: o retrato, a paisagem, a natureza morta. A proposta do artista quando escolhe um destes temas é usá-los, na tela ou na escultura, de uma nova mentira; isto significa perceber os objectos, os seres e o ambiente de um novo jeito, representá-los seguindo novas teorias e métodos de visão e representação. As preocupações do pintor e do escultor estão voltadas para os aspectos formais da arte: cor, forma, perspectiva; modificações nestes aspectos formais invariavelmente levaram a modificações iconográficas, ou seja, na temática do quadro. Esta explosão criativa inaugurou uma nova etapa na cronologia da história de arte. No período compreendido entre o final do séc. XIX e início do séc. XX surgiram inúmeras inovações no campo das artes visuais: os impressionistas e Cézanne, que são tidos como os chamados percursos da arte moderna, junto com o aparecimento das vanguardas, fenómeno que se torna sinónimo da arte moderna propriamente dita. O termo vanguarda, que deriva da palavra francesa avant-garde, denominou os grupos de artistas que, reunidos em torno de uma proposta artística comum, produziram obras, escreveram teorias sobre suas crenças artísticas, organizaram exposições, entre outras actividades. São os inúmeros “ismos” que povoaram a Europa do início do séc. XX, para citar alguns: Cubismo, Expressionismo, Construtivismo, Surrealismo, Futurismo, Suprematismo. Alguns destes grupos nasceram por iniciativa de um certo número de artistas, enquanto outros surgiram a partir das ideias de um único individuo e se ampliaram posteriormente.

De todas as formas, nunca é fácil, e nem mesmo correcto, reduzir o estudo das vanguardas a esquemas genéricos – corre-se o risco de perder as características mais interessantes e particulares da arte como um todo. O fenómeno das vanguardas é algo complexo, parte integrante de toda uma história da representação visual que aqui não cabe comentar. O artista que integra um grupo traz consigo todo o seu histórico de experiências particulares dentro da arte, e isto pode ser um causador de conflitos, discussões, rupturas e reaproximações em sua relação com outros colegas. Ele é sempre, ao mesmo tempo, personagem de um grupo e indivíduo único; poderá, por um tempo, partilhar das ideias de um grupo e indivíduo único; poderá, por um tempo, partilhar das ideias de um grupo para depois, logo em seguida, abandoná-las.

A maioria das vanguardas, dado este aspecto, funcionou bem, dentro da sua lógica interna, por um certo período de tempo. Motivações e rupturas diversas podem ser os agentes que dissolvem ou transformam um grupo. Em suma, elas carregam consigo um aspecto de mutabilidade que é, muitas vezes, seu próprio botão de autodestruição.

Com todas estas rupturas, reconsiderações e inovações, a arte moderna distanciou-se daquela arte profundamente ligada ao nacionalismo, seja por meio da abstracção ou da figuração. Um grande acontecimento, porém, iria abalar profundamente toda esta arte nova que estava sendo produzida: a Primeira Guerra Mundial.

Esta guerra, que ocorreu entre 1914 e 1918, não destruiu as vanguardas, mas fez com que estas reconsiderassem muitas de suas propostas. Muitos artistas integraram o front, seja com voluntários ou não. Muitos deles morreram em exercício militar, encerrando para sempre um futuro promissor na arte. O mundo todo pensou que uma guerra como esta nunca mais ocorreria, tamanho o impacto e poder de destruição que causou: dez milhões de mortos e quarenta milhões de pessoas aleijadas. Mas este conflito estava longe de ser o único que o séc. XX iria testemunhar. A Europa ainda viveria uma segunda guerra tão brutal quanto a primeira. E, neste período entre guerras, um novo cenário artístico europeu se desenvolveu, profundamente ligado à situação política do continente.

Uma das características marcantes do ambiente político deste período foi o surgimento de regimes totalitários em muitos países. Embora este livro trate exclusivamente da situação de dois deles – a Alemanha e a Rússia -, outros países desenvolveram este tipo de regime, como, por exemplo, a Espanha e Portugal.

O totalitarismo é um sistema pelo qual o Estado é governado por um grupo ou partido que detém o poder de forma absoluta, assumindo o controlo da vida dos cidadãos. Algumas características gerais de um Estado totalitário são: supressão de formas democráticas de participação política; existência de um único partido, que proíbe todos os outros tipos de organização política, como facções, sindicatos ou associações populares; controle da liberdade individual e colectiva, exercido principalmente pela polícia; uso constante e exacerbado da propaganda como forma de mobilização da população.

Um regime totalitário possui, em sua essência, uma estética que serve como padrão de sua organização, controle e manutenção. Ele utiliza as artes visuais, o cinema, a música, a arquitectura, a literatura, os meios de comunicação como instrumentos que legitimam a sua ideologia política. Esta estética é em geral caracterizada por uma padronização do estilo artístico, que tende a suprimir todos os outros. O aspecto hiper-realista (oposto à vanguarda e à abstracção), o gosto pelo monumental e pelas formas gigantescas, as linhas predominantemente rectas, a coreografia, a presença da massa acima do indivíduo, o culto ao líder, ao herói político, o uso preponderante de uma cor sobre as outras (em geral, o vermelho), junto com a grande importância dada aos aspectos nacionalistas, todos estes aspectos compõem a engrenagem estética da máquina ruidosa dos regimes totalitários.

No caso do nazismo e do stalinismo, foram estabelecidos pelo Estado verdadeiros programas políticos para as artes. Para que se possa compreender estas ideias, contudo, é necessário conhecer a situação política e cultural destes dois países desde o início do séc. XX, observar o intricado cenário existente antes da Primeira Guerra Mundial, para depois avançar com segurança ao longo das décadas que se seguiram.

Este livro propôs-se a trilhar este caminho. Nas páginas seguintes, serão apresentadas as transformações que a arte europeia sofreu devido aos vários acontecimentos políticos do início do séc. XX. Os dois primeiros capítulos foram dedicados à Alemanha que, após uma rica experiência de vanguarda, com a criação de centros criativos como a Bauhaus e grupos artísticos como “Die Brucke” e “Der Blaue Reiter”, viu todo o seu cenário cultural modificar-se radicalmente com a ascensão de Hitler ao poder, imbuído de um programa artístico que passaria a ver a arte moderna como degenerada, abolindo-a do país.

A situação artística da Rússia, que no início do séc. XX teve o Construtivismo como vanguarda inovadora e renovadora das artes visuais, ocupa os demais capítulos do livro. Será a partir do governo de Stálin que uma nova política das artes será criada, com a supressão das vanguardas e o desenvolvimento daquilo que chamaríamos de Realismo Socialista. Esta trajectória procurará compreender como ocorreu a relação entre a arte e a política no período entre guerras europeu, e com quais dispositivos, ao mesmo tempo delicados e perigosos, ela se manteve activa.

domingo, outubro 10, 2010

Primitivismo, cubismo, abstracção – Começo do século XX



Este livro, foi publicado originalmente em 1993 pela Yale University Press em associação com a Open University.

Este é o segundo de uma série de quatro livros sobre arte e a sua interpretação desde meados do século XIX até final do século XX. Como série, compõe os principais textos de um curso da Open University, Arte Moderna: práticas e debates. Representam uma variedade de abordagens e métodos característicos do debate contemporâneo sobre a história da arte.


Os capítulos deste livro consideram aspectos da cultura artística e visual da Europa desde 1900 até fins da década de 1920. Apesar de organizado cronologicamente, cada capítulo investiga um período ou movimento da arte do início do século XX em relação a questões teóricas e problemas de interpretação mais amplos. No desenvolvimento são levantadas questões sobre pesquisa e metodologia histórica, bem como sobre o estatuto da “arte”.


No capítulo três, Charles Harrison considera alguns problemas de interpretação e avaliação postos por exemplos específicos de arte abstracta, explorando algumas das relações e diferenças entre formas figurativas e abstractas de pintura. Ele discute a necessidade de dar atenção ao contexto histórico tomando por base a carreira do artista russo Kazimir Malevich, enquanto a obra do pintor holandês Piet Mondrian é considerada em relação com a análise valorativa.


Abstracção, figuração e representação


Abstracto e abstracção


Este ensaio ocupa-se primordialmente do surgimento de formas de arte abstracta na Europa durante a segunda década do século, e de alguns problemas de interpretação e avaliação que elas suscitam. Falar sobre “surgimento” é afirmar que estas eram de algum modo formas novas de arte. Para entender o significado de algumas reivindicações feitas em prol da arte abstracta, precisamos primeiro avaliar o que está envolvido, num momento particular da história, na reunião dos termos “abstracto” e “arte”.


O termo “abstracto” é hoje amplamente usado, e desde o começo do séc. XX foi aplicado como um rótulo para muitas formas diferentes de arte. Quando se escreve sobre arte, o termo relacionado “abstracção” tende a ser usado em dois sentidos correlatos mas distintos: para referir-se, no caso de certas obras de arte, à propriedade de serem abstractas ou “não-figurativas”; e para referir-se ao processo pelo qual certos aspectos dos temas ou motivos são enfatizados nas obras de arte em detrimento de outros.



156, Vasily Kandinsky, Pintura com Mancha vermelha, 1914, Musée National d' Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris.



As ilustrações 156-159 mostram exemplos de arte abstracta da década de 1910 a 1920, produzidos por artistas de expressão russa, checa, holandesa e suíça. Ao descrever essas obras como abstractas estamos subentendendo que, qual for a sua aparência, aquilo com que elas se parecem não deve ser explicado por referência a um tema representado. Apesar de algumas diferenças evidentes, elas têm isso em comum.



157, Hans Arp, Colagem, 1916, Offentliche Kunstsammlung Basel.



De facto, embora no uso corriqueiro nos refiramos a obras com “abstractas” na ausência de qualquer semelhança evidente com o mundo, pode acontecer de uma obra ser vista como abstracta não tanto porque não se pareça com nada, mas porque seu tema ou motivo é difícil de identificar. E isso pode ocorrer porque um processo de abstracção levou à supressão de certas características facilmente reconhecíveis do tema original. Em 1932, o pintor inglês Paul Nash referiu-se a Pablo Picasso como “o maior de todos os pintores abstractos”. Podemos chamar esse de um sentido “fraco” de abstracção, já que, de acordo com os critérios mais rigorosos que serão aplicados neste ensaio, não se poderia dizer que Picasso fez nem sequer uma pintura abstracta durante sua longa actividade como pintor. Por outro lado, os processos de abstracção que ele praticava sobre seus temas eram muitas vezes tais que tornavam difícil perceber exactamente como esses temas eram representados em seus quadros. É fácil ver que uma pintura como Violinista de Picasso, do verão de 1910, poderia ser entendida como abstracta nesse sentido fraco (ilustração 159). Por comparação, a obra mostrada na ilustração 158 poderia ser chamada de abstracta no sentido forte do termo; isso quer dizer que ela é uma obra que não tem nenhuma pretensão aparente a ser um quadro de cena ou pessoa. Ela se apresenta simplesmente como uma “composição”.


158, Piet Mondrian, Composição, 1916, Guggenheim Museum, Nova York.



Como veremos, e como a Violinista de Picasso ajuda a mostrar, os sentidos fraco e forte de abstracção são ligados tanto em termos práticos como em termos de história de arte.


159, Pablo Picasso, Le Guitarriste, 1910, Musée National d'Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris.


Por outro lado, é importante ter em mente que, embora o cubismo tenha surgido no contexto de uma vanguarda parisiense, a grande maioria dos primeiros desenvolvimentos na arte abstracta ocorreu a alguma distância da capital francesa, na Alemanha, na Áustria, na Holanda e na Rússia. A arte abstracta não era simplesmente uma forma de continuação daquela tradição moderna que tivera em Paris seu centro durante o meio século anterior. Ao contrário, a ideia de uma pintura “pura” ou sem objecto tendia a investir contra o sentido predominante da pintura francesa moderna, cuja força residiria em sua exploração sofisticada dos problemas do realismo e da auto-consciência na representação figurativa. Certamente, essa tradição era um recurso indispensável para todos os artistas envolvidos, mas ela foi estendida, diversificada e modificada sob as diferentes condições históricas e intelectuais da Europa setentrional e oriental. A resolução desse processo, tendo coincidido com o período da Primeira Guerra Mundial, marcou o início do fim da dominância francesa sobre as formas visuais do moderno. Embora Paris permanecesse um centro importante até ao começo da Segunda Guerra Mundial, no começo da década de 1920 a ideia do moderno na arte e no design já havia sido associada nas mentes de muitos com a possibilidade de uma estética universal, e portanto internacional, para a qual as formas de pintura abstracta forneceriam protótipos e exemplos.

Abstracção e significado

O processo de abstracção enfatiza tipicamente aqueles aspectos da pintura que vemos como formais. O artista Theo Van Doesburg ofereceu uma demonstração esquemática do processo de abstracção em seu livro The Principles of New Plastic Art. A ilustração 160 mostra-o transformando por estágios um quadro fotográfico de uma vaca numa espécie de composição abstracta – supostamente ao destacar seus aspectos individualmente e ao enfatizar sua forma “essencial”. Há algo de evidentemente absurdo no contraste entre a primeira e a última imagem de Van Doesburg. Fosse essa absurdez pretendida ou não, o contraste serve para demonstrar um ponto importante a respeito da arte abstracta em geral, e dos possíveis modos pelos quais ela poderia ser interpretada ou considerada significativa. No embate com formas tradicionais de pintura, somos acostumados a ser capazes de comparar certas imagens com o mundo, a perceber onde elas correspondem ou não a aparências (ou a nossas expectativas), e a entender tipos de intenção nas semelhanças e diferenças resultantes. Dada a sequência das ilustrações de Van Doesburg, podemos realmente participar de uma forma similar de comparação. Se formos informados dos estágios intervenientes, podemos com bastante facilidade “entender” a pintura abstracta como referida à “vaca”. Isso quer dizer que podemos reconstruir para a pintura um tipo de história casual, que começa, por um lado, com uma vaca real no mundo e, por outro, com um conjunto de intenções por parte do artista. O processo de abstracção é, por assim dizer, a sequência de efeitos que essas intenções têm sobre a imagem “original” da vaca é, portanto, implicitamente reconstruir uma cadeia de causas, intenções e efeitos, por mais estranhos que eles possam ter sido.


160, Theo van Doesburg, Objecto esteticamente transformado, 1917, Bauhaus-Archiv, Berlim.


Mas se fossemos confrontados só com a última imagem da sequência (ilustração 161), como bem poderia ocorrer no Museum of Modern Art de Nova York, onde está agora a pintura? Possivelmente poderíamos ver nela um padrão semelhante a uma vaca, mas na ausência de seu título duvido que fosse preciso muita coisa para nos persuadirmos de que nossa percepção era acidental De que outro modo, então, poderíamos encontrar sentido na pintura? A questão tem evidentemente relevância para a interpretação da arte abstracta como um todo. De facto, a sequência de Van Doesburg apresenta um caso enganosamente nítido. A ilustração 158 pode ser vista como ilustrando um processo de abstracção similar, e, guiados pelo exemplo de Van Doesburg, poderia, portanto, parecer razoável supor que Composição em linha de Mondrian de 1916-1917 é em certo sentido uma pintura do mar. Mas supor isso seria pressupor uma contínua conectando-a a pinturas anteriores. Esse não é pressuposto que se possa fazer com segurança. Nos anos 1909-14 Mondrian também pintou quadros de árvores, de moinhos e de torres de igreja. Uma sequência diferente de ilustrações poderia parecer conectar a última pintura a um motivo naturalista diferente.




161, Theo van Doesburg, A Vaca, 1917, The Museum of Modern Art, Nova York.


Se tivermos de abandonar a informação que uma sequência de ilustrações parece fornecer, deveríamos buscar outro modo de remontar uma pintura abstracta ao mundo das coisas, e assim entender como ela foi moldada pelas intenções do artista? Ou deveríamos em vez disso buscar o significado nas relações internas da própria pintura, atendendo às diferenças entre formas e cores da forma como poderíamos ouvir as palavras de uma língua desconhecida, não para convertê-las imediatamente nos termos de nossa própria língua, mas para alcançar aquela forma de entendimento que deve acompanhar qualquer acto de tradução como esse, uma compreensão da gramática relevante? Em vez de buscar estabelecer o significado da pintura situando-a num sistema de causas e efeitos, deveríamos considerar o significado como integrante daquele sistema formal que a pintura constitui?

È verdade que todos os tipos de representação humana podem ser vistos como ordenados de acordo com algum sistema. De facto, chamar um objecto de nossa experiência de uma forma de representação é dizer que podemos percebê-lo numa forma de ordem mais intencional; ou seja, uma forma de ordem que é significante do desígnio humano e significante em termos humanos. “Termos humanos” são inescapavelmente os termos da linguagem humana. Mas daí não decorre necessariamente que as formas na arte são como palavras, ou que elas são ordenadas como palavras, ou que elas estão numa correspondência uma a uma com palavras dadas. Elas não estão sujeitas ao mesmo tipo de regras gramaticais nem aos mesmos princípios de coerência no uso, e não se agrupam para formar declarações ou proposições linguísticas.

Essência, expressão, espiritualidade

Como o exemplo de Van Doesburg sugere, a ideia de abstracta como um processo tende a envolver um tipo de essencialismo: até pelo menos a metade do séc. XX, a adesão à tendência abstracta na arte moderna – pelo menos em seus aspectos mais claramente geométricos – tendia a acarretar a crença de que uma forma mais pura, mais elevada ou mais profunda de realidade é revelada através da eliminação dos aspectos acidentais e “inessenciais” das coisas. Esse tipo de essencialismo extrai sua justificação da ideia platónica de que há entidades fundamentais ou universais das quais as coisas com que deparamos são simplesmente exemplos imperfeitos ou impuros. A actividade da arte abstracta era, portanto, associada por muitos de seus primeiros praticantes e defensores a uma espécie de “ver através”; à ideia de que o artista é aquele que penetra o véu da existência material para revelar uma realidade espiritual essencial e subjacente.

Nos primeiros anos deste século, tanto Kandinsky como Mondrian foram atraídos pelas ideias dos teosofistas, que ensinavam que os seres humanos evoluem dos níveis físicos de existência para os espirituais, e que certas leis fundamentais, ocultadas da massa da humanidade, são reveladas por iniciados como os filósofos, os fundadores de religiões e – talvez – os artistas. Por volta de 1915, Mondrian também foi fortemente afectado pelas teorias neoplatônicas do matemático Dr. Schoenmaekers publicadas naquele ano. Ao mesmo tempo, na Rússia, Malevich estava interessado em especulações pseudo-científicas sobre a quarta dimensão.

Não é difícil ver como o desenvolvimento da obra de Mondrian pode parecer a um essencialista uma busca gradual daquela realidade universal que está supostamente escondida no acidental. Numa nota de rodapé a seu primeiro ensaio sobre arte publicado, o próprio Mondrian caracterizava explicitamente o artista como um tipo de médium para a expressão do universal.


Se nessa visão se atribui ao artista um tipo de função profética, também se atribui a ele uma responsabilidade especial. Sua prática deve ser exemplar e sintonizada com o mais alto grau. A circulação dessas ideias (por mais excêntricas que elas possam parecer) nos primeiros anos do século talvez ajudem a explicar o poderoso sentido de missão que é transmitido pelos escritos de Kandinsky, Mondrian e Malevich. Dada a utilidade da analogia entre composição abstracta e gramática, e dado que invocar a gramática é invocar uma condição básica de expressão racional, não devemos esquecer que cada um dos principais artistas envolvidas no desenvolvimento inicial da arte abstracta esteve envolvido em algum período de sua formação com ideias neoplatonicas e místicas – o que quer dizer não racionais. (devemos ser advertidos pelo exemplo de escolha de Van Doesburg. Por que razão uma vaca? Que uma vaca mais um conjunto de ilusões neoplatonicas devam resultar numa pintura abstracta não é, afinal de contas, uma ideia racional.)


Estilo e significado


É claro que nem todas as formas de arte abstracta inicial pressupõem que um ponto de vista neoplatonico ou teosófico seja plausível. Nem se trata de que ver uma obra de arte como abstracta seja necessariamente comprometer-se com o essencialismo. Não é excluir todos os outros interesses naquilo com que a obra se parece ou em como ela veio a ter a aparência que tem, nem é necessariamente negar que possa haver outras categorias nas quais certas obras abstractas poderiam ser situadas de forma mais frutífera. Muitas vezes será mais informativo atentar às diferenças materiais entre obras consideradas abstractas do que perceber aquela evitação de referência figurativa que elas possam ter em comum. Se quisermos discriminar entre aquelas obras que atendem aos requisitos de abstractas, precisaremos de uma gama de subcategorias apropriadas nas quais situá-las, e também de rótulos para essas categorias.


O espaço pictórico é algo que aprendemos a entender, e que o fazemos por referência a outras formas de espaço pictórico. A história da pintura na cultura ocidental é em grande parte uma história das formas relevantes de aprendizagem e dos modos como essa aprendizagem foi feita. Em seu ensaio “A. And Pangeometry”, escrito em 1925, El Lissisky afirmou que “A nova experiência óptica nos ensinou que duas superfícies de intensidade diferente devem ser concebidas como tendo uma relação de distância variável entre si, muito embora possam estar no mesmo plano”, a “nova experiência óptica” que ele tinha em mente havia sido fornecida pela obra de Malevich e Mondrian.


Outro ponto a observar é que o conceito de não-figuração como um modo deliberado pressupõe que o figurativo é o que se espera normalmente. A consequência é que a pintura abstracta depende, para seu estatuto como arte, das expectativas criadas por pinturas que são quadros; quer dizer, por pinturas que, em virtude de sua semelhança com outras coisas do mundo, podem ser vistas como representações ou ilustrações dessas coisas. Segue-se que a possibilidade de pinturas abstractas serem vistas como pinturas (isto é, como formas potenciais de arte elevada) depende de nossa tendência a olhar para suas superfícies como outras que não meramente planas – a olhar para elas, de facto, como potencialmente figurativas. Como o próprio Greenberg observou, “A primeira marca feita sobre a superfície destrói sua planariedade virtual” (“Modern Painting”); o efeito da leitura dessa marca é dividir a tela visual e conceitualmente em “figura” e “fundo”, e portanto, por assim dizer, criar espaço para algum tipo de conteúdo ou significado (mesmo que, de novo nas palavras de Greenberg, não seja uma ilusão “na qual alguém possa imaginar-se caminhando …(ela) é uma ilusão na qual só se pode olhar, percorrer apenas com o olho”. Para enunciar esse aspecto de outro modo, poder-se-ia dizer que não apenas “vemos” a superfície de uma pintura, nós “vemos dentro” dessa superfície a evidência de algum tipo de actividade intencional.


É a invocação pela pintura abstracta dessa experiência de “ver dentro”, penso, que a distingue mais vivamente do ornamento. A arte abstracta pressupõe uma posição crítica diante do figurativo na arte, e da própria predominância na arte europeia daquelas funções descritivas e narrativas que os procedimentos de figuração ajudam a possibilitar e desenvolver. Mas para que se estabeleça essa posição crítica, e para que o espectador se entretenha na experiência real, a obra de arte abstracta deve em primeiro lugar evocar e pôr em prática aquelas mesmas funções que pretende desacreditar. Enquanto vemos o Mondrian como plano, nós o vemos como sem significado (ou, poder-se-ia dizer, o vemos como “mero design”). Por outro lado, se o vemos como lembrando outra coisa do mundo, sua identidade e seu efeito como arte ficam comprometidos. Uma pintura abstracta é algo que está no lugar de um quadro, o qual, não obstante, não é um quadro de coisa nenhuma.


Abstracção, design e decoração


Agora estamos em melhores condições de tratar de uma questão levantada no parágrafo inicial. Apesar dos pressupostos universalizantes e explícitos de muitos dos próprios artistas, o carácter histórica e culturalmente específico da arte abstracta é enfatizado quando consideramos como os dois constituintes – “abstracto” e “arte” – dependem um do outro. Pode ser útil considerarmos alguns exemplos contrários. Por exemplo, numa cultura islâmica em que se desse menos prioridade às funções representativas da arte e mais prioridade ao significado do padrão ou ornamento, uma arte “abstracta” não por si só notável. Nem ela mereceria nenhuma atenção especial numa cultura que não tivesse bases substanciais para distinguir pinturas e esculturas de outras formas de design e decoração. É pertinente que teóricos pré-modernistas como John Ruskin e William Morris, que escreveram em meados e em fins do séc. XIX, tenham idealizado o período medieval como aquele no qual a arte e o design eram indistinguíveis no que diz respeito a seus estatutos e interesses estéticos. Para esses críticos, a realização de uma arte abstracta – uma “arte” que fosse categoricamente distinta do “design” – só poderia ter aparecido como realização de suas piores previsões. Isso quer dizer que eles provavelmente a teriam visto como uma forma extrema daquela tendência a isolar o “estético” e o “utilitário” que eles viam como uma consequência negativa da industrialização.


Em contraste, a teorização modernista da arte abstracta feita por Greenberg pressupõe que, para o bem ou para o mal, as práticas da arte e do design são distintas, embora não realmente incompatíveis. Uma tensão e uma dificuldade crescentes nas relações entre os conceitos de arte e design, respectivamente, é revelada nas fortunas críticas variáveis do termo “decoração”. Em fins da década de 1880, os simbolistas usaram o conceito de decoração para referir-se àqueles valores estéticos positivos que viam como independentes das exigências de descrição e imitação. Para Matisse, escrevendo em 1910, o aspecto decorativo da pintura coincidia com sua função expressiva, em busca da qual cada componente singular era ajustado criticamente. Em 1910, ao apresentar sua tradução do artigo de Maurice Denis sobre Cézanne, Roger Fry escreveu sobre “uma nova coragem de experimentar na pintura aquela expressão directa de estados de consciência imaginados, que foi por muito tempo relegada à música e à poesia”. Ele via essa tendência como associada a uma “nova concessão de arte, na qual os elementos decorativos predominam em detrimento do representativo”. Evidentemente a ênfase assim posta no decorativo era um meio de afirmar a autonomia relativa das formas artísticas como veículos de expressão. Com os inícios do interesse prático no desenvolvimento da arte abstracta, por outro lado, a realização da “mera” decoração tornou-se a marca do fracasso estético – ou do fracasso em estabelecer aquela promessa de profundidade intelectual e emocional que era associada à pintura como forma de arte.


A intenção de produzir arte abstracta era então uma intenção de apresentar obras não-figurativas não como formas de “mera” decoração ou ornamento, mas como formas de arte moderna – quer dizer, como formas de representação. Ao rever seu próprio desenvolvimento em 1913, Kandinsky escreveu sobre a “assustadora profundidade de questões, carregada de responsabilidade” que pensava ter diante de si. ”E o mais importante: o que deveria substituir o objecto perdido?” O perigo da ornamentação era claro, a morte da pretensa existência de formas estilizadas só podia me afugentar”. Como veremos, a intenção de produzir arte abstracta não foi formulada repentinamente ou por um indivíduo que agia sozinho. Ela se desenvolveu, creio, como uma consequência parcial daquelas mudanças de longo prazo nas relações entre “arte” e “design”, e de ambos com a “figuração”, as quais podemos acompanhar ao longo do século XIX – mudanças que são elas mesmas associadas, em algumas teorias do modernismo, ao encetamento do período moderno na arte. Isto é, o surgimento da arte abstracta foi específico de um mundo europeu moderno no qual a tendência predominante do desenvolvimento económico e industrial era impulsionar as distinções entre arte e design, e entre formas elevadas e inferiores de arte, nas quais o significado da arte elevada era associado normalmente à figuração; e nas quais as pinturas e esculturas eram candidatas à condição de arte elevada, ao passo que exemplos de design e ornamento não eram.


Uma nota sobre a arte abstracta em sua época


Como já vimos, as evidências são de que o problema do valor da arte abstracta era uma questão pertinente em particular à prática de arte europeia no inicio do séc. XX. Por que nesse momento? Algumas pistas para uma resposta podem extraídas da discussão anterior, ou seja, da análise da relação entre abstracção e não-figuração. No final do séc. XIX, a crítica prática da configuração – a critica da ilusão e de tudo que as técnicas ilusionisticas costumavam fornecer à arte dos Salões e Academias europeus – tendia com frequência para a abstracção. A ênfase na “pureza” potencial da forma era tanto um meio para desafiar as tradições classicizantes em seu próprio fundamento neoplatonico, como um meio de depreciar o superficialmente descritivo, o imitativo e o anedótico. Coincidentemente, a ideia de uma realidade universal e subjacente serviu aos simbolistas como um tipo de contraste crítico para a incómoda exigência de verdade nas aparências. Nesse meio tempo, a ideia de uma verdade espiritual servia a alguns como um luz pela qual eles viam revelado o que tomavam pelos valores genericamente materialistas do mundo contemporâneo. As justificativas da arte abstracta inicial recorriam não só a criticas bem exercidas das formas tradicionais, mas também a uma literatura variada de pensamento “antimaterialista”, para a qual os filósofos Shopenhauer e Nietzche, o compositor Wagner, o poeta Malarmé, os místicos Ouspensky e Madame Blavatsky e inúmeros outros haviam contribuído de várias maneiras, embora não igualmente. Nos primeiros anos do século esse antimaterialismo ganhou uma feição utópica. Isso quer dizer que ele estava associado a um ideal positivo do potencial humano e da sociedade humana. Numa década que inclui Guerra Mundial, uma revolução fracassada na Alemanha e uma bem sucedida na Rússia, as novas formas de arte eram associadas a formas optimistas de oposição à ordem social e politica predominante, embora geralmente não ao socialismo organizado.


A ideia de arte abstracta – a visão de uma estética universal e de sua extensão potencial à “vida quotidiana” – fazia parte do aparato conceitual por meio do qual certas pessoas, individualmente e em grupos, tentaram no início séc. XX imaginar seu caminho para um mundo melhor. Ou seja, a intenção de produzir arte abstracta, embora fosse uma intenção artística, era formada num e por um mundo que não era simplesmente um mundo da arte.

segunda-feira, outubro 04, 2010

Abstraccionismo geométrico e construtivo



O livro El Arte Contemporáneo: Esplendor Y Agonia; de Ilda Rodríguez Prampolini, foi escrito para os alunos de Historia de Arte e Arte Contemporânea da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Autónoma do México. O texto lhes faria conhecer a história de arte do séc. XX começando, por certo, por entender o seu desenvolvimento, com os impressionistas e com a abordagem de problemas históricos, artísticos, estéticos e morais de grande relevância.

Quando em 1916, os dadaístas lançaram o seu grito de rebeldia desde o Cabaret Voltaire provavelmente não estavam conscientes da profunda transformação que iniciaram na produção artística do mundo ocidental

Neste livro, a autora fez um reconto desta história e dos distintos movimentos artísticos que antecederam o dadaísmo e os que surgiram posteriormente. È uma reflexão critica acerca da evolução da arte desde finais do séc. XIX, com os impressionistas e os expressionistas, até à primeira metade do séc. XX, com os surrealistas e os abstraccionistas, são estes últimos a que daremos destaque, uma vez que se relacionam com o conteúdo deste blogue.

A linha é referência para o entendimento do desenho em Manuel Pereira da Silva. Sabe cria-las puras, simples, sem requintes, nem desperdícios analíticos, cheias de substância, graves. A linha grande imóvel que é da essência da plástica no plano, e o primeiro segredo do seu dinamismo. Manuel Pereira da Silva possui esse poder de simplificação dos traços e de sintetização das formas. Domina com facilidade os elementos formal-construtivos: simetria estilística, harmonia poética, equilíbrio estético, onde o branco do papel é parte da arquitectura imaginária.

As primeiras esculturas modernistas de Manuel Pereira da Silva surgiram nos anos pioneiros do abstraccionismo escultórico em Portugal, reconhecidamente protagonizado, a partir do final dos anos 40, no Porto, por Arlindo Rocha, Fernando Fernandes e ainda, alguns anos depois, por Aureliano Lima, a partir da sua mudança de residência para esta cidade. Estes factos conferem, à produção abstracta de Manuel Pereira da Silva, realizada, até com óbvia analogia estilística, no mesmo período e em situação de convívio com os referidos escultores, inquestionável enquadramento geracional, que importa reconhecer.

De facto no período imediatamente subsequente à II Guerra Mundial, precisamente aquele em que teve início a actividade profissional de Manuel Pereira da Silva, verificaram-se alterações, importantes, no universo das polémicas artísticas, nomeadamente nos dois maiores centros urbanos portugueses: à querela "clássicos e modernos", acrescentou-se o debate entre os adeptos da modernidade – neo-realistas, surrealistas e abstraccionistas – mas foi quase sempre no recato dos ateliê que alguns, pouquíssimos, escultores inquietos, ensaiaram novos caminhos para a sua Arte, em produções que esparsamente vieram a público, e que este, para lá de uma reduzida elite, longamente ignorou.


A Arte Abstracta

Abstraccionismo geométrico e construtivo

A reconstrução do mundo através da pintura poucas vezes foi um problema tão consciente, confiado e confessado como uma série de manifestações artísticas que surgiram ao terminar da I Guerra Mundial.

Sem dúvida que os artistas ao embarcarem na tabela da abstracção, estavam impulsionados por uma utópica necessidade de vida espiritual

Sócrates havia já afirmado estas problemáticas, ideal de beleza por meio da representação não de seres vivos, mas sim de figuras planas e sólidas criadas por meio da linha, o círculo, etc.:

“ Por que eu sustenho que essas figuras não são como as outras belas por comparação, mas sim que são sempre belas em si mesmas por sua natureza e que elas procuram certos prazeres que lhes são próprios e que não tenham nada em comum com os prazeres produzidos pelos estímulos sensoriais.”

É através de estes signos de beleza imutável que alguns artistas tentam elevar-se por cima da natureza e de eles mesmos, resgatar a arte torná-la a expressão ao serviço dos mais altos ideais.

Os anos de 1930 e 1945 parecem ser os do triunfo da arte geométrica com suas tendências construtivas sobre a arte abstracta de tendências líricas e espontâneas. Numerosas revistas são criadas para divulgar o geométrico; exposições contínuas em galerias acolhem os artistas, exibem em colectivas que proliferam, e a arte destes construtivistas parece opor as suas formas fechadas ou “concretas” compostas em infinitas constelações aos intelectualizados jogos subconscientes dos surrealistas que gritam pelo absurdo.

O Sindicato de Antiquários de Paris (1925), a exposição Circule et Carré também em Paris, a publicação do único número da revista ArtConcrete realizada por Van Doesburg, o grupo Abstração-Criação e as numerosas revistas em vários países são prova do surgimento de essa nova linguagem ideal que brota com autentica validade. Uma das pioneiras de esta arte busca ligar-se com a arquitectura é, sem dúvida, a esposa e colaboradora do escultor Jean Arp, a pintora Suíça Sophie Trauner-Arp, cujas formas rigorosas voluntariamente simplificadas e justas chegam a delicadezas poderosas de umas proporções sabiamente sentidas e intelectualizadas.

Em Inglaterra, o surgimento da revista The Circle, em 1937, organizada pelo escultor Naum Gabó, o pintor Bem Nicholson e o arquitecto Leslie Martin marca a repercussão, que no país, herdeiro da tradição de William Morris, teve este formalismo construtivo, que tratou de envolver novamente a obra de arte à vida e aproveitar a nova linguagem para falar universalmente. Este sentido decisivo de comunicação através de fórmulas universais (abstractas e geométricas) e não particulares, é a repercussão da teoria construtivista adoptada pelo mesmo Gabó e pelo seu irmão Antoine Pevsner na Rússia 17 anos antes. A intenção de estabelecer uma arte de forma “pura” vai mais além do perfeito esteticismo da “arte pela arte” já que, no primeiro caso, se trata do princípio dinâmico que move o artista a “reconstruir” o mundo e no segundo se separe não ao princípio, mas sim à finalidade da arte que se afoga em si mesma.

Dificilmente poderíamos esgotar a revisão de todos os artistas que se ligaram de alguma maneira à arte geometrizante. Um dos casos mais extremos é o Félix de Marle, para quem a arte colectiva em equipa e subordinada à arquitectura é a única posição salvadora que justifica o artista; ele já se pronuncia por uma arte que deve colaborar nas ruas, nas cidades, a alegria de viver, não de uma elite, senão do homem, de todos os homens.

domingo, maio 02, 2010

Twitter do escultor Manuel Pereira da Silva é o português mais seguido



Segundo o blogue EMUSEU, a página no Twitter do escultor Manuel Pereira da Silva é o que por cá tem mais seguidores...curioso.

segunda-feira, março 29, 2010

Geração Africana



Arquitectura e Cidades em Angola e Moçambique, 1925-1975, Livros Horizonte, é um livro importante por razões várias. O rasto iconográfico da arquitectura portuguesa nas regiões ultramarinas durante o século XX, 'uma nova centralidade colonial', concebe uma 'visão' e uma capacidade de concretização naqueles territórios que a 'Metrópole' dificilmente reproduziu até há bem pouco tempo. Ou melhor, a 'reformulação' arquitectónica nos territórios de além-mar, nas ditas ex-colónias de Angola e Moçambique, foi uma oportunidade de expor o trabalho de uma grande quantidade de arquitectos, cujo número de realizações é, no seu conjunto, um assinalável património do testemunho da atitude do colectivo perante a solicitação de planeamento e implantação dos 'espaços africanos', e do 'império'.

Ciclo que, pelas inevitabilidades que a história muitas vezes reproduz, se está neste momento a repetir amplamente, com um novo fôlego que dará certamente resultados igualmente relevantes.

José Manuel Fernandes, arquitecto agregado da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, seminarista convidado do curso de arquitectura da Universidade Autónoma de Lisboa, é um dos poucos arquitectos com obra literária que se pode considerar relevante, e que tem escrito sobre a arquitectura portuguesa (e mundial), de uma forma consistente e sistemática nos últimos vinte anos (pelo menos), quer em livro, quer em artigos escritos para a imprensa.

Digamos que as crónicas publicadas na revista no semanário Expresso, realizadas a par com o arquitecto Manuel Graça Dias -- outro autor de livros sobre arquitectura --, estranhamente descontinuadas a favor de um novo perfil de revista (s) -- questionável, é certo, a ausência de espaço para esta espécie de textos --, sempre foram um epítome de qualidade e rigor, por reflectirem sobre a génese arquitectónica e por uma leitura pessoal (não só mas também), com particular atenção a todas as manifestações, estilos, tendências (sem excepção) e um grande respeito pela história e pelos factos.

«Geração Africana» assume-se assim como uma demonstração da evolução do trabalho dos arquitectos portugueses em cidades angolanas, como o Lobito, Nova Lisboa (Huambo), Benguela ou Malanje; e em cidades moçambicanas, como Lourenço Marques (actual Maputo), Nampula, Quelimane e Beira. O registo do texto, entre o recurso ao facto histórico, artístico e, por vezes, pessoal, dos arquitectos envolvidos, sobretudo na primeira parte, é substanciado por fotografias a preto e branco de autores diversos e do próprio José Manuel Fernandes, que ilustram o leit motiv. Neste particular, algumas destas reproduções fotográficas fazem parte da colecção privada de Vítor Pavoeiro Ferreira ('Vítor Ferreira', meu pai), que andava sempre com uma NIKON (modelo NIKORMAT) e um tripé nas mãos, inclusive quando esteve na guerra do Ultramar. E, facto premonitório, fotografava muito bem arquitectura. Tinha um gosto especial pelo 'enquadramento', o que a extensa colecção de slides acaba por confirmar. Ficamos então à espera da segunda edição deste livro, prestes a ser publicada, talvez a cores.

Este trabalho parte da noção de que a arquitectura e o urbanismo de raiz portuguesa, afirmados ao longo do século XX – e que têm merecido amplo estudo na área europeia e ibérica, nos anos mais recentes – só serão completa e coerentemente entendidos se for estudada a sua presença e paralela afirmação nas áreas ultramarinas.

Escolhendo os territórios de Angola e de Moçambique – os mais significativos no tempo considerado, entre as várias áreas ex-coloniais –, o presente ensaio pretende constituir um primeiro contributo para aquele estudo, que se deseja venha a ser cada vez mais global.

É também importante referir que se entende e interpreta aqui o “Século XX” como tendo, no contexto português, o seu verdadeiro ou efectivo início após a I Guerra Mundial, aproximadamente no dealbar do segundo quartel de novecentos. Por outro lado, este estudo incide sobretudo na fase histórica até 1975 – ou seja, até ao tempo das independências dos espaços africanos considerados – pois obviamente se trata aqui de analisar a temática urbano-arquitectónica de raiz, influência e contexto cultural português, aspecto que se transforma totalmente depois dessa data. Desta forma, falar do tema arquitectura-urbanismo na “África Portuguesa” é sobretudo falar do meio século situado entre 1925 e 1975.

Na presente obra faz-se a articulação da informação histórica, publicada ou inédita, com dados mais recentes, e com uma recolha oral e audiovisual fruto de testemunhos directos procurando organizar uma reflexão e uma primeira síntese sobre essa documentação e esses testemunhos. É ainda necessário referir e justificar que o entendimento do presente estudo é o de articular a experiência urbana e urbanística com a obra e a prática arquitectónicas – tanto mais que muitos dos profissionais envolvidos e aqui referidos trabalharam nos dois campos em simultâneo – pois entendemos aqueles dois campos de criação e de conhecimento como complementares, indissociáveis e, num certo sentido, interactivos.

Uma geração de arquitectos portugueses deixou uma vasta obra em Angola e Moçambique. Realizada no terceiro quartel do século, esta foi uma produção de vanguarda extremamente inovadora e realizada no espaço colonial africano que importa agora salvaguardar.

Pouco ou nada conhecidos, nem na sua vida nem pela sua obra, foram no entanto aplicados construtores da África do século XX, no planeamento e no urbanismo, na arquitectura e nas artes. Falamos da «geração heróica» dos arquitectos portugueses que, nascidos sobretudo nos anos 10 e 20, formados no pós-guerra nas escolas de Lisboa e Porto, foram viver e trabalhar sobretudo para Angola e Moçambique ao longo das décadas de 40, 50 e 60.

Alguns já ali viviam, inseridos no meio colonial, e vieram à Metrópole de então completar os seus estudos.

Foi o caso de Vasco Vieira da Costa (1911-1982), natural de Aveiro, que estudou-trabalhou com Le Corbusier e tem uma obra notável em Luanda. Vasco Vieira da Costa fixa-se em Luanda em 1960, tendo ido para o Porto em 1982, uns meses antes da sua morte. Com uma pequena participação na Exposição-Feira de Angola em 1938, o seu arranque dá-se com o projecto do Mercado do Kinaxixe (1950-52) na Praça do Kinaxixe (1953), construído pela firma “Castilhos”, um Bloco para os Servidores do Estado, na Rua Amílcar Cabral (Set Obres Modernes…1996), o conjunto pavilhonar, ainda que incompleto do Laboratório de Engenharia de Angola. São de sua autoria, o edifício da Diamang na Rua Lopes Lima, o prédio da Versalles, na Av. Rainha Ginga, o notável edifício do ministério das Obras Publicas, vulgarmente conhecido por edifício Mutamba (1968-69), com uma forte componente corbusiana, principalmente nas grelhagens, a Escola Inglesa (Futungo de Belas), a Guedal (oficina e stand), a torre Secil e a Câmara dos Despachantes na 4 de Fevereiro, a Anangola e ainda a fábrica da Fabimor. Houve muitos outros trabalhos que ele deixou em Luanda, de assinalável qualidade estética e de enorme versatilidade na sua funcionalidade. Vieira da Costa merece muito mais que estas parcas palavras, e penso que com o crescente número de arquitectos angolanos, ele terá a homenagem que tem sido sucessivamente adiada.

Mas outros, então recém-formados, foram para África «para se libertarem», para seguirem a sua vida profissional de um modo mais aberto e moderno, coisa aparentemente simples e normal, mas que sentiam lhes eram de algum modo negadas ou dificultadas na pátria europeia.

Foi o caso do talentoso José Pinto da Cunha, com fama de autor de inúmeras moradias «para ricos» em Luanda, entre as quais a actual residência do embaixador de Portugal, projectou o primeiro duplex na Marginal, mas sobretudo criador de obras luandenses arrojadas e inovadoras, entre 63 e 67, como o moderno Bairro Prenda (um vasto conjunto tipo Olivais lisboetas, «em bom»), o edifício da Rádio Nacional de Angola (Construída em terrenos onde houve uma exposição “ultramarina”, em cujos pavilhões, participaram alguns arquitectos residentes em Luanda nos anos 60). O grande trabalho deste arquitecto, em sociedade com Pereira da Costa foi o edifício Cirilo, construído na baixa de Luanda, na Rua Major Kanhangulo, inaugurado em 1958, que é um trabalho ainda hoje de tomo, no quadro de um determinado período da arquitectura na África colonial.

José Pinto da Cunha era filho de um dos mais repressivos professores da Escola de Belas-Artes de Lisboa, que chegou a provocar uma autêntica «migração forçada» de alunos, chumbados colectivamente em 42, para concluírem o curso no Porto.

Foi também o caso de Francisco Castro Rodrigues (1920), o assinalável «arquitecto do Lobito», que com generosidade e talento ofereceu a sua vida profissional à que se tornou na época a segunda cidade angolana. Apesar de vigiado pela PIDE, Rodrigues conseguiu fixar-se no Lobito em 53 e lá realizou uma verdadeira «obra global», enquanto discreto mas activo funcionário municipal. Foi planeador, urbanista e arquitecto, realizando para as novas áreas de expansão urbana muitos dos melhores equipamentos (entre 64-66), em desenho caracteristicamente leve e moderno, como o liceu, o mercado, o aeroporto, o elegante cine-esplanada Flamingo.

Só a partir de 1975, começa a trabalhar na capital, pelo que em Luanda tem poucos trabalhos com a sua assinatura.

Rodrigues teve um percurso excepcional em Angola, pois «ficou», por adesão e gosto, depois das independências, contribuindo para a organização do curso de arquitectura da jovem Republica Popular de Angola, até 87. O seu trabalho, enquanto docente na faculdade de arquitectura da Universidade Agostinho Neto, é de enormíssima importância.

Quando deixa Angola, em 1988, deixa no Lobito “cada esquina com o seu risco e traço”.
Convidado pelo município do Lobito para as comemorações da cidade, ali voltou em 93, honrado e comovido.

Já o arquitecto natural de Luanda, Fernão Simões de Carvalho, que também tirocinou no atelier de Le Corbusier, é uma figura de actividade mais diversificada, com obras em Luanda, mas também em Lisboa e no Brasil. Entre 63 e 65, foi autor, com Pinto da Cunha, do hospital do Lubango (ex-Sá da Bandeira); e, também com Fernando Alfredo Pereira, do Bairro Prenda luandense. Teve uma intervenção persistente, formativa e continuada no planeamento municipal de Luanda.

Muitos outros autores e obras com modernidade seriam listáveis em Angola e Moçambique; numa primeira pesquisa, consegue-se agrupar mais de meia centena de nomes de arquitectos ali fixados.

Em Angola, refiram-se ainda nomes como o de António Campino, com o Hotel Presidente ou a Auto Avenida, em Luanda; o dos irmãos Garcia de Castilho, pioneiros da década de 50, que edificaram em Luanda o grandioso Cinema Restauração ou o edifício Mobil (1951); o de Fernando Batalha (1908), que trabalhou para os Monumentos Nacionais de Angola; o de Pereira da Costa (com o Prédio Cirilo, do «ciclo do café», de 59); o de Luís Taquelim (nascido no Algarve, ao que parece autor do Hotel do Moxico/Vila Luso).

E sem esquecer passagens mais fugazes, mas assinaladas por uma acção inconformista, como a de Francisco Silva Dias (1930), que lhe valeu a demissão da Câmara de Luanda (atreveu-se a defender publicamente que o planeamento fosse liderado por arquitectos municipais!) - mesmo assim autor do projecto da escola técnica de Saurimo, na longínqua Lunda, de 59 (obra que há dias descobriu, surpreso, ter sido edificada); ou a de Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu Costa Cabral, autores de uma pequena «mini cidade industrial» moderna para a Empresa da Celulose (Alto Catumbela, Benguela - 58-59).

Em Moçambique há também uma série de autores e obras de grande qualidade. Além de Amâncio Miranda Guedes (ou Pancho Guedes, Lisboa, 1925), já mais conhecido e premiado pela sua original e diversificada obra laurentina, e de outros mais novos (José Forjaz, Coimbra, 1936) - há que mencionar arquitectos injustamente desconhecidos ou esquecidos: João José Tinoco (1983), autor de notáveis obras modernas adaptadas ao contexto climático (aerogare de Nampula; sede do Governo do Niassa, em Lichinga, - 66-68); José Porto (1963), autor do portentoso Grande Hotel da Beira e de vários edifícios no centro da cidade, dos anos 40-50; Francisco de Castro (projectista da estação ferroviária da Beira); ou ainda Garizo do Carmo (cinema S. Jorge, Beira). E sem esquecer, de novo, os autores com passagem pontual pelo território, como José Gomes Bastos (1914-1991), autor do esplêndido e super decorado BNU de Lourenço Marques (hoje o Banco de Moçambique no Maputo).

O que impressiona, no conjunto destas obras, é a dimensão inovadora e moderna, sem pudores, receios ou hesitações, embora criada em plena situação colonial, e em muitos casos «super provinciana». O que se admira e estima é a grandeza de vistas, culturais, técnicas e artísticas de uma geração de «migrantes profissionais», que, trabalhando muitas vezes em contextos da administração oficial, pôde lançar «novas cidades», plenas de novíssima arquitectura moderna, pelas várias e vastas regiões dos territórios então luso-africanos. Sobretudo entre 1950 e 1975. Porque há que o dizer, um quarto de século depois da gesta terminada, com alguma objectividade, esta arquitectura e este urbanismo atingiram qualidade e dimensão superior à praticada na mesma época na «Metrópole».

E só uma situação de confiança plena na inovação, de entusiasmo colectivo, de consonância apesar das diferenças (entre Estado, promotores privados, acção municipal) e de entendimento e aceitação de uma nova escala geográfica, económica e social (com alguma ingenuidade e gosto pela descoberta, que é benéfica nestes casos) podem explicar este facto. Por contraste com uma sociedade metropolitana, que resistiu à modernização, na «África Portuguesa» do terceiro quartel do século foi possível experimentar e mesmo alimentar e instaurar a novidade e a modernidade dos espaços e das arquitecturas, num período de 25 anos, aliás único do contexto europeu, dado que os países europeus (democráticos no pós-II Guerra Mundial) tinham na quase totalidade abandonado já os territórios africanos coloniais até 60-61.

Neste período, ironicamente, Portugal foi assim o «caso único» de uma nação com regime político retrógrado a nível europeu que teve uma produção de vanguarda inovadora no seu espaço colonial africano.

Agora, olhando o futuro possível deste enorme legado material, entre cidades e edifícios, há que o saber inserir (o que sobra, e é recuperável) no contexto novo da reconstrução pós-guerras civis, nas novas nações da Guiné-Bissau, de Moçambique, e esperemos que em breve, de Angola. Conhecendo o valor do que existe, melhor o poderão recuperar, reutilizar e integrar.

António Veloso, fez o projecto para a fábrica da Jomar, na estrada da Cuca (N’Gola Kiluange), e ainda alguns edifícios na Marginal, em terrenos divididos por vários proprietários oriundos do norte de Portugal, que entregaram essas obras aos seus “conterrâneos”, numa óptica regionalista, pois os arquitectos escolhidos, eram todos da Escola Superior de Belas Artes do Porto (Januário Godinho, Vieira da Costa, Adalberto Dias, Pereira da Costa, Pinto da Cunha e claro, António Veloso).

O arquitecto Jorge Chaves projectou a Fosforeira Angola e uma fábrica de tubos em 1958, e a estação de tratamento de Águas na Comandante Gika.

O BCA, obra “emblemática” na baixa da cidade, é da autoria de Januário Godinho, e a título de curiosidade refira-se que o projecto do Banco de Angola é do arquitecto Vasco Regaleira, que como Paulo Cunha (que fez o trabalho da zona do Porto de Luanda e largo fronteiro) não podem ser considerados “geração africana” pois nunca residiram, ou trabalharam continuadamente em Angola.

Há ainda alguns trabalhos do arquitecto Troufa Real, salientando entre várias, o projecto de uma dependência bancária no Largo da Maianga.

Para finalizar esta volta pela “Geração Africana” de arquitectos portugueses que trabalharam em Angola, seria injusto omitir o arquitecto Fernando Batalha, o único que em determinada época trabalhou na preservação do património, e do seu livro “ A arquitectura em Angola” falaremos noutra oportunidade. Este é um assunto da maior pertinência vir a ser aflorado, nos tempos mais próximos, tendo em conta a voracidade com que alguns interesses instalados se manifestam pelo “abate” de edifícios, que são indissociáveis do crescimento histórico sustentado da cidade, em determinados períodos da sua história de séculos.

Um dia, Fernando Batalha, um arquitecto quase centenário e muito lúcido, constará como fonte de estudos sobre a época colonial, por ter sido o único, ao longo de 45 anos em Angola, a trabalhar no património.

Dizem que era um homem só que, na altura, defendia valores desprezados. Foi escrevendo essas memórias e continua a fazê-lo, diariamente, num escritório de onde se vê o Tejo. É autor de inúmeras publicações sobre arquitectura, etnografia, história, e arqueologia.

Tudo começou no 1.º Cruzeiro de Férias dos Estudantes da Metrópole às Colónias, com um director cultural chamado Marcelo Caetano, que "mandava fazer muitas palestras e dissertações" durante a viagem. No final, Fernando Batalha deixou-se encantar por África. E ficou. 1935: "Só havia em Luanda arquitectura dos séc. XVII, XVIII e XIX. Do séc. XX, nada! A cidade não tinha uma rua asfaltada, nem canalização. Tomava-se banho com um balde de furos, de onde se puxava um cordel para sair água amarelada."

Teve encontros marcantes. Com o rei do Congo, D. Pedro VII, quando este, em 1942, lhe mostrou os escombros da primeira igreja portuguesa da cidade de São Salvador (1491), actual M'banza Congo. "Já era velhote, mas simpático e atencioso, simples no vestir", lembra Fernando Batalha, que do local soube mais tarde ter virado pista de aviação.

A longevidade tornou-o uma voz viva da História. Ele foi um dos primeiros arquitectos a pisar a ex-colónia, o que originou convites imediatos e obras feitas. Mas o pára-arranca no desenvolvimento leva o jovem a concorrer para a África do Sul, na II Guerra, dada a falta de técnicos, chamados ao combate. "A espionagem actuava em Angola, ponte entre a Europa e África, e 'eles' queriam averiguar as minhas condições. Mas quando chega a autorização, já a guerra terminara, e os arquitectos estavam nos seus postos."

Ficou agradecido ao destino. "Não gostei, apesar das cidades sul-africanas estarem muito desenvolvidas. Quando os boers ganharam as eleições, em 1948, vivia-se numa guerrilha sem armas, porque a população estava habituada aos ingleses, mais brandos. Não havia comunicação franca entre as etnias. Em Angola, a convivência era diferente." Andou muito. "Percorri os sítios onde houve presença portuguesa. Confirmei ruínas desaparecidas, recolhi informação. Tenho a lista do que lá existiu." Preocupava-se em salvar edifícios, classificava tudo quanto via, restaurava o que podia. Teve problemas por querer conservar casas centenárias em Luanda que foram arrasadas. Toda a documentação está no seu invejável arquivo.

Os grandes trabalhos vêm depois da guerra. "O preço do café subiu imenso. Os americanos, que fizeram a guerra do Vietname com estimulantes, continuaram a beber café quando regressaram a casa. Os europeus também. E Luanda começa a crescer com investimento privado." E oficial. "Salazar não queria que Angola ficasse atrás de outras colónias. Fez-se o porto de Luanda, estradas, liceu, edifícios, as finanças com quatro andares, e abriam-se bairros de construção para brancos e negros."

Tempo para escrever, então, não faltou. "Na altura, não me davam trabalho, mas tinha um gabinete no palácio, com vista bonita para o jardim do governador. Não havia editores nem leitores, mas tirava apontamentos e escrevia artigos e pequenos ensaios."

As intervenções foram às centenas. Envolveu-se em planos de urbanização, ampliação de palácios do comércio e de governadores, lançamento de gabinetes por Angola. Quando aos 75 anos veio para Lisboa, deixou o inventário do património do novo país. A capicua da permanência (1938-1983) em Angola fê--lo atravessar tempos antigos e continuar, após a independência, a transmitir saber como professor na Faculdade de Arquitectura de Luanda.

Tem sete originais para editar. "Só queria viver até ao lançamento do próximo livro, As Povoações Históricas de Angola." Voz frágil mas convicta, Batalha vive rodeado de mapas, dossiers antigos e projectos. Escreve em folhas amarelecidas, quiçá vindas de África.


Desta "Geração Africana" fazem também parte pintores, como: Abel Manta, Almada Negreiros, António Quadros, Dórdio Gomes, Henrique Medina, Isolino Vaz, Jaime Isidoro, João Hogan, Júlio Resende, Lourdes Castro, Manuel Pereira da Silva, entre outros; na escultura, destacamos: Arlindo Rocha, Henrique Moreira, Leopoldo de Almeida, Manuel Pereira da Silva e Sousa Caldas.

Em 1955, Manuel Pereira da Silva concebeu a estátua a Ulysses Grant, 18º Presidente dos E.U.A., vencedora do concurso público lançado para o efeito, pelo Ministério do Ultramar, erigida frente ao edifício dos Paços do Concelho de Bolama, na Guiné-Bissau.

"Ulysses Grant foi um general e estadista americano, nascido em 1822 e falecido em 1885. Andou na Guerra do México, em 1847, e participou activamente na Guerra da Secessão, lutando ao lado dos Nortistas, tendo dado o golpe de misericórdia aos Sulistas em 1865. Candidato a Presidente dos Estados Unidos, venceu por maioria esmagadora, tendo governado de 1868 a 1876, como 18ºPresidente. De 1877 a 1880 fez uma viagem triunfal em volta do mundo, onde foi sempre calorosamente recebido."
"Pois foi este famoso estadista que defendeu abertamente a posse da Guiné para Portugal. Em memória de alguém que, sendo grande, soube advogar com generosidade uma causa justa, o Governo Português encomendou a Manuel Pereira da Silva a respectiva estátua que, não obstante os ventos revolucionários da independência guineense, ainda se encontra no mesmo lugar."

Em 1960, Manuel Pereira da Silva realizou, "África", este baixo-relevo, em faiança policromada, destinado à decoração da fachada de um edifício situado na marginal da Baía de Luanda, Angola. Para o efeito Manuel Pereira da Silva improvisou ateliê numa arrecadação industrial desocupada, nos arredores do Porto.

Tal com no baixo-relevo do Palácio de Justiça idêntico tratamento teve o baixo-relevo executando para Angola em que há uma abundância de formas geométricas. As figuras dos gentios, a flora e os animais espalham-se pelo imenso trabalho numa concepção moderna que Manuel Pereira da Silva procurava impor às suas obras.

domingo, março 28, 2010

Os Cafés da Baixa do Porto

Em meados do século XIX, a Praça Nova foi um núcleo da vida social da Cidade, ponto de encontro da Geração Romântica. O Passeio da Cardosa, também conhecido por "Real Clube dos Encostados", era um local de reunião da vida literária e boémia.

Os cafés que foram surgindo em torno desse espaço, na Baixa portuense, desempenharam um importante papel de locais públicos de intercâmbio de ideias e de difusão de culturas.

Poderemos mesmo dizer que, no Porto, os cafés rivalizaram com as academias na divulgação de obras literárias, nas discussões sobre correntes estéticas e artísticas, no debate político sobre planos de luta e resistência ao poder instituído.

Um dos primeiros cafés do Porto, primeiro apelidado de "botequins", foi o Café das Hortas, na esquina da Rua de Avis com a Rua do Almada, então Rua das Hortas, fundado em 1820 e pertencente a Domingos José Rodrigues.

O Café Guichard, na Praça de D. Pedro, em funcionamento até 5 de Fevereiro de 1857, era o ponto de encontro de intelectuais, onde se reunia a juventude irreverente da geração de Camilo Castelo Branco e dos escritores românticos. No exterior conservava as características de um botequim, inimigo das inovações, muitas vezes acusado de mau gosto, apesar de localizado no ponto mais concorrido da Cidade. Após ter encerrado, em 1857, apareceram mais três no mesmo quarteirão, o Suíço, o Central e o Camanho.

O Café Suíço, no local do antigo Café Portuense e onde antes deste funcionara a Hospedaria Resende, inspirado no seu homónimo lisboeta, foi inaugurado em 1853 e encerrou em 1958. Com uma secção de confeitaria e um serviço de restaurante no primeiro andar, luxuoso na decoração e com uma frequência mais cosmopolita, foi o pioneiro na tradição dos cafés com orquestra.

Fundado no local onde hoje se encontra o Café Embaixador, o Café Central passou depois para o local do actual Café Imperial, tendo aí permanecido até 1933, data da demolição do edifício à época existente. Foi muito frequentado por estudantes e nomes como Jaime Cortesão e Leonardo Coimbra também passaram por lá.

O Café Camanho, do espanhol José Camanho, funcionou entre 1880 e 1917, e teve como clientes habituais Guerra Junqueiro, Sampaio Bruno, Basílio Teles, João Chagas, Guedes de Oliveira, António Nobre, João Saraiva, Raul Brandão e Júlio Brandão.

Localizado nas traseiras do antigo edifício da Câmara, na Praça de D. Pedro, o Café Chaves manteve uma tertúlia animada por Leonardo Coimbra, da qual participavam artistas e poetas boémios, românticos e sonhadores. Foi demolido o edifício onde se encontrava para a abertura da Avenida dos Aliados.

Inaugurado em 1921, o Café Magestic, com risco de João Queirós, tem sido frequentado por diversos artistas entre os quais um grupo formado por José Rodrigues, Armando Alves e Jorge Pinheiro, três de "Os Quatro Vintes", para quem o Magestic é como uma segunda casa. É um exemplo de longevidade e sobrevivência, mostrando que o importante é continuar a cativar os clientes e não ceder a interesses económicos imediatistas.

A Brasileira tinha a particularidade de ser frequentado por pessoas de direita e de esquerda, que se sentavam em lados respectivamente opostos.

Nos finais da década de 20 do século XX abriram os primeiros cafés da Avenida dos Aliados. Do lado Nascente, o Café Avenida e o Sport, do lado Poente o Monumental e o Guarany.

O Café Avenida, o mais antigo, possuía salões de bilhar e espectáculos de orquestra. Após as obras de remodelação dos anos 40, reabre com o nome Vitória, e começa a ser frequentado por um agente da PIDE, o que fez com que algumas pessoas se afastassem.

Em 23 de Novembro de 1929 abriu o Café Sport, num estilo moderno, da autoria de Rogério de Azevedo e Baltazar de Castro, uma semana antes da inauguração da escultura "Menina Nua" de Henrique Moreira na Avenida dos Aliados. Possuía quatro painéis do decorador António Costa, representando modalidades desportivas: o futebol, a natação, o atletismo e o golfe. Como é óbvio, atraía uma clientela ligada ao desporto, mas também os artistas do "Grupo Mais Além", e alguns arquitectos e engenheiros com escritórios nas proximidades. Realizaram-se obras de reabilitação em 1943 e em finais dos anos 60 o Sport fechou para dar lugar a uma agência bancária.

O Café Monumental abriu em 10 de Janeiro de 1930, com projecto de João Queirós. Localizado no edifício contíguo à Sede de O Comércio do Porto, era extremamente luxuoso e confortável, dividido em espaços diferenciados pelos três pisos, com lugar para bilhares, restaurante e café com orquestra.

Em 29 de Janeiro de 1933 foi inaugurado o Café Guarany, no edifício projectado por Miguel Ângelo Soá, com um projecto de Rogério de Azevedo e um baixo-relevo de Henrique Moreira. A principal inovação era o sistema de ventilação e filtragem do ar. Nos anos 80 sofreu alterações que o desvirtuaram, ao ser criado um balcão corrido e eliminadas as mesas. Recentemente foi recuperado de acordo com o projecto inicial, tendo sido acrescentados painéis da pintora Graça Morais. Poderá considerar-se um exemplo de recuperação da imagem e da essência original.

O Café Imperial, na Praça da Liberdade, foi inaugurado em 27 de Maio de 1936, da autoria de Ernesto Korrodi e Ernesto Camilo, hoje preservado no seu interior, mas transformado numa cadeia de refeições rápidas.

Mais afastado do nosso local de estudo, mas com igual importância, o Café Palladium, aberto em 4 de Novembro de 1940, ocupou quatro pisos do edifício de Marques da Silva, cujas obras de reconversão foram da autoria de Mário de Abreu. Tinha salão de jogos, salão de chá e um cabaret. Atraía uma clientela ligada à Arte e às Letras, como Jorge de Sena, José Régio, Adolfo Casais Monteiro, SantAna Dionísio, Alfredo Pereira Gomes, Alberto Serpa, Nadir Afonso, Júlio Resende, Manuel Pereira da Silva, entre outros, e foi encerrado nos anos 70.

Na Praça de D. João I, o Café Rialto projectado por Artur Andrade, em 1944, ocupava o edifício mais alto do país nessa época, da autoria de Rogério de Azevedo, possuindo no piso térreo um mural de Abel Salazar 28 e na cave frescos de Dordio Gomes e Guilherme Camarinha, e na escadaria um painel cerâmico de António Duarte. Era frequentado por Arménio Losa e pela sua esposa, a escritora Use Losa, também por António Ramos de Almeida que dirigia a Página Cultural do Jornal de Notícias, pelos poetas Pedro Homem de Melo, Papiniano Carlos, Daniel Filipe, Luís Veiga Leitão, António Rebordão Ramalho, e também pelos membros do Teatro Experimental do Porto: António Pedro, Dalila Rocha, João Guedes, Augusto Gomes, Fernanda Alves, Vasco Lima Couto e Egipto Gonçalves. Foi, aliás, Egipto Gonçalves quem deu o nome aos fascículos de Poesia "Notícias de Bloqueio". Encerrou em 1972, dando também lugar a uma agência bancária.

Passando para a nossa área em estudo, o Café Avis, na Rua de Avis, dos anos 40, apesar das obras de remodelação terem desvirtuado o espírito inicial, mantém ainda alguma da "vivência de café", com bilhares, venda de jornais e um engraxador.

O Café Ceuta é um dos raros cafés dos anos 50 que se encontra hoje ainda em funcionamento. Foi apresentada, em 18 de Julho de 1953, uma alteração com vista à adaptação do estabelecimento a "venda ao público de café em chávena, bebidas licorosas, cerveja, lanches, etc., tendo o pavimento inferior o salão destinado a bilhares". Possuía um friso de pinturas a fresco de Coelho de Figueiredo, entre a parte superior do espelho e o tecto, hoje desaparecidas. Mantém-se o pavimento em marmorite com juntas metálicas e os lambris forrados a mármore onde poisam os espelhos de cristal.

Durante os tempos da Livraria Divulgação, ali bem perto, foi palco de tertúlias literárias, animadas por Fernando Fernandes, Manuel Pereira da Silva, Carlos Porto, Vítor Alegria, Luís Veiga Leitão, António Emílio Teixeira Lopes, Orlando Neves que, com a sua esposa, Maria Virgínia de Aguiar, fundou e dirigiu a revista "A Cidade - do Porto e pelo Norte", o jornalista Pedro Alvim, os actores Dalila Rocha e João Guedes, o Mestre António Pedro, Manuel Baganha, Luís Ferreira Alves, Jorge Baía da Rocha, Carlos Ispaim e Eugénio de Andrade.

"O Porto

O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a insurreição do olhar.

O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, [...]

O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore [...]

Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos da juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma pétala pouse aqui, por ser cal. "

Estes visitantes ocupavam as mesas do fundo da sala, começavam a chegar à hora do lanche e aí permaneciam pela noite fora, muitas vezes vigiados pela PIDE, e alguns deles jogando snooker no salão de bilhar na cave do Café.

O Café Sical dos anos 60, mantendo as características originais e obras de Arte de grande qualidade, tem uma clientela mais ocasional e de rápido consumo, característica dos nossos dias.

As personalidades referenciadas, por vezes frequentadoras de diversos Cafés, constituem um mosaico daquilo que o Porto nos pôde dar de melhor.

Mais do que o efeito estimulante da cafeína, o "espaço-café" estimulava a contaminação criativa, as vanguardas intelectuais e o convívio social.
Hoje pedimos que não sejam esquecidos.

FERNANDES, José Alberto Rio; MARTINS, L. P. Saldanha - Apontamentos de um século de vida dos cafés, restaurantes e hotéis do Porto, in "O Porto na época Contemporânea". Porto: Ateneu Comercial, 1989.

SILVA, Germano - Em louvor dos cafés do Porto. Porto de Encontro. Porto: Câmara Municipal do Porto, Julho de 2001.