Este livro integra a arte do Estado Novo no âmbito da dos regimes autoritários e totalitários e verifica se esse confronto tornava mais compreensível a Cidade Universitária de Coimbra. A generalidade dos estudos sobre a arte nos regimes autoritários e totalitários valoriza as relações com o poder político, em particular o processo de sujeição ideológica. O fenómeno de politização da arte supõe a concessão (ou o reconhecimento) do elevado poder de endoutrinamento da arte.
Existe uma arte totalitária?
Apesar dos estudos académicos realizados a partir dos anos sessenta e setenta terem configurado a arte dos regimes totalitários como tema de investigação, a queda do Muro de Berlim, em 1989, facilitou o seu surgimento aos olhos do público, para isso contribuindo mais de uma dúzia de exposições realizadas durante a década de noventa, entre as quais se destaca Arte e Poder: a Europa sob os ditadores (XXIII Exposição do Conselho da Europa; Londres, Barcelona e Berlim, 1996). A falência dos regimes comunistas foi acompanhada pela destruição dos símbolos artísticos do passado, sobretudo a estatutária, mas permitiu, ao mesmo tempo, observá-los com maior distanciamento.
A generalidade dos autores, reconhecendo a existência de similitudes artísticas entre os diversos regimes autoritários e totalitários, divide-se quanto à pertinência da expressão arte totalitária. Igor Golomstock escolheu-a para título de um livro acerca da União Soviética, da Alemanha, da Itália e da China, elevando-a “a segundo estilo internacional da cultura contemporânea”, depois do modernismo. E Sigmum Paas estendeu as similitudes arquitectónicas à Áustria, Suíça, Espanha, Portugal e Europa de Leste. Outros estudiosos, contudo, mais sensíveis às diferenças entre os países ou à diversidade interna de cada um deles, preferem falar de “arte sob os totalitarismos”. Para estes a diversidade estilística patente nos regimes nazi e estalinista, por exemplo, contraria tal conceito. Mas para os que defendem a existência de uma “arte totalitária” as semelhanças suplantam as diferenças, não sendo estas mais do que o resultado de naturais especificidades culturais. Sem tomar partido, Toby Clark enumerou os dois aspectos de modo que parece acentuar as similitudes: tanto o realismo socialista como a arte nazi emergiram nos anos trinta, idealizaram os operários e camponeses, alimentaram o culto dos chefes e reconheceram a um estilo fácil de apreender. Ambos os regimes acabaram por adoptar uma arquitectura monumental, uma escultura heróica e uma linha académica na pintura, na música e na literatura.
Não está no nosso espírito, por exemplo, sugerir uma identidade estrita entre as artes nazi e estalinista. Em contrapartida, parece-nos inequívoca uma proximidade, que pode ser medida:
1º pela supremacia dos objectivos políticos e propagandistas;
2º pelo apertado controlo da arte e dos artistas exercido pelo Estado;
3º pela tendência para recusar as vanguardas em benefício do classicismo monumental, do ecletismo historicista e da expressão pseudo-vernácula, na arquitectura, e de um naturalismo académico, na pintura e escultura.
É neste sentido que adoptamos a expressão “arte totalitária”, mesmo reconhecendo os dilemas postos pelo conceito de “totalitarismo”. Extraindo dele a acepção que melhor descreve o fenómeno artístico, diríamos que a “arte totalitária” reflecte, num grau quase limite, a intervenção do Estado. Mas como exercício do poder nunca é, por definição, total, devemos evitar qualquer absolutização conceitual.
O cerne do problema que estamos aqui tratando é a dimensão política da arte, e não se reduz, como é evidente, ao período de entre as duas guerras. A aproximação entre a arte e a política é muito antiga.
Uma vez que a unidade da “arte totalitária” radica nos seus objectivos políticos, é fundamental não se restringir aos aspectos formais. É o programa político e ideológico que lhe confere mais inteligibilidade. De outro modo, como entender o surgimento de uma arquitectura clássica monumental, tanto nos E.U.A. como na Alemanha nazi? E como explicar que esse classicismo, que na Alemanha representava um sistema político totalitário, exprimisse nos Estados Unidos, desde Thomas Jefferson, a própria democracia?
O conceito de “arte totalitária” permite ultrapassar um quadro cronológico rígido e situar com nitidez formulações teóricas e até alguma actividade partidária. É o caso do Partido Comunista Francês do pós-guerra, em cujas orientações artísticas se detectam princípios importantes na União Soviética. A valorização dos conteúdos políticos conduziu, na pintura, ao primado do tema sobre a forma e à defesa da univocidade da mensagem, ao rigoroso controlo partidário e à imposição do realismo socialista; à hierarquização dos géneros, com predomínio do retrato e da pintura histórica.
A preponderância do elemento constitui o traço dominante da “arte totalitária”. O Estado arroga-se o direito de interferir na actividade, condicionando o mercado, a estética e a mensagem expressa. O próprio Hitler afirmou que, nos seus edifícios, apresentava ao povo uma “vontade de ordem, expressa em signos visíveis”. No limite, a arte apresenta-se como “um suporte passivo do político”, ao ponto de apagar a identidade do criador, como refere André Gunthert. Os pintores que se encontram ao serviço do Marechal Pétain aceitaram anular a individualidade para melhor executarem a hagiografia do poder. No pólo contrário, a arte da Resistência adoptou igualmente o registo propagandista e a simplificação estilística. O juízo estético chega a ser substituído pelo julgamento político. O direito de o estado intervir nos assuntos estéticos transformou-se rapidamente em dever, sob a alegação de que estava em causa o interesse nacional. A política, predominando sobre toda a actividade social, devia determinar também a arte. Com este raciocínio, valoriza-se não tanto a capacidade crítica dos líderes, mas sobretudo o seu discernimento político e ideológico. Mas daqui resultou, na Alemanha nazi, a afirmação da infalibilidade estética de Hitler, exarada por Adolf Ziengler na abertura da Exposição de Arte Degenerada, em 1937. Só ele estaria em condições de mostrar o caminho para a arte Alemã. Em 1939, Marcello Piacentini reconheceu no extraordinário desenvolvimento arquitectónico nazi um importante significado político e artístico, unindo assim os dois aspectos que alguns estudiosos se esforçam por separar.
Num debate acerca da existência de uma “arte totalitária”, além dos aspectos estilísticos, é, portanto, decisiva a sua inserção no aparelho político e cultural totalitário e a percepção da sua função ideológica e propagandística. No contexto dos Estados liberais, a propaganda oficial apresenta um carácter episódico, relacionado com o esforço de guerra. A criação pioneira de um Departamento de Propaganda de Inglaterra, em 1917, traduz uma forma de combate que terminou com o fim da guerra. França e Estados Unidos organizaram também os seus serviços no âmbito do esforço de guerra. Foi com os regimes ditatoriais surgidos nos anos vinte e trinta que propaganda se converteu numa poderosa e permanente máquina de endoutrinamento, abrangendo a imprensa, a música, a arquitectura, as artes plásticas, o cinema e a rádio. A função ideológica e propagandística não constitui um aspecto secundário da arte totalitária, mas o seu verdadeiro nó górdio. Apenas ela torna inteligíveis os enormes investimentos culturais. Os dirigentes acreditavam poder moldar a sociedade através dela, mas tal desiderato exigia um férreo controlo político, bem expresso nos seus objectivos em que Mao Tse Tung encerrou a arte (1956):
- “a arte deverá fortalecer a unidade de uma nação chinesa constituída por numerosos povos;”
- “contribuir para a construção do socialismo;”
- “reforçar a ditadura democrática popular;”
- “reforçar o centralismo democrático;”
- “reforçar a direcção do partido comunista;”
- “permitir o estabelecimento da solidariedade socialista internacional, bem como da solidariedade dos povos pacifistas do mundo inteiro.”
Assim, compreende-se que a arte totalitária exprime de forma manifesta, tanto no estilo como no enunciado, as três características básicas de uma propaganda eficaz: simplicidade, força e concentração.
O controlo da arte e dos artistas
A “arte totalitária” formou-se por oposição ao modernismo, acusado de esteticamente repelente e de politicamente subversivo, mas a ideia de expor a arte considerada de mau gosto, para a educação do público e vergonha dos artistas, não nasceu com o nazismo. A implantação dos totalitarismos coincidiu com a radicalização do fenómeno, de nítidas raízes políticas. Assim, enquanto se processa um movimento antimoderno na União Soviética a partir do final da década de vinte, na Alemanha após 1933 e em Itália poucos anos depois, a Suécia, a Finlândia, os estados Unidos e a América Latina, prosseguiram o desenvolvimento do modernismo.
Na fase inicial do lançamento do aparelho de controlo, a Alemanha mobilizou-se contra as correntes artísticas consideradas “degeneradas”, excluindo dos museus dezasseis mil obras que, depois de confiscadas, foram queimadas ou vendidas no estrangeiro. As razões apresentadas, de natureza estética, política, racial e nacionalista, têm paralelo na União Soviética, que também empreendeu uma campanha contra os formalismos cubista, dadaista, futurista, impressionista e expressionista, “arte de decomposição e putrefacção”. Mas o que na Alemanha demorou apenas quatro anos a realizar-se, prolongou-se na União Soviética por mais de duas décadas. Seguir as correntes modernas correspondeu a praticar um crime contra o Estado e a sujeitar-se a uma sanção penal. Muitos artistas alemães emigraram para o Ocidente, enquanto outros, refugiados na União Soviética, acabaram por morrer nos campos de concentração onde também desapareceram artistas russos recalcitrantes.
Sob a influência soviética, desenvolveu-se na China uma cultura totalitária exemplar. Para reduzir a arte à sua função política, Mao Tse Tung criou um aparelho cultural similar ao soviético e ao germânico. Fundou a Associação dos Trabalhadores de Arte e de Literatura (Junho de 1949) que, reunidos em congresso criaram uma federação estruturalmente mais próxima da Câmara de Cultura do Reich do que dos sindicatos soviéticos. A inscrição obrigatória de todos os artistas nesta federação, o sistema estatal de recompensas (títulos académicos e prémios) e a instauração de uma apertada censura artística foram os passos seguintes. O terror cultural chinês aplicou-se com flutuações durante a segunda metade do século XX, conhecendo um brutal recrudescimento em 1966, durante a chamada “revolução cultural”. Milhares de escritores e de artistas foram então deportados para campos de trabalho ou sujeitos à humilhação pública.
A máquina cultural de Mussolini reflectiu a tardia adopção de um modelo artístico oficial. Apesar da criação de uma academia em 1926 e de um sindicato nacional das artes plásticas no ano seguinte, este último com direito de veto sobre a nomeação de artistas para cargos de natureza cultural, só em 1937 é que começou a funcionar segundo a lógica totalitária. Determinado talvez pelo novo desígnio imperial italiano e pelo reforço do classicismo monumental (correlacionado com a quebra do modernismo e a provável influência germânica), o regime acabou por pender para o monumentalismo, forma privilegiada de invocar a grandeza romana.
Arte e identidade nacional
A ideia de uma arte nacional, surgida com o movimento romântico, adensou-se nos regimes autoritários e totalitários. O que particularmente caracteriza os regimes autoritários e totalitários é a imposição de um discurso estético onde, a par da afirmação do poder do Estado, sobressaem tópicos identitários tão poderosos quanto vagos: romanidade, italianidade e mediaterraneidade, em Itália; nordicidade e arianismo, na Alemanha; herrerianismo, em Espanha; classicismo proletário, na União Soviética; e reaportuguesamento e tradição, no caso Português.
Arte autoritária ou totalitarismo incompleto?
O apelo totalitário
A institucionalização do Estado Novo e a difusão dos seus princípios originou, no campo artístico, um debate polarizado em várias questões: Devia o novo regime controlar a actividade artística? De que modo? Pela regulamentação estrita ou pela propaganda e persuasão? Devia adoptar uma corrente oficial? Cabia-lhe combater o modernismo ou simplesmente desfavorecê-lo? Estas questões, actuais no plano europeu, obtiveram respostas muito diversas em Portugal ao longo dos anos trinta. A reacção tradicionalista, assente em preconceitos políticos e em normas de bom gosto e até de bom senso, criou condições par o surgimento de uma “arte do regime”, exemplarmente reclamada por Portela Júnior, em 1936, na sequência de uma viagem de estudo ao estrangeiro, realizada três anos antes, como bolseiro da Junta Nacional da educação:
“cumpre ao Estado o direito e o dever de não perder oportunidade de intervir por intermédio dos seus organismos idóneos sempre que se pretende imprimir um carácter oficial a qualquer demonstração artística. Impõe-se a formação duma nova mentalidade artística conjugada neste sentido sob a influência da acção disciplinadora do Estado.”
Portela Júnior apontava, deste modo, para um enquadramento totalitário da actividade artística, cuja máxima expressão ocorreu sob os regimes nazi e estalinista. Em Portugal, a “acção disciplinadora do Estado” foi facilitada pela aproximação voluntária de uma parte dos artistas plásticos, mas a rigorosa imposição de uma “arte oficial” (através da exclusão e da perseguição dos artistas plásticos “degenerados” e de um apertado controlo estético da arquitectura) ficou por alcançar, mesmo no seio do aparelho político. A função propagandística atribuída à arte por Salazar, sem dúvida considerável, ficou muito aquém da que se verificou naqueles regimes.
Hitler afirmou num congresso do Partido Nacional Socialista, em Nuremberga, em 1935, que, pertencendo a arte ao povo, não podia tornar-se o luxo de alguns. Afirmação semelhante proferia Lenine quinze anos antes, acentuando a necessidade de, em conformidade com aquele princípio, a arte ser compreendida por todos. Esta ideia teve como corolário lógico o investimento maciço em propaganda, à qual a arte se subordinava. Nesta conformidade, a dotação financeira do Ministério da Propaganda e da Cultura da Alemanha, em 1937, ultrapassou a do próprio Ministério dos negócios estrangeiros.
Ao invés Salazar, questionado em 1933 sobre os apoios concedidos pelo Estado Novo, ao fomento artístico, desculpou-se do fraco investimento com uma curiosa metáfora, que relegava a arte para o campo das coisas superficiais: não se pode pedir a um pobre sem camisa que vista sobrecasaca.
A Exposição do Mundo Português patenteava uma notória uniformidade estética. Tornava-se assim oportuno discutir a possibilidade e a conveniência de uma “arte política” e a importância da liberdade criativa.
Parece evidente que os apelos mais insistentes para uma intervenção estatal coincidiram com a ascensão dos regimes nazi e fascista. Depois da II Guerra Mundial, a liberdade criativa retomou o seu estatuto indiscutível, apesar de, através das inúmeras encomendas, o Estado continuar a agir sobre a expressão artística. Os arquitectos presentes no Congresso de 1948 repudiaram, quase unanimemente, “quaisquer imposições de estilos ou feições tradicionais”.
A intromissão do Estado
Apesar de evidentes intromissões do Estado na expressão artística, alguns autores, sem recusar esse facto, preferem acentuar o papel livremente desempenhado por arquitectos e artistas plásticos na imposição de um estilo. Nuno Portas defende que o “monumentalismo de estafe”da Exposição do Mundo Português foi “concebido, ao que consta, com entusiasmo (em vez de submissão ou vergonha, como se chegou a fazer crer)”.
A influência que o Estado Novo manteve, enquanto encomendante, na feição estética e política da escultura parece indiscutível, embora nem sempre fácil de definir. Gustavo Bastos, conhecedor directo dessa realidade, considera que ela estava bem presente no espírito do artista como condição fundamental para obter trabalho. Em entrevista concedida naquele mesmo ano, Vasco Pereira da Conceição lamentou a “péssima distribuição de trabalhos de escultura realizada pelo Estado. Na sua opinião, estas circunstâncias induziram nos artistas uma atitude de subserviência política e estética. Em face das escassíssimas encomendas privadas, os pintores e os escultores inclinavam-se, por razões económicas, perante o que se pode designar uma estética oficial. Assim, não surpreende que existia no Arquivo Histórico do Ministério da Justiça, como provavelmente noutros ministérios, uma pasta com pedidos de trabalho de escultores, formulados em “tom de súplica”, nos anos de 1955 a 1973, aproximadamente.
No imediato pós-guerra, a acentuação do combate político repercutiu-se na arte. O Estado Novo, que procurara promover as correntes do seu agrado, encetou medidas repressivas esporádicas. Em 1947, investiu sobre a 2ª Exposição Geral de Artes Plásticas, organizada pelo sector intelectual do Movimento de Unidade Democrática em alternativa aos salões de SNI. Obedecendo às ordens do ministro do interior, Augusto Cancela de Abreu, a polícia apressou-se a apreender obras de Mário Dionísio, Júlio Pomar, Rui Pimental, Avelino Cunhal, Maria Keil, Louro de Almeida, Nuno Tavares e Manuel Ribeiro de Paiva. No mesmo ano destruiu o fresco de Júlio Pomar no Cinema Batalha, do Porto. E no ano seguinte impôs a censura prévia aos quadros expostos naquele certame, recusada pelos surrealistas, que preferiram abster-se de expor e organizar a Exposição Surrealista em Janeiro de 1949.