sábado, março 29, 2014

Jürgen Habermas


 
Habermas, Jürgen – O discurso filosófico da modernidade. Texto Editora, 2010.

A palavra “modernização“ foi introduzida como “terminus” apenas nos anos 50. O conceito de modernização refere-se a um feixe de processos cumulativos que se reforçam mutuamente: à formação de capital e mobilização de recursos, ao desenvolvimento de forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à formação de identidades nacionais, à expansão de direitos de participação política, de formas urbanas de vida e da formação escolar formal, refere-se à secularização de valores e normas.

O primeiro filósofo a desenvolver o conceito de modernidade foi Hegel. Temos de remontar a Hegel para compreender o que significa a relação interna entre modernidade [Modernitat] e racionalidade. Hegel começou por utilizar o conceito de modernidade em contextos históricos como conceito epocal: os “novos tempos” são os “tempos modernos”. Isto correspondia ao uso contemporâneo na língua inglesa e francesa das expressões “modern times” e temps modernes”; designam por volta de 1800 os três séculos precedentes. A descoberta do “Novo Mundo” bem como o Renascimento e a Reforma – os três grandes acontecimentos à volta de 1500 – constituem a transição epocal entre a Idade Moderna e a Idade Média. Enquanto no ocidente cristão os “novos tempos” designaram o tempo ainda para vir que se abria ao homem só após o Juízo Final, o conceito profano da idade moderna exprime a convicção de que o futuro já começou, significa a época que vive dirigida para o futuro, a qual se abriu ao novo que há-de vir. Desta forma, a cesura do começo do novo é deslocada para o passado, precisamente para o início da idade moderna; foi apenas em pleno séc. XVIII que o limiar histórico fixado à roda de 1500 foi reconhecido retrospectivamente como sendo na realidade esse começo.

O mundo novo, o mundo moderno, se distingue do antigo pelo facto de se abrir ao futuro. Hegel entende igualmente “o nosso tempo” como “a época mais recente”. Coloca o início do seu tempo presente na cesura que o Iluminismo e a Revolução Francesa representam para os homens com mais discernimento vivendo no fim do séc. XVIII e princípios do séc. XIX.

É inicialmente no domínio da crítica estética que tomamos consciência do problema de uma fundamentação da modernidade a partir de si própria, e isso torna-se claro quando se traça a história do conceito de “moderno”. O processo de separação do paradigma da arte antiga é iniciado no começo do séc. XVIII pela célebre Querelle des Anciens et des Modernes. Os modernos põem em questão, com argumentos de crítica histórica o sentido da imitação dos modelos antigos, em face das normas de uma beleza absoluta, aparentemente desligada do tempo, elaboram os critérios de um belo relativo e condicionado pelo tempo e, dessa forma, articulam a auto compreensão do iluminismo francês, como de um recomeço epocal. Conquanto o substantivo modernista (juntamente com os adjectivos antitéticos antiqui / moderni) fosse usado num sentido cronológico desde final da Antiguidade, nas línguas europeias da idade moderna só muito tarde, mais ou menos, a partir dos meados do séc. XIX, é que o adjectivo moderno foi substantivado, e de novo pela primeira vez no domínio das Belas Artes. Assim se explica a razão pela qual as expressões modernidade, moderne, modernitat, modernité, conservam até hoje um cerne de significado estético marcado pela auto compreensão da arte de vanguarda.

Para Baudelaire a experiência estética fundia-se com a experiência histórica da modernidade. Na experiência fundamental da modernidade estética agudiza-se o problema da auto fundamentação, porque aqui o horizonte da experiência temporal se reduz à subjectividade descentrada, que se afasta das convenções da vida quotidiana. É por isso que para Baudelaire a obra de arte moderna ocupa uma posição peculiar na intersecção dos eixos da actualidade e da eternidade. A modernidade é o transitório, o evanescente, o contingente, é uma metade da arte sendo a outra metade o eterno e o imutável. Esta compreensão do tempo, radicalizada de novo pelo surrealismo, fundamenta a afinidade da modernidade com a moda.

Baudelaire afirma que o belo é formado por um elemento eterno e imutável e também por um elemento relativo e circunstancial, que é representado pela época, pela moda, pela vida espiritual, pela paixão. Sem este segundo elemento, que é como que a cobertura brilhante e atraente que abriu o apetite para o bolo divino, o primeiro elemento seria indigerível, para a natureza humana. Baudelaire, na sua qualidade de crítico de arte, destaca na pintura moderna o aspecto da beleza fugaz, efémera da vida presente, o carácter daquilo que o leitor nos permite designar por modernidade. Baudelaire escreveu a palavra modernidade estre aspas, porque tem plena consciência de que essa palavra é nova e é usada terminologicamente de forma particular consequentemente a obra autentica está radicalmente presa ao momento em que nasce; exactamente porque se consome na actualidade é que pode deter o fluxo regular da trivialidade, romper a normalidade e saciar por um momento, o momento da efémera fusão do eterno com o actual, o imortal anseio de beleza.

A beleza eterna desvenda-se apenas no disfarce do traje da época; Walter Benjamim refere-se mais tarde a isto usando a expressão da imagem dialéctica. A obra de arte moderna está marcada pela união do autêntico com o efémero. Este carácter da actualidade fundamenta igualmente a afinidade da arte com a moda, com o que é novo.

Hegel é o primeiro a elevar à categoria de problema filosófico o processo de separação da modernidade das sugestões normativas do passado que lhe são exteriores. Ao mesmo tempo que a modernidade desperta para uma consciência de si própria nasce nela uma necessidade de auto certificação, que é compreendida por Hegel como a necessidade da filosofia. Ele vê a filosofia confrontada com a tarefa de traduzir em pensamento o seu próprio tempo que, para Hegel significa a época moderna. Hegel está convencido de que não pode de forma alguma apreender o conceito que a filosofia faz de si própria sem atender ao conceito filosófico de modernidade.

Para Hegel os tempos modernos são caracterizados de uma forma geral por uma estrutura de auto relação a que ele chama subjectividade: o princípio do mundo moderno em geral é a liberdade da subjectividade. Quando Hegel caracteriza a fisionomia dos tempos modernos (ou do mundo moderno) explica a subjectividade por meio da liberdade e reflexão. O que dá grandiosidade à nossa época é o reconhecimento da liberdade, a propriedade do espírito, o reconhecimento de que o espírito estando em si está consigo. Neste contexto a expressão subjectividade implica sobretudo quatro conotações: a) individualismo, no mundo moderno a peculiaridade infinitamente particular pode fazer valer as suas pretensões; b) direito à crítica, o princípio do mundo moderno exige que o que deve ser reconhecido por cada um se lhe apresente como algo legítimo; c) autonomia do agir, é característico dos tempos modernos o facto de nos querermos responsabilizar pelo que fazemos; d) por fim, a própria filosofia idealista, Hegel considera ser tarefa dos tempos modernos que a filosofia apreenda a ideia que sabe de si própria. Os históricos acontecimentos chave para o estabelecimento do princípio da subjectividade são a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Com Lutero a fé religiosa tornou-se reflexiva, na solidão da subjectividade o mundo divino transformou-se em algo postulado por nós. Contra a fé da prédica e da tradição o protestantismo proclama a soberania do sujeito que faz valer o seu próprio discernimento. Logo depois a Declaração dos Direitos do Homem e o Código Napoleónico consagram, em detrimento do direito histórico, o princípio do livre-arbítrio como fundamento substancial do estado, considera-se que o direito e a eticidade se fundamentavam no terreno presente da vontade do Homem visto que anteriormente eram apenas um mandamento divino emanado de fora, escrito no Antigo e no Novo Testamento.

O princípio da subjectividade determina além disso as configurações da cultura moderna. É o que acontece, em primeiro lugar, com a ciência objectivamente que despe a Natureza da magia e liberta simultaneamente o sujeito cognoscente: contestaram-se então todos os milagres; porque a Natureza é agora um sistema de leis conhecida e reconhecida, o Homem sente-se bem dentro dela e só conta aquilo em que ele se sente bem; o conhecimento da Natureza torna-o livre.

A arte moderna revela a sua essência no romantismo; a forma e o conteúdo da arte romântica são determinados por uma interioridade absoluta. A auto-realização expressiva torna-se o princípio de uma arte que se apresenta como forma de vida.

Na modernidade portanto, a vida religiosa, o estado e a sociedade, bem como a ciência, a moral e a arte transformou-se em outras tantas incarnações do princípio da subjectividade. A sua estrutura é englobada como tal na filosofia, nomeadamente como subjectividade abstracta no cogito ergo sum de Descartes, na forma de autoconsciência absoluta em Kant. Trata-se da estrutura da auto relação do sujeito cognoscente que se debruça sobre si como sobre um objecto para compreender como uma imagem reflectida num espelho precisamente, numa atitude especulativa.

Na medida em que a teoria da modernidade se oriente pelos conceitos básicos da filosofia da reflexão, pelos conceitos de conhecimento da tomada de consciência e da autoconsciência, torna-se evidente a conexão interna desta teoria com o conceito da razão ou da racionalidade.

segunda-feira, fevereiro 17, 2014

Memórias do meu pai


Manuel Pereira da Silva era extremamente metódico na organização do seu dia-a-dia, geométrico, como os seus desenhos. Todos os dias se levantava às 6h00m da manhã, fazia os seus exercícios de ginástica no quarto, seguia-se uma caminhada de meia hora e às 7h30m estava na escola, uma hora antes de começar as aulas, era o primeiro a chegar, para poder ler as notícias na imprensa e conversar com os amigos e colegas.

Na escola era conhecido como o bata branca, uma vez que usava a bata branca nas suas aulas, bata branca essa que usava também todas as tardes no seu atelier. Como tinha aulas de manhã, todas as tardes ia para o atelier, passando antes pelos cafés da Baixa do Porto, para conversar com os amigos e jogar um pouco de bilhar snooker, e só depois é que ia para o seu atelier, por vezes na companhia dos amigos, eles também artistas, como o escultor Aureliano Lima, o pintor Reis Teixeira, o escultor Fernando Fernandes, o escultor Arlindo Rocha, entre outros.

O Domingo era o único dia em que não ia ao atelier, assim como todo o mês de Agosto, altura de ir para a praia de Salgueiros e depois Miramar, com a família. As noites, após o jantar, eram passadas ou a dormir “a ver televisão” ou os amigos vinham-no buscar a casa para ir para reuniões: ora dos Bombeiros, ora das várias colectividades de Avintes, ora do Partido Socialista, de que era militante, ora da Junta de Freguesia de Avintes, em que chegou a ser Presidente, por três meses, em substituição do então Presidente que tinha adoecido. Sempre recusou desempenhar cargos directivos em qualquer das instituições da sua terra natal, da qual nunca saiu, a não ser num breve período após a sua Licenciatura na Escola Superior de Belas Artes do Porto, em que esteve em para Paris, durante um ano, na companhia de alguns colegas de curso. Nunca sentiu necessidade de viajar, os lugares que frequentava nas suas rotinas diárias e a sua imaginação eram o seu mundo.

Um dos traços da sua personalidade era nunca falar de si, para evitar falar de si inundava as pessoas com perguntas, isto claro está, com todas aquelas pessoas que o abordavam, ora na rua, ora no autocarro, ora onde fosse. Uma outra característica era nunca se queixar de nada, nem do governo! Nunca se queixou dos alunos, dos colegas, dos amigos, da família, da saúde, da vida, da falta de dinheiro, enfim, daquilo que as pessoas normalmente se queixam.

Manuel Pereira da Silva teve sempre a noção que a vida de artista era incompatível com o casamento e ter filhos. Hoje verifico que a sua criação artística teve três fases distintas: a 1ª fase, que vai até aos 40 anos, altura em que se casou e um ano depois nasceu a filha e no ano seguinte o filho, esse período anterior ao casamento é de grande criatividade artística, estagiou a seguir à Licenciatura no atelier do escultor Henrique Moreira, onde trabalhou com Sousa Caldas, Lagoa Henriques e Mário Truta no Monumento aos Heróis das Guerras Peninsulares, da Rotunda da Boavista, no Porto, participou em várias exposições colectivas, no Ateneu Comercial do Porto, com os Independentes, três anos seguidos, nas Caladas da Rainha, em Viana do Castelo, na S.N.B.A (Sociedade Nacional de Belas Artes), na exposição do Mundo Português em Moçambique, teve encomendas do Estado Português: para Angola (Luanda), para a Guiné-Bissau (Bolama), para o Palácio da Justiça do Porto; teve também encomendas da Igreja: para realizar os frescos evocativos da “Paixão de Cristo” na Capela Mor da Igreja de Santa Luzia, em Viana do Castelo, a Nossa Senhora da Areosa, na Igreja da Areosa, no Porto e alguns bustos de padres; a 2ª fase, de constituir família, obrigou-o a ser professor do ensino secundário e a aceitar todo o tipo de encomendas, todo não, porque nunca aceitou fazer santos, algumas comunidades de emigrantes em França e Canadá, sobretudo, fizeram-lhe esse pedido e foi talvez das poucas coisas que ele recusou. Porque para os amigos ele sempre aceitou aceder aos seus pedidos de uma forma generosa, isto é, nunca cobrou um centavo pelo trabalho que fez para todas as instituições de Avintes, inclusivamente para a Igreja paroquial de Avintes, apesar de ser ateu, sempre teve um enorme respeito pelas pessoas e instituições, em várias fases da sua vida, curiosamente, desenhou várias figuras de Cristo, sem ser por encomenda. Neste período fez sobretudo bustos de pessoas de Avintes e de figuras ilustres como: o jornalista Fernando Pessa, o professor José Hermano Saraiva, o major Valentim Loureiro, diversos padres e empresários, além disso, e é outro traço da sua personalidade, fez os bustos de todos os artistas com que trabalhou e de toda a sua família: avô, pai, filhos, netos e o seu próprio busto em pedra. A 3ª fase, surge após se reformar do ensino, aí começou novamente a ter encomendas importantes, como a da Homenagem aos Industriais do Mobiliário, feita pela Câmara Municipal de Paredes, a figura abstracta para uma Estação de Combustíveis na A1, em Gaia, entre outras. Mas é sobretudo no seu atelier, agora de manhã e de tarde, que ele se entrega com paixão às suas criações artísticas. Obras essas que nunca chegaram a ser expostas, a não ser à dois anos atrás a convite da Casa Museu Teixeira Lopes que quiseram fazer uma retrospectiva do seu trabalho e se mostrou uma pequena parte dessas obras. Um outro traço da sua personalidade é o facto de desde a década de 50, isto é, durante cerca de 60 anos, recusou todos os convites para participar em exposições, quer da Casa Museu Teixeira Lopes, que o convidada regularmente, quer do Museu Soares dos Reis, quer de algumas galerias, especialmente do seu colega e amigo Jaime Isidoro.

Apesar de visitar os Museus e Galerias com regularidade, no Porto, a convite de amigos e colegas para as suas exposições, guardou sempre com carinho esses catálogos com dedicatórias desses mesmos artistas.

Não posso deixar de referir a única exposição a que ele alguma vez se referiu que foi quando a Gulbenkian inaugurou a exposição do escultor Henry Moore, em 1981, em Lisboa. Foi um choque para ele, porque ele pensava que aquelas esculturas que ele viu pela primeira vez, tinham semelhanças com as suas, julgava ele ser o primeiro a exprimir-se naquele tipo de linguagem, mulheres reclinadas, figuras humanas com buracos, figuras humanas com formas geométricas. Foi neste momento que ele deixou de se exprimir desta forma, teve um largo período em que só desenhou, até começar a reparar que as folhas de papel deitadas para o chão podiam ser trabalhadas e adquirir formas humanas, ora mulheres, ora homens.

Como nota final, é mais uma preocupação minha, e um desafio a quem me possa estar a ler, faço sempre esta pergunta a todos os meus colegas da escola onde trabalho, que se formaram na Faculdade de Belas Artes, sejam pintores, escultores, arquitetos, designers, que é a seguinte:

Diz-me lá qual é o estilo ou movimento artístico das obras de Manuel Pereira da Silva?

A resposta tem sido muitas vezes um encolher de ombros, um silêncio, um não sei!

Inicialmente ficava dececionado procurava uma melhor resposta, até me aperceber que era mesmo essa a resposta correta. Manuel Pereira da Silva nunca pretendeu representar uma época, um período artístico, um movimento, tal como alguns dos seus colegas e amigos quando criaram o movimento dos “Independentes” nos anos 40, no Porto, na altura eram estudantes da faculdade, grupo esse que pretendia romper com o passado e ao mesmo tempo libertar-se de todos os “ismos”, de todas as correntes e tendências e criar as suas obras com plena liberdade. Constato que é precisamente o que atualmente os artistas pretendem fazer, cada artista representa-se a si mesmo, sem país, sem correntes ou movimentos, cria a sua própria linguagem artística.

Manuel Pereira da Silva teve uma proximidade criativa com alguns colegas e amigos artistas, como Aureliano Lima, Reis Teixeira, Fernando Fernandes e Arlindo Rocha, com quem partilhou o seu atelier, relação essa marcada pela paixão em relação à obra de arte, são aquilo que se poderia chamar uns compagnons de route muito particulares. Refletia o gosto do trabalho em conjunto, da partilha, da troca de ideias e do convívio fora do espaço do atelier nos cafés da Baixa do Porto.

Manuel Pereira da Silva iniciou a sua atividade de escultor no atelier do escultor Henrique Moreira, enquanto estagiário recém-formado pela Escola de Belas Artes do Porto, local esse onde conheceu a minha mãe, sobrinha de Henrique Moreira.

Henrique Moreira era nessa altura, nos anos 40, 50, 60 e 70 o único artista, na cidade do Porto, que vivia exclusivamente da sua atividade artística, todos os outros artistas eram na sua maioria professores do ensino secundário. Dedicou toda uma vida somente à produção escultórica, em Portugal. Após a conclusão da licenciatura passou a trabalhar no atelier do Mestre Teixeira Lopes. A sua obra, figurativa, academista e centrada na representação de figuras ilustres e populares, a maior e mais substancial parte da sua vasta obra foi produzida para a cidade do Porto, sendo por isso justamente considerado "o escultor do Porto".

Manuel Pereira da Silva durante o período que trabalhou no atelier de Henrique Moreira colaborou com ele na realização dos Baixos-relevos do Teatro Rivoli e do Coliseu do Porto, e ainda no “Monumento aos Heróis das Guerras Peninsulares” na Rotunda da Boavista.

Manuel Pereira da Silva tem tendências estéticas abstratas, cujo principal tema é a figura humana e como subtemas: o homem, a mulher, o casal, a família, a maternidade. De um modo geral o processo criativo começa por um ou vários desenhos no papel, folha A4 que depois pode passar para um formato maior de cartolina, em seguida pode passar para a tela, primeiro desenhando a lápis na tela e só depois pintando, recorrendo a vários materiais: guache, aguarela, tinta-da-china, ou a óleo. Por último pode passar a escultura, primeiro feita no barro e depois em gesso em estrutura de alumínio, só passando a bronze se forem encomendas. A finalidade de todos esses estudos elaborados em desenhos, na sua maioria a esferográfica (Bic), podendo ser a lápis ou crayon, é transformá-los em esculturas.

Manuel Pereira da Silva pretendeu apenas desenvolver um projeto pessoal, buscou a singularidade, procurou potenciar toda a humanidade que havia nele sem impor nada a ninguém. Nunca ofereceu como presente as suas obras, à semelhança do que acontecia com muitos dos artistas que conhecia, era comum estes presentearem um aniversariante com uma obra sua.

No entanto tinha um hábito peculiar, pelo Natal enviava todos os anos um postal aos seus amigos com uma poesia da sua autoria. Quando fez oitenta anos, a Junta de Freguesia de Avintes em conjunto com a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, homenagearam-no com a Medalha de Mérito Cultural, num jantar, um dos seus amigos reuniu todos esses postais e surpreendeu toda a gente presente ao expô-los em cartolina nas paredes do Restaurante. Só nesse momento é que a família teve conhecimento desse facto.
A coleção Pereira da Silva tem cerca de 700 desenhos, 280 pinturas e 140 esculturas. Com a divulgação desta coleção pretendo partilhar com o público em geral o espólio deixado por Manuel Pereira da Silva à sua família, perpetuando deste modo no tempo o seu legado.

Pedro Cabrita Reis


Não considero o triângulo galeria / crítico (curador) / colecionador válido. A validação dos artistas faz-se pelos artistas, circuito museológico, curatorial, críticos, etc., e finalmente colecionadores, por esta ordem e não outra.

O colecionismo é uma obsessão, é uma busca incessante de uma construção de um modelo de entendimento do mundo através das obras de arte. É uma espécie de novo mundo, isto é, ele reconstrói um entendimento da história, da sua própria posição no mundo através das obras de arte que vai trazendo para si. O colecionador acaba por ser “compagnon de route” dos artistas, e são acolhidos pelos artistas no seu seio, são respeitados e acabam por se transformar em parte integrante da vida dos artistas e da história de arte.

As galerias têm como preocupação fundamental artistas legitimados historicamente, que são digamos os seus investimentos seguros e ao mesmo tempo à parte disso estão sempre a lançar para a fogueira, coitados que não sabem disso, uma série de artistas novos que são queimados época após época, sem terem pensado antes nisso e deixam-se ir no canto da sereia das galerias, na expectativa de terem uma oportunidade para alcançar a fama, há uma logica de marketing de produtos novos, os galeristas sentam-se à porta das escadas das Belas Artes à espera deles, fazem uma exposição e mandam-nos para casa outra vez, à espera da próxima.

As feiras de arte e as bienais e o próprio sistema está preparado para isso, para uma rapidíssima rotação de nomes no sentido de alimentar um apetite perverso e voraz de novidade por parte do mercado de arte, que se destina a criar mais-valia, isso é economia, não tem nada a ver com arte.

Julião Sarmento


Nunca uma galeria portuguesa conseguirá meter um artista português na Gagosian.

Portugal tem zero poder, como é que uma galeria que faz parte desse status português pode ter algum poder?

Eu acho que não existe colecionismo de arte em Portugal. O Joe Berardo é um investidor; o Francisco Capelo fez-lhe aquela coleção no tempo das “vacas gordas”, quando as coisas estavam baratíssimas.

As feiras de arte substituíram os museus, no entanto elas são feiras não são exposições. As principais feiras de arte hoje são a Basel, Basel Miami e Freeze Nova Iorque. Em Portugal não há feiras de arte.

Hoje em dia quem quiser fazer uma exposição em Portugal é um investimento a fundo perdido, não tenho retorno financeiro.

terça-feira, fevereiro 11, 2014

Paulo Cunha e Silva


Desde 1990 venho a desenvolver na Fundação de Serralves, um pouco sistematicamente, em torno das grandes questões do pensamento contemporâneo mas em que há sempre um pensamento artístico por trás.
Uma exposição é sobretudo um problema, e é sobretudo a vontade primeira de o enunciar e depois de o tentar resolver, não fechá-lo mas até complexifica-lo e dar-lhe outras oportunidades que o problema antes de ser formulado não tinha. Não parto para uma exposição com uma lista de artistas para enfiar num lugar, parto com a mente aberta. Naturalmente que tudo é muito contingente porque há afinidades, proximidades, que de certa forma condicionam a curadoria. Não há uma curadoria branca, genérica, pura, é sempre uma curadoria feita de gostos e de conhecimentos e de afinidades com artistas com quem se convive e trabalha, e portanto essa descontaminação nunca é possível.
Os artistas que têm mais sucesso em Portugal, pelo menos aparentemente, não tem galerias em Portugal, como é o caso de Joana Vasconcelos ou de Pedro Cabrita Reis. O Julião Sarmento tem um galerista português, a Cristina Guerra e depois tem galerias internacionais.
A figura de galerista é um pouco bizarra, muitas vezes porque o colecionador privado tenta sempre esquivar-se a pagar uma percentagem substancial do valor da obra, 30% a 40%, e procura comprar diretamente ao artista. A relação entre o artista e o galerista é muito complicada, é uma relação quase conjugal, e como tal a dimensão da traição está implícita. A história entre galeristas e artistas portugueses é feita desses pequenas traições.
A competição é cada vez maior, os artistas ficam desesperados para obter um galerista, os galeristas promovem os artistas mas quando estes ganham alguma notoriedade saltam para outro galerista que os projete de uma forma mais eficaz e portanto essas relações são relações de interesse.
Devido à crise estamos a assistir à constituição de uma espécie de sindicatos de artistas, associações de artistas que se tentam proteger dessas figuras malévolas de alguns galeristas, que neste caso ainda vão sugar mais o sangue pobre dos artistas.
Das conversas que eu tenho tido com galeristas importantes, o mercado nacional está completamente parado, e internacional condicionado em relação aos artistas portugueses.
O papel da crítica de arte tem-se esbatido um pouco e tem sido ocupado pela figura do curador, o artista sente-se mais próximo do curador do que do crítico, porque o curador é aquele que lhe pode colocar as obras nas exposições, e o curador é também um crítico, também tem um discurso sobre as obras.
Verificamos situações de grande promiscuidade entre a crítica e situações mais pessoais e privadas dos críticos que deviam ter alguma pureza, alguma assepsia. A independência da crítica é uma coisa que está muito posta em causa.
Eu penso que no futuro haverá duas vertentes a do curador-crítico e a do curador-produtor.
O Instituto das Artes resulta da fusão do Instituto das Artes Performativas e do Instituto de Arte Contemporânea, não havia concursos, tocava-se à campainha e as pessoas que eram amigas dos responsáveis tinham mais facilidade em fazer as suas exposições ou entrarem na agenda dos responsáveis do que as outras que não eram. Quando eu fui presidente do Instituto das Artes passei a instituir os apoios à programação às artes em 2003 e 2005.
A internacionalização está muito associada à marca de cada país, e Portugal é um país que tem uma marca muito débil, e portanto a capacidade de o país arrastar os seus artistas está muito condicionada, muito condenada, não há estratégias sistemáticas
Joana Vasconcelos é uma artista popular, criou uma grande empatia com o público, ou seja, ela criou um curto-circuito entre o público e as suas obras que não é criado pelo sistema, não há críticos, não há curadores, não há galerias, criou uma relação direta. Porque criou um mecanismo de dessubjetivação muito rápido, as suas obras são um pouco intersubjetivas, e são obras de empatia imediata, empatia fácil.

Bernardo Pinto de Almeida


Bernardo Pinto de Almeida esteve sempre envolvido em coleções institucionais. Estive ligado à coleção de Serralves na comissão de compras entre 85 e 92, depois de 92 a 95 estive ligado ao grupo que organizou a coleção do MEIAC em Badajoz, de 1996 a 2002 à Fundação Cupertino de Miranda. Como crítico estive ligado à atividade colecionista portuguesa e à sua transformação ao longo de 25 anos.
Como curador de coleções estive ligado à Fundação de Serralves, numa comissão que incluiu o Fernando Pernes, o Alexandre Melo e o arquiteto Nuno de Almeida, o programa era de dotar o futuro museu de arte moderna de uma coleção consistente do ponto de vista da arte moderna, sem nunca perder de vista a arte contemporânea portuguesa a partir da década de 60 até à década de 80.
Temos vários museus de arte contemporânea que não cumprem essa função, como Serralves e Chiado. O problema é que se comportam como centros de arte e não como museus, com a exceção da Gulbenkian, que constitui uma coleção modernista. Por outro, o Estado em Portugal não vigia como deveria práticas culturais dos museus a quem entrega o dinheiro, se estão a cumprir os estatutos, não temos uma comissão que analise isso, como há em Inglaterra, com o ICA (Institute of Contemporary Art), que vigia de facto, existe também em Espanha, França e E.U.A..
Por exemplo, numa certa altura levantou-se suspeitas das relações entre o Museu do Chiado e a Fundação Elypse, pela simples razão que o diretor do Chiado era também curador da Fundação Elypse e muitos artistas que tinham exposto no Chiado tinham exposto na Fundação Elypse.
O problema de Portugal é que de 1000 colecionadores potenciais, talvez só 50 ou menos tenham uma pequena ideia do que existe nas coleções dos museus e não estão suficientemente esclarecidos dos processos que conduziram a isso. Nas instituições portuguesas ainda estamos no plano do gosto, o museu tal tem um diretor que gosta de croissant com fiambre, o outro museu tem um que só gosta de água do luso, e depois os artistas que não estão nem num nem noutro grupo nunca podem ver os seus trabalhos expostos.
A galeria Nasoni teve um impacto muito grande no mercado da arte ao inflacionar os preços, porque procurava criar uma dinâmica próxima da internacional. E desde cedo eu afastei-me por não concordar com isso. Quando a galeria começou a criar reputação, visibilidade e dinheiro, alguns dos sócios fundadores gananciosos deixaram cair o barco e aproveitam as mais-valias para ir embora. Primeiro ponto, a sustentação económica desapareceu; segundo problema: a Nasoni não tinha projeto cultural sério, muitos dos artistas com quem trabalhou foi um mero acaso, uns eram bons, outros eram maus, outros eram assim assim. Houve muitos artistas que entraram e saíram e os que ficaram não foram os melhores nem os mais interessantes. Portanto, com tantas perdas a Nasoni caiu, tendo criado a ilusão que havia um mercado de arte. O mercado é cego, vai para onde julga dá mais.
O crítico de arte é um agente que funciona do lado do artista, que o proteja do mau mercado, tem o papel de produzir um pensamento construído sobre aquilo que a arte ensina, que compreende o idioma da arte e o traduz para toda a gente.  
 Fernando Pessoa, além de um grande poeta é um grande crítico que estava constantemente a desafiar a criação que se faz à sua volta. Em Portugal há muito poucos críticos que o façam atualmente. Hoje há uma regressão nesse campo, os jornais fecharam-se. Há por outro lado uma disseminação de opiniões críticas na internet, mas a que muito pouca gente chega porque são grupais, tendem para o tribalismo. Eu julgo ter feito parte da última geração crítica que existiu em Portugal no sentido que havia várias vozes que pensavam diferentemente e que às vezes se digladiavam e discutiam entre si. Essa geração foi absorvida quase toda pelas instituições, e portanto não houve espaço público que as acolhesse, como noutros países.
Em Espanha e França isso é fortíssimo, os jornais querem jovens estagiários que digam umas coisas sobre arte, neste momento também não há revistas de arte em Portugal, as que havia fecharam.

Alexandre Melo


Alexandre Melo é curador da coleção do Banco Privado e da Fundação Elypse. A coleção do Banco Privado foi uma coleção iniciada há mais de meia dúzia de anos e que inicialmente era uma coleção só de arte portuguesa contemporânea e que estava a ser reunida no âmbito do protocolo entre o Banco Privado e a Fundação de Serralves, segundo a qual as obras da coleção do Banco Privado seriam depositadas em Serralves, o que fazia com que critérios de aquisição e as aquisições fossem decididas em colaboração por mim enquanto responsável pela coleção do Banco Privado e pelo diretor artístico de Serralves, na época Vicente Tolodi, já na altura com a colaboração de João Fernandes, e depois com João Fernandes.
Ao fim de 3 ou 4 anos de trabalho fez-se uma exposição da coleção do Banco em Serralves, que ocupou todo o espaço do museu, só de arte portuguesa. Posteriormente o Dr. João Rendeiro, presidente do Banco, decidiu tornar a coleção aberta à arte internacional, continuando a colaboração com Serralves. Com a evolução da coleção já com uma dimensão internacional o Dr. João Rendeiro teve a ideia de criar a Fundação Elypse, dirigida por ele, com o contributo de outras pessoas de Portugal, Brasil e Espanha, é uma fundação internacional com sede na Holanda, embora o centro matriz esteja em Portugal, com o objetivo mais ambicioso de construir uma coleção de arte contemporânea internacional que se torne uma coleção de referência para o período de viragem do século, fim do séc. XX, princípio do séc. XXI. Há 3 curadores e depois há um painel de consultores com quem nós nos reunimos formalmente uma ou duas vezes por ano.
A coleção tem três componentes, tem os artistas que nós consideramos históricos, com obras de final dos anos 70, primeira metade dos anos 80, depois há alguns artistas que constituem o núcleo central da coleção que tiveram uma afirmação mais forte, mais original no panorama mundial nos últimos 10, 15 anos, e depois temos os artistas emergentes, que se começou a ouvir falar nos últimos 5, 6 anos.
Aquela ideia do critério de arte como o papa que constrói e destrói uma reputação com um texto, penso que já não existe. Hoje a maioria dos textos que se publicam sobre artes plásticas não são textos de crítica, são textos noticiosos, reportagens, entrevistas, notas jornalísticas e da valorização das obras depende dum discurso que é mais jornalístico, do que propriamente crítico no sentido artístico.
Toda a situação do colecionismo ao longo do séc. XX é miserável. Portugal chegou ao fim do séc. XX sem ter nada de nada, é um escândalo, é a demonstração do absoluto subdesenvolvimento cultural de Portugal ao longo de todo o séc. XX.
A coleção Berardo é uma coleção que vem modicar de forma significativa a referência do colecionismo e da arte em Portugal e o contrato de comodato (empréstimo ao Estado) por 10 anos é equilibrado.  A coleção Berardo foi criada segundo critérios históricos englobando blocos cronológicos à semelhança de um compêndio ou de uma história de arte, valoriza perspetiva didática e pedagógica.  
Sou atualmente assessor cultural de José Sócrates sem poder de decisão nem de orçamento.
O mercado da arte hoje passa essencialmente por Londres e Nova Iorque embora a Alemanha e a França ainda tenham algum peso, mas há centros de arte a emergir por todo o lado.
É frequente haver exposições internacionais em que há tantos artistas portugueses como espanhóis, nas mais novas gerações de artistas.

terça-feira, fevereiro 04, 2014

João Fernandes


João Fernandes refere que em Portugal mais do que colecionadores de arte tem havido compradores de arte. Tradição de colecionismo em Portugal.
È curiosos pensar como em Portugal, nas coleções portuguesas e nas casas portuguesas as artes decorativas são privilegiadas em detrimento da pintura ou escultura. Isto acaba por cair numa cadeia que não estimula os artistas para se desenvolverem, para criarem obras.
Portugal continua a ter artistas e sempre teve. No séc. XX, apesar de as coisas serem extremamente difíceis na história de Portugal, temos gerações de artistas muito interessantes quer no primeiro modernismo, quer com a geração de Amadeu de Sousa Cardoso, do Eduardo Viana, do Almada, que foram contemporâneos do deu tempo, praticamente desde os anos 60 Portugal tem produzido gerações sucessivas de artistas onde encontramos sempre artistas muito interessantes e que muitas vezes não são conhecidos fora de Portugal em função do isolamento do país, da falta de estruturas e da falta de colecionadores também.
A galeria é mais rica por aquilo que compra do que por aquilo que vende.
As coleções do Sr. Abreu que no Porto terá sido uma coleção internacional de grande dimensão, com artistas portugueses e internacionais, e que vendeu a sua coleção a Jorge de Brito, em leilões internacionais e a galerias internacionais poderosas que vieram a Portugal nos anos 70, porque ele estava assustado com o contexto económico e político da época.
Às vezes certas leis do mercado não existem porque o preço da obra de arte é definido duma forma aleatória entre o artista e a galeria, independentemente da compra e venda.
Acho que ao longo dos últimos 5, 6 anos há uma nova geração de pessoas a interessar-se por arte, o aparecimento dessa nova geração corresponde também a um novo fenómeno, a globalização no mercado da arte contemporânea, a circulação acelerada por todo o mundo de colecionadores, o novo fenómeno das feiras de arte, o novo papel que as galerias têm, tudo isso acabou por chegar a Portugal.
São os colecionadores que alimentam o mercado e que por sua vez permitem aos artistas trabalhar e sobreviver.
Portugal tem sido um país muito instável porque tem muito poucas instituições a trabalhar com arte, tem um sistema de circulação muito reduzido para um artista em termos de exposições dentro do país. È muito difícil para um artista português, embora seja mais fácil que noutros tempos, circular fora do país, e na verdade acho que as galerias não têm constituído colecionadores.
Em relação à programação das galerias nota-se por vezes opções que não entendo. Em Serralves efetuamos mais de 200 exposições e fora de Serralves desde que o museu abriu, não passaram de meia dúzia os artistas estrangeiros que nós expusemos, e foram centenas, que terão tido exposições em galerias em Portugal.
Os museus são instituições de referência, ver as programações dos museus, ver os currículos dos artistas, há várias formas de construir o conhecimento, eu não apresento artistas em primeira mão a não ser que seja um concurso de artistas. As instituições servem de referência e de orientação para os colecionadores. Esta nova geração de colecionadores por vezes não compram em Portugal, ou não compra artistas portugueses, porque se sentem inseguros das opções que lhes são oferecidas. No entanto vão comprar à ARCO, a Londres ou Nova Iorque porque se sentem seguros de aquilo quem uma galeria em Londres ou em Nova Iorque lhes oferece.
O mundo da arte hoje é uma constelação muito prolífera de artistas e se nós formos ver os artistas que estão na moda numa determinada altura podem deixar de o estar noutra, o mundo da arte é um fenómeno muito complexo porque de certo modo se industrializou e nesse aspeto tudo parece mais confuso, porque é tudo de muito maior dimensão, há milhares de artistas, no mundo inteiro, cada Bienal de Veneza apresenta-nos mais de 200, 300, ou 400 artistas.
Esta industrialização da arte começou a surgir à 20 anos. Hoje há milhares de pessoas a viver da arte, a viver de vender arte, a viver de comprar arte, a viver de apresentar arte, a viver de escrever sobre arte. Se calhar os artistas são uma minoria hoje no mundo da arte, enquanto à 30 ou 40 anos não eram. Isto faz com que haja arte comercial e arte não comercial, arte que se vende e arte que não se vende, isto não quer dizer que uma seja boa e a outra má.
A arte é em princípio aquilo que os artistas fazem. O que carateriza a obra de arte é que não há regras em relação a estilos, géneros ou suportes, um verdadeiro colecionador não compra obras de arte só para decorar a casa, diz-se normalmente que uma coleção começa quando acaba a decoração da casa.
A programação do Museu de Serralves procurou constituir um núcleo que representasse as décadas de 60 e 70 de arte contemporânea, localizamos nessas datas o início da contemporaneidade artística curiosamente essa nossa opção foi acompanhada por um reconhecimento logo a seguir, depois de nós termos feito isso e aberto o museu, as grandes leiloeiras como a Christie’s, a Sotheby’s e a Phillips, começaram a criar departamentos específicos de arte contemporânea acompanhando a mesma datação.
Nas décadas de 60 e 70 assiste-se a uma mudança de paradigma em relação à obra de arte, nós encontramos toda uma sociedade que se discute e discute os seus limites, as suas características, as suas estruturas, as suas formas de organização, etc. A maior rutura do séc. XX na obra de arte, nos anos 10, 20, quando apareceram o construtivismo soviético, o dadaísmo, o surrealismo, o futurismo, as grandes vanguardas artísticas do início do século vão ser revistas por esta segunda geração que não as vai citar, pelo contrário, vai continuá-las de uma certa maneira e refundir um forma de fazer arte no sentido em que Richard Serra referia de arte sem limites, esta noção radical que põe em causa o objeto de arte, que desmaterializa o objeto de arte, que deixa de o transformar em mercadoria, que vai contra a sua apresentação e conservação em museus, que põe em causa o museu, que os artistas na altura fecharam em várias manifestações e greves em vários países do mundo, vai obrigar a transformar os museus e transforma o mundo da arte. Esta é uma grande revolução. E sem dúvida era importante para nós num país que tinha perdido a contemporaneidade artística ao longo do séc. XX, assumir um museu de arte contemporânea. Não teríamos nenhum problema em assumir um museu de arte moderna, mas com o orçamento que tínhamos disponível isso seria completamente impossível e por outro lado achamos que é prioritário um museu de arte contemporânea. Nós fizemos isso na década de 90, começamos a fazer esta coleção a partir de 97.
A exposição de abertura do Museu foi uma exposição-manifesto da sua nova coleção, reunindo obras de artistas portugueses e estrangeiros representativas do período histórico que a abrange e fundamenta. Com o título "Circa 68”, de 08 JUN 1999 a 29 AGO 1999, esta exposição ocupou simultaneamente o Museu e a Casa, apresentando não só as obras da coleção como igualmente outras obras que a permitem contextualizar. Constituiu, deste modo, uma exposição sobre a coleção, à volta da coleção, evidenciando o contexto artístico e cultural das linguagens experimentais que se transformaram num símbolo cultural do mundo ocidental o ano 1968. Apresentamos um conjunto de 600 obras produzidas entre 65 e 75, compramos ao longo de sete anos 80% destas obras, desde 97 até hoje adquirimos cerca de 1000 obras, e depois temos várias coleções em depósito cá, desde coleções institucionais como a Fundação Luso Americana, a coleção do Ministério da Cultura e várias coleções particulares.
Mas para nós foi prioritário durante os primeiros anos do museu eliminar algo que para nós era muito negativo na sociedade portuguesa. Se Portugal já não tinha Matisse, Picasso, Brancusi, Giacometti, Man Ray, Portugal tinha falhado no séc. XX de uma certa maneira, ao menos que nós conseguíssemos ter Richard Serra, Oldenburg, Polke, isto é, nomes fundamentais da contemporaneidade artística, ao mesmo tempo que procuramos representar um contexto português.
É neste período que existe uma mudança de paradigma da arte portuguesa, é a partir de finais da década de 50 que um conjunto de artistas portugueses vai para o estrangeiro graças às bolsas da Fundação Gulbenkian e que também os artistas procuram informação contra o regime, contra a censura, contra a falta de liberdade. E digamos discussões obsoletas que se passavam na arte portuguesa começam a ser transgredidas por uma nova geração de artistas, e a geração de Lurdes de Castro, René Bertholo, Helena Almeida, Ângelo de Sousa, Ana Haterly, Ernesto Melo e Castro, Ana Vieira, em que nós temos tantos artistas que na verdade configuram uma geração nova que é contemporânea do seu tempo.
Na verdade Portugal tem uma geração nova que é contemporânea do seu tempo com o modernismo, com o Amadeu de Sousa Cardoso, os Parisienses da 1ª geração, e tem depois uma 2ª geração apenas nos anos 60, fenómenos de contemporaneidade artística no intervalo destes dois períodos são muito raros e quase só ocasionais e pessoais. É o caso de Fernando Lanhas e de Nadir Afonso.
Por outro lado, era para nós muito importante olhar para o contexto internacional a partir da arte portuguesa e olhar para a arte portuguesa a partir do contexto internacional, porque há zonas de interseção e há obras de artistas estrangeiros que nós compramos em função de artistas portugueses que nós temos na coleção, e há obras de artistas de arte de artistas portugueses que nós compramos em função de artistas estrangeiros que temos na coleção, procurando assim diálogos, confrontos, etc.  
Enquanto nos anos 60 e 70 há um período que de algum modo abrange todo um conjunto de núcleos de artistas que funcionam e trabalham em vários países do mundo, seja na Alemanha, seja na Itália, com arte povera, seja nos E.U.A. com arte conceptual e pós-minimal, seja em França.
A partir dos anos 80 os artistas não existem enquanto grupos, movimentos ou em linguagens, cada artista é um conceito de arte, é uma linguagem, deixou de haver um período.
Nós queremos ter obras emblemáticas dos artistas mas sobretudo obras que surpreendam. Aquilo que faz dum artista uma etiqueta é a sua receção, nós queremos ser agentes de uma receção e por isso fazemos a nossa pesquisa, o nosso estudo. Em relação à geração de 80 e 90 nós estamos a trabalhar por constelações de artistas procurando nome a nome, tais como Thomas Schutte, Luc Tuymans, José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis.
Não temos uma exposição permanente como o Museu Soares dos Reis, a nossa coleção é jovem e só a expomos uma a duas vezes por ano no museu, ela circula pelo país noutros museus, neste momento temos 14 exposições fora.
Quando procuro um artista, procuro perceber qual é a sua linguagem, o que é que ele acrescenta à arte que eu conheço e quais são os problemas que ele coloca à arte. Mais do que conhecer, ser surpreendido por aquilo que não conheço. O artista constrói e cria problemas a si próprio, há um confronto do artista consigo mesmo e é esse confronto que depois transparece na obra.
Hoje há jovens artistas que começaram a trabalhar há 5 anos e que já expõe em Nova Iorque, em Londres, isso seria inimaginável há 20 anos atrás. Hoje há uma grande curiosidade no mundo em relação a Portugal.
Para mim o museu ideal seria um misto de laboratório, um espaço de trabalho e experimentação e ao mesmo tempo biblioteca para estudiosos, esse museu hoje não existe.

segunda-feira, janeiro 27, 2014

Cristina Guerra


Cristina Guerra trabalha com arte contemporânea desde 1983-84. Abriu a Galeria Cristina Guerra em 2001, sozinha. Antes trabalhava com a Filomena Soares, de 97 a 99. E antes disso fiz o Centro Cultural que deu origem ao Centro Cultural de Cascais. Neste momento tenho artistas a sair para fora a fazerem museus. Quando começaram a trabalhar comigo as obras custavam 500€ e agora custam 20.000€. Mas demora muitíssimo tempo, são 10 anos. As galerias têm a cotação real dos artistas, o preço real de um artista está nas galerias. Para mim o sistema triangular da galeria, do crítico / curador e do colecionador continua a ser válido e essencial. Um curador teoriza a obra que o artista faz e portanto há uma melhor compreensão da obra por parte do colecionador.
Em 97 é que se começou, porque as pessoas só queriam telas e começaram a comprar papeis. Hoje em dia o papel pode ser tão caro como uma tela, interessa-lhes a obra em si.
Os colecionadores Americanos, Ingleses e um pouco os Franceses se gostam de uma obra compram. Os Suíços e Alemães querem saber o que é que o artista fez, estudam a obra e só depois é que compram
A partir de 2004 já toda a gente está na internet e é mais fácil saber o que os artistas estão a fazer.
Cristina Guerra refere que hoje em dia temos um problema, não há um museu com uma exposição permanente de artistas portugueses, só há exposições temporárias e vê-se muito pouco artistas portugueses. Há muitos colecionadores estrangeiros que me perguntam onde podem ver arte portuguesa e eu tenho de os levar às outras galerias. No Museu Reina Sofia há um andar que se vê só arte espanhola. Hoje em dia não se vê os artistas de meia carreira ou se vê os mais velhos ou os muitos novos. O que acontecia era que os diretores dos museus primavam mais pelas coisas estrangeiras do que pelas portuguesas, eu acho que deve ser o meio-termo, que é para se perceber, se contextualizar. O Museu de Serralves está à quatro anos para comprar. Eu costumo dizer que “agora somos um centro cultural”. Há muita gente que vem ver mas não compra. Passos Coelho foi a Serralves a primeira vez na vida à pouco tempo. Isto é incrível, não é? O atual secretário de estado é uma pessoa que percebe, pelo menos que conhece de tudo. Mas o tipo que está a dirigir o Instituto das Artes não percebe absolutamente nada. O Mário Soares, o António Guterres e o Durão Barroso eram pessoas cultas, interessadas que visitavam as galerias.
Cristina Guerra refere que, em 2007, a estratégia da galeria com vista a uma maior visibilidade internacional dos nossos artistas no mercado internacional passou por colocar alguns artistas com quem trabalhava e que tinha exibido para coleções internacionais em leilões da Christie’s e da Philips: “o que acontecia é que tinha de colocar uma obra em leilão e depois teria que ser eu, através de outras pessoas, que as comprava.” Como não temos mercado muitos colecionadores vêm os catálogos das leiloeiras, sobretudo internacionais. Há muita gente, mesmo em Portugal, que estuda arte, mesmo algumas galerias, através das leiloeiras, para verem a evolução da subida do preço do artista.
Cristina Guerra considera que está a haver uma evolução do colecionismo privado em Portugal no sentido de uma maior responsabilidade social e cultural. O interesse deste novo colecionismo é que a arte portuguesa se internacionalize e por isso oferecem obras de artistas portugueses para algumas instituições estrangeiras: “neste momento à colecionadores que compram agora obras, para estarem na Tate. Em que não vai buscar em mecenato nem nada. É uma coisa que é pratica corrente em quase todos os países, inclusivamente o Brasil, e que em Portugal não existe.”    
Cita várias coleções de referência, como a recente coleção da Fundação Miguel Rios, a coleção Elypse está fechada, tem poucos artistas portugueses, é muito mainstream, há uma outra coleção, mas compra poucos portugueses, ele é brasileiro, mas a ideia é mais América do Sul e Médio Oriente que é a do Luís Augusto Teixeira de Freitas, a coleção Cachola é a única exclusivamente de artistas portugueses, sendo um privado que não é banqueiro, nem empresário, é um assalariado, consegue fazer uma coleção que toda agente respeita, e algumas coleções institucionais, a coleção BES Arte, a EDP, e outras que fizeram coleções mas já deixaram de comprar há muito tempo, casos da PT e da Culturgest. “Eu não consigo perceber a falta de interesse dos meios institucionais, ou governamentais, ou estatais, por esta área da arte contemporânea. Porque economicamente são bens transacionáveis. Como é que não há mais apoio, nas aquisições fazer alguma coisa pela cultura, já que o turismo cultural existe e está cada vez mais implantado.”
O que acontece é que normalmente vem uma crise e os colecionadores desaparecem todos e voltam a aparecer outros, estamos sempre num recomeço.
Cristina Guerra refere que tem 70m quadrados em Basileia, e custa-lhe toda a operação 90.000 €, o que é um disparate. A maioria dos artistas que expõe são portugueses, custa mais ou menos 10.000€. Menos o desconto de menos de metade, que é o que ela ganha, normalmente tem prejuízo. A não ser que venda um artista estrangeiro, são peças de 80.000€, 90.000€, 100.000€, 200.000€. Olhando para o lado financeiro e económico eu já devia ter desistido à muito tempo. As galerias portuguesas normalmente vão às feiras de arte da: ARCO, Art Basel, Art Basel Miami, Art Forum Berlim, FIAC, Vienna Art Fair, Art Rio e Xangai. Eu entrei em Miami em 2002 e em 2003. Os colecionadores vão todos às mesmas feiras. Os nossos governantes se forem à ARCO já é muito bom, mas alguns nem isso fazem. Quando eu estava na APGA com Pedro Cera, o Estado apoiava para 2 feiras internacionais com um stand mínimo. No primeiro ano, isto à quatro anos atrás, houve 200.000€, agora já foi reduzido para 100.000€. Aparece umas ajudas fugazes como esta da Joana Vasconcelos, que eu acho completamente idiota.

terça-feira, janeiro 21, 2014

Pedro Oliveira


Pedro Oliveira refere que embrionariamente o mercado da arte começa nos anos 80, em Portugal. A partir de 79-80, quando a situação política começa a acalmar, começam a abrir algumas galerias, timidamente. Foi aí que apareceu a Roma e Pavia por intermédio do meu irmão. Depois em 85 tomei conta da galeria. No início servi-me de alguns amigos, especialmente de Jaime Isidoro, comecei com os artistas da minha geração. Fazia um bocado de mercado / dealing: ia fazendo exposições, pouco a pouco, em tendências novas, mas como tinha que ganhar dinheiro fazia mercado paralelo, por intermédio de amigos, que me arranjavam obras mais caras, como era o caso de Jaime Isidoro. A partir de 90 isto começou a crescer, a explodir e apareceram muitos críticos de arte. A partir daí resolvi mudar de instalações e atirar-me para uma coisa maior, e vim para aqui. Na altura era a maior galeria de Portugal, e comecei a avançar para o mercado internacional e a fazer programação mais internacional. Aventurei-me daqui para fora, a arranjar contactos. Esse foi o meu período de ouro, essa década de 1990 a 2000. Ganhei bastante dinheiro, as coisas correram-me muito bem, trouxe cá nomes de artistas muito interessantes da arte internacional. Apesar de tudo ainda mantive um certo ritmo interessante, até meados de 2000. Foi altura da entrada dos artistas Brasileiros, foi a descoberta do mercado brasileiro. Agora tem 25 artistas e se fizer 6 exposições por ano eles têm de esperar 3 anos, para dar a volta.

Pedro Oliveira é defensor de que as galerias devem estar em rede e não se importa de partilhar colecionadores com outras galerias.

Pedro Oliveira considera que poderia ser interessante haver casas de leilões especializadas em arte contemporânea em Portugal, como a Christie’s ou a Sotheby’s, e que esse facto não iria afetar as galerias: “poderia não afetar tanto se houvesse um historial de casas de leilões boas a nível de arte contemporânea em Portugal, o que nunca houve.”

Pedro Oliveira considera que os leilões em Portugal são uma misturada: é antiguidades com pratas, com arte contemporânea pelo meio. A arte contemporânea até aparece nos leilões mas coisas desgarradas. E tudo o que aparece tem um preço muito baixo, o que é muito mau. A única leiloeira que estava disposta a arriscar em fazer um ou dois leilões de arte contemporânea em Portugal, foi a S. Domingos, no Porto, fizeram-me essa proposta para eu a apresentar à APGA (Associação Portuguesa de Galerias de Arte), só que a APGA não quis arriscar.

Pedro Oliveira refere que havia muito dinheiro no Porto nos anos 80, havia muitos colecionadores, sobretudo na cintura industrial industria têxtil e calçado. Tive também muitos contactos de Espanha, especialmente galegos que vinham aqui ao Porto. A partir de 2000 o Porto entrou em declínio, Lisboa começou a crescer e começaram a aparecer as grandes coleções em Lisboa. As sedes das grandes empresas, algumas começaram a fazer coleções bem estruturadas, profissionais, com advisers, como a Culturgest, a EDP e os Bancos (BES Photo), mas sobretudo de particulares como a sociedade de advogados PLMJ, o Saragga Leal que já era colecionador conseguiu convencer os sócios da PMLJ a formar uma coleção corporativa, e focalizaram-se em gente muito nova, foram ajudados pelo Manuel Amado, que é um crítico de arte e que na altura foi o adviser deles. Não há um artista que comece a ficar famoso que eles não comprem. Começaram também a abrir muitas galerias em Lisboa. Apesar de estar no Porto, vendia muito para Lisboa expunha alguns artistas meus em Lisboa por intermédio de algumas galerias ou instituições, de 2001 a 2008. Depois veio a falência do Banco Lehman Brother e estragou tudo!

Pedro Oliveira refere que as feiras de arte são importantes. Para divulgar, para mostrar e para criar contactos. Cheguei a vender tudo o que tinha, a esvaziar o stand, na Art Basel Suíça, que é o Rolls Royce das feiras de arte. Só que neste momento os portugueses não têm dinheiro para fazer feiras de arte. Não há apoios por parte do Estado e as galerias têm como objetivo prioritário, dado o momento atual da crise, a sobrevivência. Se eu estiver a vender uma peça portuguesa no estrangeiro, estou a exportar uma mercadoria com uma conotação especial ligada à cultura, que é uma embaixada importante, é uma mais-valia para o nível da imagem do país.