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quarta-feira, dezembro 08, 2010

Maria Helena Vieira da Silva

Maria Helena Vieira da Silva
Porto, 1962
Têmpera s/ papel


Maria Helena Vieira da Silva (Lisboa, 13 de Junho de 1908 — Paris, 6 de Março de 1992) foi uma pintora portuguesa, naturalizada francesa em 1956.

Era filha do embaixador Marcos Vieira da Silva, e neta de José Joaquim da Silva Graça, fundador do jornal O Século, tendo vivido na casa do avô, em Lisboa.

Despertou cedo para a pintura. Aos onze anos ingressou na Academia de Belas-Artes, em Lisboa, onde estudou desenho e pintura. Motivada também pela escultura, estudou Anatomia na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Em 1928 acompanhada pela mãe, vai viver para Paris.

Em Paris inscreve-se na Académie de la Grande Chaumière, onde frequenta o curso de escultura de Bourdelle; estudou com Fernand Léger, e trabalhou com Henri de Waroquier (1881-1970) e Charles Dufresne, é aqui que conhece o pintor Arpad Szenes, húngaro, com quem se casou em 1930. Nesse ano, participa no 1º Salão dos Independentes, na Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa, aquela que é a sua primeira exposição colectiva em Portugal.

Em Janeiro de 1936, no seu atelier de Lisboa, Vieira da Silva e Arpad Szenes, expõem as suas pinturas abstractas.

Realizou inúmeras viagens à América Latina para participar de exposições, como em 1946 no Instituto de Arquitectos do Brasil (IAB).

Devido ao facto de seu marido ser judeu e de ela ter perdido a nacionalidade portuguesa, eram oficialmente apátridas. Então, o casal decidiu residir por um longo tempo no Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial e no período pós-guerra. No Brasil, entraram em contacto com importantes artistas locais, como Carlos Scliar e Djanira. Ambos exerceram grande influência na arte brasileira, especialmente entre os modernistas.

Vieira da Silva foi autora de uma série de ilustrações para crianças que constituem uma surpresa no conjunto da sua obra. Kô et Kô, les deux esquimaux, é o título de uma história para crianças inventada por ela em 1933. Não se sentindo capaz de a escrever, a pintora entregou essa tarefa ao seu amigo Pierre Guéguen e assumiu o papel de ilustradora, executando uma série de guaches.

A partir de 1948 o Estado Francês começa a adquirir as suas pinturas e em 1956 tanto ela como o marido obtêm a nacionalidade francesa. Em 1960 o Governo Francês atribui-lhe uma primeira condecoração, em 1966 é a primeira mulher a receber o Grand Prix National des Arts e em 1979 torna-se cavaleira da Legião de Honra francesa.

Participou na Europália, em 1992, e veio a morrer nesse ano.

Para honrar a memória do casal de pintores, foi fundada em Portugal a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, sediada em Lisboa

As pinturas de Vieira da Silva são lentas na execução. Não uma lentidão exclusiva da matéria e da composição, erguida em pequenas pinceladas, por acumulação, na demora da espera que a tinta seque ou que determinada solução ganhe corpo, consistência; um tempo de regressos em que cada solução parece inacabada, sendo de novo continuada com persistência. Mas sobretudo uma lentidão dos dias através do quadro, das estadas no ateliê em observação abandonando trabalhos por anos e regressando a eles mais tarde, deixando assentar o encontro entre o que se gera mentalmente e o que ganha forma no quadro, como referiu em entrevista, confessando levar muito tempo a pintar. Não há desenhos prévios sobre a tela, os esboços sucessivamente feitos a ganhar a mão raramente têm utilização posterior.

Conferem destreza, agilizam ideias, são outra etapa do pintar, Desenho e pintura tornados um só quando, nas primeiras pinturas de início da década de 1930, recém-chegada a Paris, onde estudou, Vieira da Silva simplificava o visto em telas de grande despojamento. Mas também mais tarde, quando o encontro com Bonnard ou Cézanne conduziram à percepção dos múltiplos espaços na tela e à sua construção, que irá perseguir obra a obra. Primeiro, o ensaio sobre o espaço fechado, a estrutura das coisas. E depois, o traço a romper os limites, estilhaçando sobre a tela a unidade e fazendo da bidimensionalidade um terreno de polissemia. Chamada pintora de cidades, estratigrafiza a paisagem, desmultiplica construções, arruamentos, filamentos, estruturas, movimentos. Como se a cidade vista fosse apenas uma teia de sugestões erguida com a sabedoria de Ariadne.

Dirá a artista: teço a minha teia de aranha, à medida e ao passo que vivo: e tudo vem parar aqui. Tudo aqui se resume. Poeira, moscas, flores, folhas secas e, de tempos a tempos, faço o inventário das minhas riquezas mas como não tenho nenhum talento para inventários, perco-me e não o faço nunca completamente, e ponho-me de novo a tecer”. Nas telas-teia de Vieira da Silva advinham-se catedrais, labirintos, bibliotecas, jardins, vendavais, arrebatamentos de estilo, sentidos à flor da tela.




Maria Helena Vieira da Silva
Lisbonne, 1962
Têmpera s/ papel

segunda-feira, novembro 29, 2010

Millennium bcp

Em 2003 é lançada a Marca Millennium bcp, resultado da sucessiva fusão de diversas entidades financeiras num só grupo, ligando histórias e património num acervo único. Dele passou a fazer parte o que chegou via Banco Comercial Português, linha matricial e base renovada instituição, Nova Rede, Atlântico, e através dele, do Banco Comercial de Macau, Banco Mello e Banco Pinto & Sotto Mayor. Mas do exclusivo acervo de bens artísticos passaram, ao longo dos anos, a fazer também parte diversos bens que foram incorporados em consequência de hipotecas, doações ou aquisições.

É também a percepção desta longa narrativa multidimensional que se conta através das obras de arte, consubstanciada nas escolhas das obras aqui presentes e reunidas não por acaso, sob o tema da Abstracção, questão lançada através do núcleo de obras de Vieira da Silva e seus contemporâneos mas que veio permitir um reforço de visibilidade e a leitura dialogante com outros núcleos autorais presentes na colecção Millennium bcp. Ainda que seja notória na colecção a ausência de artistas como Fernando Lanhas para uma revisão mais exacta do conceito, ele permite criar inúmeras situações de encontro entre uma abordagem devedora da experiência do geometrismo, em que o rigor dos traçados se confunda com o simbolismo do vocabulário e o aspecto mais convulso do gesto. Nesse sentido, e partindo da sugestão de construído nas obras de Vieira da Silva, das suas paisagens meticulosamente organizadas ou emotivamente desestruturadas em arrebatamentos de traço enérgico e criador, desdobrou-se em dois a escolha e o espaço de exposição. Tendo como figura proeminente do abstraccionismo geométrico Nadir Afonso, trouxeram-se ao percurso as experiências alicerçadas no recurso aos signos geométricos, à tessitura dos seus ritmos, ao trabalho cromático e formal que os organiza. São propostas que se reformularão anos mais tarde, em trabalhos como os de Fernando Aguiar, fazendo desses elementos vocábulos de uma construção poética visual, ou os de Pedro Casqueiro, em telas de estrutura dissonante.

A edificação de malhas compositivas como elemento fundador da pintura ou desenho é um elemento recorrente que encontramos como sugestão urbanística na gráfica de TOM, suporte austero de equilíbrios instáveis em Angelo de Sousa, dispositivo óptico gerador de ritmos de Eduardo Nery ou indagadores do espaço de construção da imagem com Artur Rosa. Destacam-se dois momentos fundamentais neste núcleo de trabalhos. Um deles que congrega três telas de Fernando Lemos, artista cuja intervenção pictórica e sua exposição se diluiu em face da fotografia e sua aplaudida recepção. São obras não vistas há muito e que foram alvo de um apurado trabalho de restauro por parte de técnicas especializadas e alunos da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa, numa parceria frutífera entre o Millennium bcp e a universidade. O outro, também intervencionado para esta exposição, reúne os trabalhos de Jorge Pinheiro, artista de invulgar erudição que na década de setenta dá corpo a telas de grande dimensão, cromaticamente uniformizadas em toda a extensão, sobre a qual se suspendem frágeis pontuações, como se de uma cartografia ou linguagem cifrada de cânticos e silêncios se tratasse. Em conexão com estes trabalhos, podemos ainda encontrar obras de António Palolo, Eduardo Batarda e Manuel Cargaleiro.

Mas se a Abstracção se gera na relação com o real, o desejo de resgatar a acção na imobilidade, de atravessar o reconhecível, o mimético, o paradigma da figuração e fazer do meio com que se opera um dos motores de construção da própria imagem, ela tem como expressão maior a ideia de movimento. É isso que se encontra nas telas de Vieira da Silva ou de Nadir Afonso. Mas também nas explosões cromáticas de Manuel D’Assunpção, nas visões dramatizadas de Nikias Skapinakis. Um turbilhão de intensidade gestual que se reconhece nos trabalhos de Arpad Szenes, nas delicadas construções de André Lanskoy, nas pinturas por acumulação de Paula Rego, nas lacerações pressentidas de Mário Cesariny, nos espargimentos de António Areal.

Há, em tantos destes trabalhos, uma sugestão paisagística lentamente desorganizada ou, ao invés, recomposta longe do que é reconhecível. Uma espécie de encontro entre o visível e um percurso interior com expressão máxima na exploração da matéria da pintura. Quando Zao Wou-Ki faz suceder o registo dos dias numa espécie de diário pictórico, em composições de grande dimensão e paleta cromática vibrante, o que se observa tem a capacidade de concentrar em si uma longa história (pessoal, política, pictórica, gráfica) em breve impulso. O mesmo sucede com Manessier, ainda que o carácter estrutural com que a pincelada feita mancha se empasta comporte um peso que os trabalhos de Zao Wou-KI não têm. É uma das obras mais relevantes deste núcleo, construída à imagem de painel retabular no auge de um momento de êxtase espiritual. Outra é a composição de Serge Poliakoff, obra imensa, na medida, no engenho formal da sua composição, no modo como a matéria e a cor são trabalhadas. Foi uma das pinturas restauradas para esta mostra, a par das Augusto Barros e Luís Demée.

Na linha de tensão entre figuração e abstracção, fazendo desse encontro terreno produtivo de criação, estão as pinturas de Luís Dourdil. Mas também as figuras abstracizantes de Júlio Resende ou Júlio Pomar, aqui postas em diálogo com as visões sombrias de Justino Alves e as paisagens fulgurantes de Menez e Teresa Magalhães.

Mais do que criar compartimentos estanques na leitura das obras, houve a preocupação de tornar o espaço tão orgânico quanto possível, aberto às descobertas do espectador, sugerindo mais do que uma cronologia estanque, encontros improváveis e mútuas significações.
Les chemins (os caminhos) de Vieira da Silva, à entrada, dão o mote…

domingo, novembro 28, 2010

Ana Ruivo

Ana Ruivo foi a investigadora responsável pela selecção das obras da colecção de Arte Abstracta do Millennium BCP. Esta colecção é ampla na dimensão e na cronologia que abrange, diversificada nos suportes, variada na proveniência. Resulta de uma herança de longo percurso que associa, numa só, a história de várias instituições financeiras. Fundidas sob a designação Millennium bcp desde 2003, foram incorporadas na empresa diferentes entidades bancárias e com elas, o património, os contextos, os discursos artísticos que cada uma reuniu, experimentou e absorveu enquanto exercia actividade.

Concebida a diferentes tempos, a colecção é consequência de quatro eixos fundamentais do ponto de vista patrimonial: o que se formalizou por via do Banco Comercial Português, criado em 1985, o que através dele se adicionou pela incorporação do Banco Mello em 2000, e com ele o que tinha sido anterior pertença da União de Bancos Portugueses, fruto da nacionalização, em 1978, dos bancos de Angola, Agricultura e Pinto de Magalhães, e privatizado em 1996 quando o Banco Mello o adquiriu; o que absorveu a extensa genealogia financeira do Banco Português do Atlântico e por fim, o reunido através do Banco Pinto & Sotto Mayor. Necessariamente eclética na sua natureza, congregando linguagens que vão da pintura ao desenho, gravura, fotografia, tapeçaria, cerâmica, mobiliário, numismática e medalhística, a colecção do Millennium bcp revela-se um campo de investigação frutífero: pelo estudo aprofundado dos seus núcleos disciplinares e as abordagens temáticas, transversais a cronologias, que permite; pela evidência de uma de uma história fecundada que se conta através das obras de arte e cruza em simultâneo os terrenos cultural e económico, na dinamização mútua da criação, do mercado artístico e das estratégias empresariais. Adquiridas para decoração de imóveis, inseridas em políticas mais complexas de transacções e incorporações de bens, transferidas a par das instituições a que estavam associadas ou guardadas em reserva, as obras de arte coligidas investem actualmente o Millennium bcp como depositário de um património inestimável do ponto de vista artístico, histórico e estético cuja responsabilidade de salvaguarda, valorização e fruição deve ser partilhadas por todos os colaboradores. E é neste quadro de diversidade e de responsabilidade social da empresa que algumas acções têm sido promovidas com vista à consolidação de um corpo de referência (disponibilizando obras do acervo para exposições capitais ou trazendo à colecção o olhar de diferentes especialistas de forma a contextualizar e valorizar o património reunido), à sua partilha com o público, impulsionando-a como estrutura geradora de conhecimento, identidade e cidadania.

A exposição itinerante Arte Partilhada, concebida pelo Millennium bcp com obras da sua colecção de pintura, marcou uma etapa neste processo e construiu um modo de inscrição de obras de arte que andavam arredadas da visualização pública no pensamento historiográfico da arte. Ainda que assumida pelo Millennium bcp como uma selecção institucional que referenciava algumas obras destacadas da colecção numa exposição intencionalmente plural, assente no paradigma metodológico de “uma obra – um autor”, escolhidos transversalmente ao longo de quase dois séculos, esta colectânea de 41 peças, revelava quanto a nós três aspectos importantes: a preponderância disciplinar da pintura na colecção, a sua amplitude cronológica e a diversidade de propostas visuais e de autores representados.

Se a experiência pictórica foi, na história da colecção do Millennium bcp, matricial na escolha das obras, revelando uma evidente apetência pela recepção desta linguagem, a verdade é que tal facto permitiu, sem que isso formalizasse um programa de aquisições pré-definido, a sua unidade em longa duração, com inúmeras possibilidades de reflexão. Permitiu igualmente que se fossem constituindo áreas de interesse, temáticas recorrentes e alguns núcleos autorais consistentes. Uma dessas áreas, porventura a que maior divulgação tem junto de um público especializado, prende-se com um interesse manifesto pela corrente naturalista que conduziu à reunião de obras de artistas como José Malhoa, Sousa Pinto, Carlos Reis, Alves Cardoso e João Vaz, entre outros. Mas outros há, mais singularizados, que permitem olhares igualmente unificadores e consolidam a percepção de muitos caminhos que artistas e coleccionadores percorreram na sua relação com a pintura.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Raquel Henriques da Silva


A curadora Raquel Henriques da Silva

Raquel Henriques da Silva curadora da Exposição “Arte Partilhada Millennium BCP, Abstracção”, aborda no catálogo deste evento o início da arte abstracta em Portugal, em especial na pintura.

A Pintura Abstracta em Portugal

Como acontece em todas as culturas nacionais que, por volta de 1900, tiveram Paris como centro de referência, também para Portugal foi o mais internacionalizado dos pintores da primeira metade do séc. XX que realizou os primeiros quadros abstractos. Refiro-me a Amadeo de Souza Cardoso, que viveu e trabalhou em Paris, entre 1906 e 1914, bem relacionado com outros artistas portugueses que fizeram o mesmo percurso de viagem, mas tendo sido o único que depressa procurou ligações mais interessantes para a elaboração de uma obra vanguardista. Assim, foi amigo, entre outros, de Modigliani, de Brancusi, de Sonia e Robert Delaunay, no entanto sem nunca cortar as amarras físicas e afectivas com a paterna Casa de Manhufe, onde regressava muito frequentemente.

Amadeo ansiava ser um artista moderno, mas por aprofundamento dos seus próprios interesses. A sua extraordinária obra, dramaticamente quebrada pela morte súbita aos trinta anos, percorre todas as fases do confronto com a tradição, incluindo o cubismo, o futurismo, o orfismo, o expressionismo, a abstracção e mesmo o dadaísmo, embora, neste caso, sem qualquer influência directa. Mas o artista sempre recusou liminarmente qualquer filiação estilística, mesmo que sem enunciados teóricos que seriam, alias, totalmente estranhos ao seu temperamento. Por isso, as suas pinturas abstractas, datáveis de 1912-14 são experiências entre outras, passageiras como todas, mas, como sempre também, magnificamente resolvidas. Em geral são estudos de formas e de cores que radicalizam temas miméticos, nomeadamente paisagens e naturezas mortas, cujos referentes são, deliberadamente ou não, elididos, na sequência de um conjunto de quadros cubistas.

José Augusto França, o primeiro historiador de Amadeo, considera que a sua pintura abstracta de “fins de 1913” permite pôr a hipótese de ele ter sido, senão o primeiro (nunca será possível abarcar os dados historicamente necessários que de vários quadrantes teriam de vir, de Paris a São Petersburgo, para tal afirmação em absoluto) a realizar a passagem por tal caminho, com certeza, porém, um dos primeiros a inscrever-se nessa situação. O que quer dizer, simplificando a afirmação, que segundo este historiador, Amadeo foi um dos primeiros pintores europeus a praticar a abstracção, facto que me parece incerto, nomeadamente em relação a Kandinsky, mas que terá inscrição no meio Parisiense.

Não sendo este o local para me deter, mais circunstanciadamente, no tema de Amadeo e a Abstracção, interessa apenas relevar que, como é sabido, esta obra fulgurante não teve quaisquer consequências no meio artístico português, onde as questões da vanguarda pictórica estiveram então praticamente ausentes. A sua morte em 1918, quando, terminada a Primeira Guerra, se preparava para regressar a Paris, impediu o desenvolvimento natural de uma carreira muito promissora. Apesar da dedicação de amigos, sobretudo Almada Negreiros, e da sua mulher, Lucie Souza Cardoso, Amadeo nunca foi exposto em Portugal antes da década de cinquenta. Então, depois de uma primeira exposição no Porto, na Galeria Alvarez, em 1959, o SNI (Secretariado Nacional de Informação) realizou uma grande exposição retrospectiva que, no ano anterior, fora apresentada em Paris. Houve reflexões entusiasmadas sobre a “descoberta” contemporânea do genial artista. Cito o artista José Escada que, num pequeno excerto, capta um dos traços mais pertinentes da poética da Abstracção: “Na pintura de Souza Cardoso, como em toda a que surgiu depois (cronológica e esteticamente falando), a natureza não está presente na sua aparência exterior, mas nos seus ritmos e cores essenciais.

Depois de Amadeo, a pintura abstracta só voltará a ser praticada em Portugal na década de trinta. Em 1931, Júlio, um dos pintores que se afirma no Salão dos Independentes de 1930, realiza Pequenos animais sobre a areia, composição abstracta, feita de linhas coloridas com curioso movimento. Trata-se de uma experiência poética, sem consequências na produção desse pintor autodidacta, irmão de José Régio e, também por essa via, muito próximo do ideário da revista Presença (1927-1940), onde se defendia a estética subjectiva e psicologizante como um dos veículos da modernidade literária e plástica.

Na mesma década, o abstraccionismo irrompeu na limitada cena artística portuguesa com inesperado fulgor. Refiro-me à exposição de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, em Lisboa, na Galeria UP, 1935, dirigida por António Pedro, uma das personagens fundamentais para a actualização da cultura portuguesa desses anos. Neste primeiro período do seu brilhante percurso, Vieira da Silva, vinda de Paris, encontrou na cidade em que nascera o ambiente afectivo e intimista próprio para a sua reflexão pictural. Aqui realiza algumas pinturas que, para todos os historiadores, marcam o arranque da sua estética labiríntica em que a abstracção é o dispositivo da invenção de complexas espacialidades feitas de pequenas formas coloridas. Sendo verdade que a artista não teve então discípulos e que poucos entenderam a radicalidade das suas propostas, mesmo assim ela deve ser evocada, depois de Amadeo, como o segundo elo da história da abstracção em Portugal.

Na década de quarenta, o abstraccionismo foi fazendo o seu caminho, embora quase sempre por vias paralelas. Podem citar-se experiências dos surrealistas que, afastando-se da realidade, não pretendiam criar um universo plástico abstracto e longe dos acidentes da matéria mas, pelo contrário, configurar a pluralidade de mundos nela contidos. Ou os traços peculiares da pintura de Júlio Resende que, no início da sua carreira, compreende que, para contar histórias em pintura, precisava de a libertar dos apertos da forma mimética e das cores previsíveis. Diverso é o caso de Fernando Lanhas que, sem contactos internacionais, elabora o essencial da sua poética, esta sim determinantemente abstracta, num desejo cosmogónico de equivalências entre a vida em todas as suas expressões e os movimentos misteriosos e antiquíssimos do universo.

Finalmente, na década de cinquenta, o abstraccionismo tornou-se uma corrente cada vez mais pujante na arte portuguesa, em consonância com a voga internacional dessa estética, a partir de Paris e de Nova Iorque. Nas suas formulações concretas, encontramos o abstraccionismo geométrico de Lanhas que, no rigor das sua geometrias e no esbatimento das cores, visa sondar os equilíbrios mais secretos entre o homem e o cosmos; o abstraccionismo geométrico também de outro jovem da Escola do Porto, Nadir Afonso, que com objectivos idênticos uma geometria serializada e em espectro cromático feito de cores primárias; mais exuberante foram os pintores, como Vespereira ou Fernando Azevedo, que, vindos do surrealismo, se envolvem numa gestualidade lírica em que o processamento das cores é determinante. Estes e outros artistas foram apresentados pela Galeria de Março, dirigida por José Augusto França, em Lisboa e, a partir de meados da década, por uma série de iniciativas, muitas delas promovidas na Sociedade Nacional de Belas Artes, que, ao longo dos anos sessenta, apoiou e promoveu as novas gerações de artistas, as suas problemáticas e os seus anseios. Ou seja, a arte moderna institucionaliza-se finalmente, reivindicando uma história de modernidade já prestigiada e, a partir de 1957, conseguindo o apoio determinante da recém aparecida Fundação Calouste Gulbenkian. Nesta época brilhante, dotada de novos dinamismos e de costas voltadas para a cultura retrógrada do Estado Novo, o abstraccionismo foi uma das matrizes mais importantes da atitude vanguardista que, além da sua expressão própria, contaminou as poéticas surrealistas e os novos realismos sob o lastro inquestionável de que para fazer pintura é preciso pôr em movimento a energia da sua específica matéria. Este é o contexto em que o crítico José Augusto França propõe o conceito de arte “não figurativa” para abarcar o território crescente de obras que não eram “arte abstracta geométrica”, afirmando:
“Se a «arte abstracta» cria formas como realmente deviam ser num universo lógico, a «não figurativa» dilui as existentes – e particularmente aquelas que os mitos surrealistas propuseram, já por si contrariando as leis naturais, sob uma nova luz onírica”.
Alargando o seu âmbito e diluindo as suas convicções, sendo geométrica, não figurativa ou informal, a arte abstracta não é nenhum dogma para os artistas que a praticam – por vezes a par de outras expressões estéticas – antes uma espécie de compromisso determinante do pintor com a sua vocação. Melhor do que eu, foi o que disse José Almada Negreiros, pintor vindo da geração de Amadeo e, que, por diversas vezes, no final da sua profícua carreira, cruzou o abstraccionismo (pense-se, por exemplo, no extraordinário painel gravado, Começar, 1969, no hall da entrada da Fundação Calouste Gulbenkian):

“Desde a grande janela aberta pelo impressionismo, ao agarrar a luz do cubismo e orfismo até ao abstraccionismo actual, foram-se dando jeitos para a novidade. Em breve fará um século! Nenhuma tradição de arte foi desmentida pela novidade: nós também iremos ver como vemos. O abstraccionismo ou não figurativo não impõe uma visão ao espectador, colabora com a visão, o pensar, o sentir, o olhar deste, evitando-lhe a passividade da admiração pelo alheio, e reconhecendo-lhe a sua legítima maioridade de gente farta de ter atingido a sua maioridade no mental e no sensível. Amanhã, a humanidade inteira surpreender-se-á de ver tudo nitidamente pelo abstraccionismo, como ontem pelo naturalismo”.

quarta-feira, novembro 24, 2010

A abstracção como estilo e como estética

A abstracção como estilo e como estética é o título da introdução ao catálogo da Exposição “Arte Partilhada, Millennium BCP, Abstracção”, da autoria da Professora de História de Arte, Raquel Henriques da Silva, que pela sua pertinência transcreverei aqui neste blogue.

“Algo teve inicio quando Kandinsky, ao entrar no seu atelier ao fim do dia, ficou surpreendido por ver uma tela «de indescritível e incandescente beleza» que não reconheceu sendo sua porque tinha sido pendurada de lado”
Michel Seuphor, La peinture abstraite. Sa genèse, son expansion.
Paris: Flammarion, 1964, p.11

O texto que escolhi para epígrafe é a narrativa mítica do nascimento da arte abstracta, através da evocação de Seuphor, um dos seus primeiros historiadores. Como é próprio dos mitos, a descoberta surgiu por acaso determinado, posta diante do olhar do artista, sendo o revelador uma pintura que ele próprio executara mas que não podia reconhecer, pela simples razão de que, pendurada incorrectamente, ela iludia o motivo (uma paisagem?) para enaltecer a “indescritível e incandescente beleza” das cores e das formas libertas da exigência de significarem outra coisa. Este momento fundador determinou o pintor a transpor a abstracção do mito para a história, realizando uma aguarela deliberadamente abstracta. Estava-se em 1909 e os artistas de vanguarda viviam a embriaguez de “tudo é permitido”, segundo a expressão do mesmo pintor (Seuphor: 12). De facto a reivindicação do fim da tirania do significado vinha de longe, preparando esse tempo revolucionário (a época das primeiras vanguardas, como lhe hão-de chamar os historiadores) que viu nascer o cubismo, o fauvismo, o futurismo, o orfismo, o suprematismo e, logo em 1913, os primeiros ready made Marcel Duchamp. O sistema das artes, que o século XIX questionara num crescendo de afirmação de subjectividades, colapsava perante uma energia criativa extraordinária que envolvia os artistas, os seus críticos e um número escasso mas aventuroso de coleccionadores. Esse tempo fundador que depressa adquiriu dimensão aurífica, só semelhante à da cultura pictórica italiana entre os séculos XV e XVI, foi vivido como um imperativo. Segundo Henri Matisse, “nós nascemos com a sensibilidade de uma época de civilização. Não somos mestres da nossa produção, ela é-nos imposta” (Seuphor: 9). Para clarificar melhor, vale a pena citar o início da narrativa do autor que vimos seguindo:

“Este século de invenções em cadeia, de crises sociais, de retraimento precipitado do mundo suscitou entre os seus filhos uma arte à sua imagem: revolucionária, inesperada; uma forma de arte ora irritante e agressiva, ora de aparência inofensiva e vazia de sentido – porque é assim, ainda hoje, o primeiro aspecto da pintura abstracta para o homem da rua que lança, casualmente, um olhar distraído para o interior das galerias de arte.” (Seuphor: 7)

Cinquenta anos depois de Seuphor, nenhum historiador de arte negará esse carácter peculiar da arte moderna nas primeiras décadas do século XX: a sua capacidade para espelhar as mutações da história humana. Mas, avaliando com mais cepticismo as revoluções técnicas, sociais e políticas (que não criaram um mundo mais justo, antes geraram uma escalada inaudita da guerra), estamos hoje em condições de considerar que as revoluções na arte, e na cultura em geral, serão talvez a mais prestigiada herança que a Europa de 1900 legou ao mundo. E não só pelas obras-primas, que as concretizam, mas pela reivindicação de liberdade individual e de direito ao sonho que as impuseram, Este esplendor com que a arte se ergue das histórias mortas, representando-as com imortal energia, não o encontramos apenas na Europa de 1900: Florença dos Médici, para restringir a situações consabidas do nosso espaço de pertença.

Na sucessão dos “ismos” que, desde finais do século XVIII, com o Romantismo, marca o advento da modernidade, o Abstraccionismo foi, para gerações de artistas, uma espécie de cumprimento de uma escalada quase natural. Do cruzamento fecundo entre a afirmação do direito do pintor escolher os temas do seu trabalho (liberto da autoridade, antes imperativa, do palácio e da igreja) e a consciência, também técnica e científica, de que o sistema pictórico clássico fora uma convenção idealizada, surgirão rupturas imperativas: a realidade não era um dispositivo de passividades que o artista diligente captava, mas um permanente construído, captável, segundo o naturalismo e o impressionismo, pela velocidade do registo, a valorização do espaço, o trabalho em série, a decomposição externa das possibilidades da cor. Destruídos e sucessivamente recriados, os motivos da pintura (também sob o impacto crescente da fotografia) serão, por volta de 1880, cada vez mais motivos picturais que as particularidades do fauvismo, do expressionismo e do cubismo particularmente exercitaram. A abstracção nasceu pela intensificação deste espírito experimentalista e do confronto de sensibilidades e possibilidades, como ponto de chegada natural do enfraquecimento das iconografias e do exercício académico da profissão. Será assim que Kandinsky poeticamente a afirma, nesse extraordinário livro intitulado Do Espiritual na Arte, publicado em 1910:

“Para o artista criador que quer e que deve exprimir o seu universo interior, a imitação das coisas da natureza, ainda que bem sucedida, não pode ser um fim em si mesma. E ele invejava a facilidade com a que a mais imaterial das artes, a música, o consegue. Compreende-se assim que o artista se volte para ela e que se esforce por descobrir e aplicar processos similares. Daí, a existência em pintura da actual procura do ritmo, da construção abstracta, matemática e também do valor que hoje em dia se atribui à repetição dos tons coloridos, ao dinamismo da cor. Emancipada da natureza como é, a música, para se exprimir, não tem contrário, na hora actual, ainda se encontra dependente desse processo. A sua função é ainda analisar os seus meios e formas, aprender a conhecê-los, como a música, por seu lado, fez desde há muito, e esforça-se por utilizá-los como objectivos exclusivamente picturais, integrando-se nas suas criações”.

Além de Kandinsky e mantendo-nos na esplendorosa cultura alemã vinda do séc. XIX, vale a pena recordar que também a história da arte contribuiu para a valorização da expressão abstracta, Basta evocar a obra de Alois Riegel (1838-1903), que estudou a produção artística da época romana tardia, distinguindo-a do classicismo, pelo seu pendor para a abstracção decorativa, em detrimento da representação do humano idealizado. É neste contexto que aquele historiador propõe o conceito de Kunstwollen, “a vontade artística” ou “a vontade de arte”, analisável ao nível da criação anónima, abarcando e transbordando a vontade individual. Pouco depois, outro historiador da arte, Wilhelm Worringer (1881-1965), abordará questões idênticas em Abstraction et Einfublung (1907), conceito este que significa “comunicação intuitiva com o mundo”, verificável em todos os estádios iniciais das diversas épocas artísticas.

O que esta nova história da arte trata – afastando-se das correntes positivistas ainda dominantes – é de uma dissolução de artisticidade que, afinal, não se restringe aos períodos de grande esplendor estilístico, antes aparece como consubstancial à vida subjectiva e à vida social, relacionada com geografias e histórias precisas. Este reconhecimento da amplidão da vontade e da capacidade artística é um dos aspectos mais interessantes da época: nas academias, desdobrem-se e valorizam-se os períodos de decadência, ao mesmo tempo que se estudam as artisticidades dos “povos primitivos” e das comunidades populares europeias. Simultaneamente, o novo domínio científico da psicologia irá revelar a importância da arte das crianças, dos doentes e dos loucos, pesquisas relacionadas também com as teorias gestaltistas da visão.

Sendo verdade que não há sempre articulações directas entre o trabalho da investigação e o dos artistas, é inquestionável que, nesses anos do início do séc. XX, os cruzamentos se fizeram de diversos modos, contribuindo para democratizar a ideia da arte e os seus desempenhos e para consolidar a sua importância na vivência individual mas também a todos os níveis da existência social.

Os artistas fundadores da abstracção foram particularmente sensíveis ao alargamento do campo artístico. Mais do que outros movimentos vanguardistas de 1900 (do cubismo, ao fauvismo e ao futurismo) Kandinsky, Mondrian ou Malevitch acreditaram, nas fases iniciais das suas carreiras, que estavam a criar uma arte nova que, apesar de ser admirada por grupos muitos restritos, se destinava, a médio prazo, a democratizar a produção e consumo da arte.

Este é o contexto que explica a articulação da pesquisa pictórica abstracta com movimentos artísticos que envolvem a arquitectura moderna e o nascimento do design, no caso de Mondrian, com o movimento holandês De Stijl; no caso de Kandinsky, com a Bauhaus alemã. Quanto a Malevitch, sabe-se quanto o seu abstraccionismo radical, designado Suprematismo, antecedeu os valores utópicos da Revolução Soviética de 1917, mas neles se integrará, situação de curta duração que depressa foi condenada pelo totalitarismo do Estado e pela sua defesa do realismo socialista. Pode ainda recordar-se que os fundadores da Abstracção, especialmente Mondrian, se interessaram profundamente pela essência do religioso que determinará o universo, numa via espiritualista de desdém pelas artes miméticas e de afirmação dos princípios da filosofia platónica.

A partir de 1918, o clima exasperado e expectante do final da Primeira Guerra, a emergência do Dadaísmo e da organização em movimento do Surrealismo tornam mais complexa a análise da produção artística de vanguarda europeia e, crescentemente, americana (do Norte e do Sul). Muitos artistas, vindos de formações académicas e culturais diversas, se cruzam, misturando, em doses subjectivas, os adquiridos de vinte anos de intensa criação. Progressivamente, a Abstracção tornar-se-á um dos movimentos históricos da vanguarda, ora reivindicado como estilística exclusivista, ora utilizado como poética inter-relacionada com outras. Os pintores que se consideram abstractos têm, à partida, duas matrizes estilísticas e estéticas de referência: o abstraccionismo geométrico, proposto por Mondrian e Malevitch, ou o abstraccionismo lírico de Kandinsky. Este evoluirá para práticas de contornos difusos, como gestualismo, o tachisme e a action painting de Pollock, figura referencial da arte americana dos anos quarenta que, na sua juventude, fora intensamente influenciado pelo realismo mágico e o surrealismo de Orozco. Quanto ao abstraccionismo geométrico, ele articula-se, desde o meio do século, com a Op Art e, com diversos influxos alheios, com o arranque do Conceptualismo.

Numa ampla diversidade interna, o Abstraccionismo é, por volta de 1950, uma das práticas mais internacionalizadas da arte contemporânea, centrado em dois focos irradiadores, Paris e Nova York, mas contando com relevantes escolas ou personalidades em todos os países. Mas não cumpriu o “fim da arte” sonhado pelos jovens Mondrian e Kandinsky, vendo-se permanentemente confrontado com as artes da realidade, imbuídas da dimensão fantasmática do surrealismo, das experiências dos Novos Realismos ou da energia urbana da nascente Pop Art.

Para encerrar esta sintética reflexão sobre a eclosão da arte abstracta, citarei um grande e popular historiador da arte, especialista de inquestionáveis épocas nobres (o Renascimento, por exemplo) mas que dedicou muito do seu trabalho a motivar os seus alunos e leitores para o facto de que a arte não está apenas nos museus e não é feita apenas por grandes mestres, antes nos é consubstancial, condição mesma da nossa existência individual e colectiva enquanto humanidade. Refiro-me a Ernst Gombrich (1909-2001), em texto de 1950:

“Muita gente que não tem paciência para o que chama “estas tretas ultra-modernas”ficaria surpreendida se soubesse como muitas delas já entraram na nossa vida, e ajudaram a modelar o nosso gosto e as nossas preferências. Formas e cores esquema, que foram desenvolvidas por pintores rebeldes ultra-modernos, tornaram-se a moeda corrente da arte comercial; e quando as encontramos em cartazes, capas de revista ou tecidos, parecem-nos afinal muito normais. Pode mesmo dizer-se que a arte moderna descobriu uma nova função ao servir como laboratório para novos modos de combinar formas e padrões.”

quinta-feira, novembro 11, 2010

Exposição “Arte Partilhada Millennium BCP – Abstracção”


A Casa-Museu Teixeira Lopes, após período de encerramento para importantes obras de remodelação apoiadas por fundos comunitários, abre as suas portas no dia 16 de Novembro de 2010 com a inauguração, pelas 18 horas, da Exposição"Arte Partilhada Millennium BCP - Abstracção".


Nesta exposição vão estar patentes algumas esculturas do Escultor Manuel Pereira da Silva.


Esta exposição itinerante, patrocinada pela prestigiada instituição bancária, que visa evidenciar o importante património artístico nacional, bem como contribuir para o enriquecimento cultural do país, reúne uma selecção de 74 pinturas representativas do abstraccionismo português e estrangeiro.


Revestida de notável interesse pela diversidade de obras expostas, das quais se destaca um núcleo autoral significativo da pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, com doze pinturas. Para além desta, sublinha-se a presença de obras dos seguintes artistas: Alfred Manessier, André Lanskoy, Ângelo de Sousa, António Areal, António Palolo, Arpad Szenes, Artur Bual, Artur Rosa, Augusto Barros, Eduardo Batarda, Eduardo Nery, Fernando Aguiar, Fernando Lemos, Jorge Pinheiro, Júlio Pomar, Júlio Resende, Justino Alves, Luis Demée, Luis Dourdil, Manuel Cargaleiro, Manuel D"Assumpção, Mário Cesariny, Menez, Nadir Afonso, Nikias Skapinakisl, Paula Rego, Pedro Casqueiro, Serge Poliakoff, Teresa Magalhães, TOM e Zao Wou-Ki.


A Exposição de Arte Partilhada não deixa de fora os mais novos. O Millennium BCP, a Casa-Museu Teixeira Lopes e a Gaianima, EEM, lançam um concurso denominado «À Descoberta da Colecção Millenium BCP» que propõe a realização de trabalhos criativos a partir das obras expostas na exposição. Os três melhores trabalhos individuais serão premiados, bem como haverá prémio de equipa para a Turma de Escola que se empenhar mais na apresentação de criações de «Arte Partilhada».


A mostra estará patente ao público até 30 de Janeiro de 2011 e a entrada é livre, realizando-se as visitas guiadas à terça-feira, das 14h00 às 17h00, de quarta-feira a sexta-feira, das 10h00 às 17 h00 e sábado, domingo e feriados, das 10h00 às 17h00.

terça-feira, novembro 09, 2010

Espelho do Mundo – Uma Nova História da Arte, Julian Bell


Julian Bell, ele próprio pintor, interpreta a arte do ponto de vista do criador, procurando estabelecer uma afinidade entre o espectador e o artista. O seu propósito é o de incentivar o espectador a, antes de mais, olhar a obra de arte e, só depois, equacionar a sua essência e significado. Desafia-nos aqui a olhar a arte enquanto reflexo – espelho – da condição humana.

Espelho do Mundo traça a evolução das artes visuais através do tempo e do espaço, derrubando fronteiras entre tribos, países e religiões, oferecendo-nos uma análise – transversal e intercultural – da diversidade das obras de arte e do modo como estas podem relacionar-se entre si ou mesmo enraizar-se umas nas outras e nos respectivos contextos sociais e políticos.
Os seres humanos contam histórias, e os seres humanos fazem objectos para fascinar os olhos. Por vezes, estas histórias dizem respeito a esses objectos. Este tipo de narrativa, a que se chama história de arte, nasce do desejo de alguém imaginar como seria viver numa outra época, e de se surpreender com o que essas mãos fizeram. Os historiadores de arte procuraram também explicar por que motivo os objectos são feitos de diferentes maneiras, consoante a época e o lugar. É isso que este livro pretende fazer.

Porém um relato deste tipo tem uma dificuldade inerente. Uma obra de arte procura captar e prender a nossa atenção: uma história de arte impele para a frente, desbravando o caminho através dos territórios da imaginação. Numa história de arte de âmbito geral, como esta, a tensão pode ser constante. A cada passo, o narrador e o ouvinte sentirão o desejo de ter um pouco mais e olhar por mais tempo.

Porquê então insistir neste modelo? Vivemos sufocados por imagens. Em todo o mundo, ruas e ecrãs oferecem um amontoado de informação visual diverso e desconexo. Somos confrontados com uma amálgama de citações artísticas – Japão do séc. XIX, França do séc. XIII, Roma do séc. XVI, Austrália aborígene – e seria bom conhecer o vocabulário necessário de onde veio o quê. E também seria bom compreender a sua gramática. Como se relacionam entre si as imagens? Como se enraízam na experiência alheia? O que temos em comum com os seus autores?

Perguntas como estas geram histórias, e não certezas científicas. A história que se segue é contada por alguém, na Inglaterra do início do séc. XXI, que tenta abarcar milénios de confecção de objectos em seis continentes, esperando que, nessa base, o leitor possa continuar as suas próprias histórias. É mais uma introdução geral a objectos e temas da história da arte global do que um conjunto de conclusões acerca delas. Não pretendo definir ou redefinir o que constitui a arte, mas descreve r a sua gama de conteúdos correntemente aceite. O objectivo é mais a amplitude do que a profundidade, a abertura do que o rigor.

Porém, o método desta obra poderia ser considerado relativamente minucioso. A narrativa será urdida em torno de objectos cuja reprodução me parece surtir um bom resultado na página. A arte não se resume a uma questão de imagens compactas e fáceis de enquadrar, embora o leitor possa ter essa impressão aqui. Neste aspecto, tenho de admitir um preconceito pessoal.

Empreendi esta tarefa depois de uma vida inteira a pintar. Como tal tenho o hábito de estar numa sala perante um dado objecto que, espero, venha ater ter uma vida e uma fala própria. Nesta obra, encaro as imagens da mesma maneira: o tipo de arte sobre a qual ela incide é menos o que nos rodeia – um ambiente, edifícios, decoração, utensílios, trajes, adornos – do que aquilo com que nos confrontamos, desde a pintura até às estatuetas e monumentos. A imobilidade de cada imagem introduz outra limitação à discussão.

Ao escrever este relato, trabalhei segundo três regras gerais. Primeiro, se não houver maneira de mostrar uma coisa, mais vale não a referir. Escolher algo como trezentas e cinquenta obras para abarcar a história de arte mundial significa um exercício de equilíbrio difícil. Muitos ficarão decepcionados com o que ficou de fora; outros, aborrecidos por eu citar demasiados nomes, sem lhes dar um rosto. Quando se revelou imprescindível referir o nome de alguma figura ou fenómeno importante que não podem ser ilustrados, optei por uma politica de “parece-se bastante com”. Noutros casos, preferi ignorar o que não posso apresentar.

Segundo, manter a sequência cronológica. Esta directiva vantajosa para o leitor nem sempre se revelou possível em absoluto, pois a análise oscila entre um país e outro, mas espero que isso, se funcionar, dê uma perspectiva dos contrastes de região para região, bem como das afinidades entre culturas.

O meu título, Espelho do Mundo, indicia a terceira das minhas premissas. Entendo a história da arte como uma moldura dentro da qual vemos continuamente reflectida a história universal em toda a sua amplitude – e não como uma janela que se abre para um reino estético independente. Admito que os registos das alterações artísticas estão relacionados com registos de alterações sociais, tecnológicas, politicas e religiosas, por mais invertidos ou reconfigurados que se mostrem estes reflexos.

Os espelhos só podem funcionar com a luz que recebem, embora possam mostrar-nos as coisas de um modo diferente. O meu título indica também o que quero crer – que as obras de arte podem revelar realidades de outro modo invisíveis e actuar como molduras da verdade. Contudo, é sobretudo o modo como são feitos esses objectos, e não o seu estatuto último, que irá dominar a história. A principal razão por que me interesso pela história de arte é o facto de ela parecer tornar-me mais próximo de certas coisas extraordinárias e das pessoas que as fizeram.


Perguntas, confluências

Europa, 1909-1914

Porque na realidade, a arte consiste em objectos elaborados de maneira requintada, não é verdade? Objectos que demonstrem o seu valor intrínseco: não é isso que o mercado procura? Assim, todo o artista deveria criar um nicho para produtos profissionais, fosse qual fosse o seu modo de expressão.

A “imitação da natureza”, essa velha receita europeia para a pintura, deixara de ser relevante.
As doutrinas da “nova era” ganharam ímpeto e maior visibilidade com a chegada do séc. XX. Por volta de 1910, estavam em marcha muitas incursões na música visual pura, na “abstracção”, entre os artistas da Europa Ocidental e Oriental – o Checo Frantisek Kupla e o Lituano Mikalojus Ciurlionis, para mencionar apenas dois. O momento de ruptura de Kandinski, como ele próprio o descreve, ocorreu quando uma noite entrou no estúdio e viu em cima do cavalete uma “imagem da indescritível e incandescente beleza que não representava nenhum objecto identificável”. Não reconhecera uma das suas vibrantes paisagens, que se encontrava virada de lado. Desse momento em diante, deduziu Kandinski, a pintura podia passar sem a representação. A elegância visual que impregna composição VII a sua obra principal de 1913, inspira-se indubitavelmente nos ornamentos folclóricos Russos, com as suas encantadoras cores vivas, não obstante, insistiu ele, todos os elementos ditados pelo espírito, e estavam repletos de intenção simbólica.

O mundo visível não se evaporava simplesmente nesta nova arte. As suas essências haviam sido destiladas e libertadas, como fórmulas com as quais se podia construir um novo universo pictórico. Elas não eram senão aquelas coisas que o olhar adora fazer: reconhecer contrastes, discernir imagens e formas limitadas, vaguear, focar e retorcer, mergulhar nas intensidades da cor, precipitar-se e saltar para o lado. Durante um período concentrado de quatro dias, o pincel de Kandinski agitou-se sobre a enorme tela de 3 metros, com a alegre inocência de uma abelha a explorar uma flor.

Aquém da visão, além da visão
Europa, E.U.A., 1920-1940

Assim pois, esses eram alguns dos rasgos principais do mundo dos artistas depois das traumáticas guerras e revoluções da década de 1910: uma série de novos – e na sua maior parte “mais duros” e mais magros – estilos, de significado aberto. O poder hipnótico do que chegou a conhecer-se como a “industria da cultura”: Hollywood, a publicidade, o fotojornalismo, etc. Os planos progressistas de redução visual; a ideia da revolução de massas defendida pela esquerda; o desejo intransigente de romper com todas as formas anteriores da experiência humana. E em contradições com tudo isto, ou misturando-se com ele, a ânsia de estabilidade, de restauração e de tradição. Nesta parte e nas seguintes farei uma visita aos modos em que uns quantos artistas e grupos se abriram caminho através de todas estas pressões.

Outras iniciativas dos anos vinte reflectiram o construtivismo Russo. Na Holanda, formou-se um grupo de desenho de vanguarda ao redor da revista De Stiff em 1917, enquanto na Alemanha Walter Gropius criou a seminal de desenho progressista e social quando fundou a escola conhecida como a Bauhaus em Weimer em 1912. Em ambos projectos participaram pintores. Piet Mondrian foi um dos membros mais importantes do grupo Holandês; como outros muitos visitantes de Paris dos anos dez, este paisagista e teosofo havia-se inspirado nos experimentos dos cubistas. Do que havia feito Picasso e Braque sugeria um podia analisar sistematicamente as pistas que nos dava a visão. Se dispôs a recortar os componentes das imagens das suas paisagens tal como Brancusi recortava suas figuras, e com intenção parecida: quanto mais perto se está da simplicidade, mais se aproxima de um ideal espiritual. Em 1920, ficou-se com uma gramática de signos absolutamente mínima: linhas verticais, linhas horizontais e cores primárias. A sequência de explorações que o levou a esta abstracção parecia proceder com uma lógica redutora inexorável.

Piet Mondrian, Composição I: com vermelho,negro, azul e amarelo de 1921


A partir desse momento o único caminho para a frente consistia em começar a construir de novo. Na Composição I: com vermelho, negro, azul e amarelo de 1921, Mondrian pedia ao olho que se centrara na sua própria capacidade para julgar as relações e os equilíbrios, e em seu próprio desejo de claridade. Inicialmente, o exercício parece vigoroso, refrescante, deslumbrantemente frio (ressurge esse velho gosto Holandês pela austeridade que vimos anteriormente em Vermeer). E logo astutamente, começa a conquistar. O rectângulo fechado no centro e seu primo maior no canto superior esquerdo dirigem a dança dos espaços, e tudo parece girar à sua volta, como se estivessem catalisando uma reacção química, uma explosão de ordem. Os vermelhos, negros e amarelos abrem-se ao mundo mais além do bordo do quadro, projectando o meio redesenhado que lhe gostava sonhar a De Stijl fazia os espaços indefinidos que estão fora. Talvez a abstracção fosse na realidade um paralelismo recém-criado com a pintura figurativa, um modo mais potente de induzir ilusões.

A Bauhaus, na Alemanha, pretendia conseguir uma honestidade progressista e estabeleceu normas para um desenho de linhas limpas, ergonómicamente eficiente que seria imitado em todo o mundo. No entanto a sua história interna, ao longo de 12 anos de funcionamento e das mudanças de localização, oscilou por causa das tormentosas tensões entre a série de carismáticos inovadores que ali se encontravam. Um deles foi Vasily Kandinsky, que se uniu a eles com um amigo que havia conhecido em Munique anteriormente à guerra, Paul Klee. Klee – uma presença seca e obstinada o pessoal – levou a cabo uma honrada investigação visual de enormes implicações. Daria às aspirações democráticas da escola um nível totalmente novo de superação.


Paul Klee, Máquina de Chilrear de 1922


Como Kandinsky, a Klee interessava-lhe relacionar a pintura com a música, mas trouxe uma inteligência mais analítica ao tema. Tal como Mondrian, Klee separava e isolava os componentes fundamentais da realização de uma pintura. Mas nas suas mãos convertiam-se numa caixa de joguetes. Jogava, testando muitas coisas sem limites. Nos seus desenhos e aguarelas, o pensamento lógico académico estendia uma mão e comungava com as anomalias da imaginação solitária que descobria dignidade nos rabiscos e um poder ressonante no frágil e no trémulo. As investigações de Klee iam a par com as da psicologia, que era uma ciência em expansão. A partir de 1900 em diante, os investigadores haviam aberto os olhos à arte infantil e dos doentes mentais. Uma espécie de empatia recorre o encanto louco de um experimento a caneta e aguarela como a Máquina de Chilrear; em certo sentido, qualquer um que se arrisque a pôr a sua imaginação sobre o papel, quer seja habilidoso ou não, está arriscando-se ao absurdo. O título contem o que Klee se havia encontrado a si mesmo fazendo: um aparelho geométrico que floresce organicamente, estalando numa canção. De facto, esta folha de 1922 instala-se com uma reciprocidade entre o duro e o mole que havia começado a ressonar através do campo da arte “avançada”. É um eco inocente do trabalho mestre muito mais amplo, infinitamente mais frio do absurdo sexual mecânico a que Duchamp dedicou a sua ingenuidade entre 1915 e 1923, o chamado Grande Vidro, um dos grandes buracos negros que tudo absorve da interpretação da arte moderna.


Mondrian e Klee, com o seu desejo de reeducar o olhar, parecem pôr em dúvida toda a possibilidade de pintar com base na observação

domingo, outubro 10, 2010

Primitivismo, cubismo, abstracção – Começo do século XX



Este livro, foi publicado originalmente em 1993 pela Yale University Press em associação com a Open University.

Este é o segundo de uma série de quatro livros sobre arte e a sua interpretação desde meados do século XIX até final do século XX. Como série, compõe os principais textos de um curso da Open University, Arte Moderna: práticas e debates. Representam uma variedade de abordagens e métodos característicos do debate contemporâneo sobre a história da arte.


Os capítulos deste livro consideram aspectos da cultura artística e visual da Europa desde 1900 até fins da década de 1920. Apesar de organizado cronologicamente, cada capítulo investiga um período ou movimento da arte do início do século XX em relação a questões teóricas e problemas de interpretação mais amplos. No desenvolvimento são levantadas questões sobre pesquisa e metodologia histórica, bem como sobre o estatuto da “arte”.


No capítulo três, Charles Harrison considera alguns problemas de interpretação e avaliação postos por exemplos específicos de arte abstracta, explorando algumas das relações e diferenças entre formas figurativas e abstractas de pintura. Ele discute a necessidade de dar atenção ao contexto histórico tomando por base a carreira do artista russo Kazimir Malevich, enquanto a obra do pintor holandês Piet Mondrian é considerada em relação com a análise valorativa.


Abstracção, figuração e representação


Abstracto e abstracção


Este ensaio ocupa-se primordialmente do surgimento de formas de arte abstracta na Europa durante a segunda década do século, e de alguns problemas de interpretação e avaliação que elas suscitam. Falar sobre “surgimento” é afirmar que estas eram de algum modo formas novas de arte. Para entender o significado de algumas reivindicações feitas em prol da arte abstracta, precisamos primeiro avaliar o que está envolvido, num momento particular da história, na reunião dos termos “abstracto” e “arte”.


O termo “abstracto” é hoje amplamente usado, e desde o começo do séc. XX foi aplicado como um rótulo para muitas formas diferentes de arte. Quando se escreve sobre arte, o termo relacionado “abstracção” tende a ser usado em dois sentidos correlatos mas distintos: para referir-se, no caso de certas obras de arte, à propriedade de serem abstractas ou “não-figurativas”; e para referir-se ao processo pelo qual certos aspectos dos temas ou motivos são enfatizados nas obras de arte em detrimento de outros.



156, Vasily Kandinsky, Pintura com Mancha vermelha, 1914, Musée National d' Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris.



As ilustrações 156-159 mostram exemplos de arte abstracta da década de 1910 a 1920, produzidos por artistas de expressão russa, checa, holandesa e suíça. Ao descrever essas obras como abstractas estamos subentendendo que, qual for a sua aparência, aquilo com que elas se parecem não deve ser explicado por referência a um tema representado. Apesar de algumas diferenças evidentes, elas têm isso em comum.



157, Hans Arp, Colagem, 1916, Offentliche Kunstsammlung Basel.



De facto, embora no uso corriqueiro nos refiramos a obras com “abstractas” na ausência de qualquer semelhança evidente com o mundo, pode acontecer de uma obra ser vista como abstracta não tanto porque não se pareça com nada, mas porque seu tema ou motivo é difícil de identificar. E isso pode ocorrer porque um processo de abstracção levou à supressão de certas características facilmente reconhecíveis do tema original. Em 1932, o pintor inglês Paul Nash referiu-se a Pablo Picasso como “o maior de todos os pintores abstractos”. Podemos chamar esse de um sentido “fraco” de abstracção, já que, de acordo com os critérios mais rigorosos que serão aplicados neste ensaio, não se poderia dizer que Picasso fez nem sequer uma pintura abstracta durante sua longa actividade como pintor. Por outro lado, os processos de abstracção que ele praticava sobre seus temas eram muitas vezes tais que tornavam difícil perceber exactamente como esses temas eram representados em seus quadros. É fácil ver que uma pintura como Violinista de Picasso, do verão de 1910, poderia ser entendida como abstracta nesse sentido fraco (ilustração 159). Por comparação, a obra mostrada na ilustração 158 poderia ser chamada de abstracta no sentido forte do termo; isso quer dizer que ela é uma obra que não tem nenhuma pretensão aparente a ser um quadro de cena ou pessoa. Ela se apresenta simplesmente como uma “composição”.


158, Piet Mondrian, Composição, 1916, Guggenheim Museum, Nova York.



Como veremos, e como a Violinista de Picasso ajuda a mostrar, os sentidos fraco e forte de abstracção são ligados tanto em termos práticos como em termos de história de arte.


159, Pablo Picasso, Le Guitarriste, 1910, Musée National d'Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris.


Por outro lado, é importante ter em mente que, embora o cubismo tenha surgido no contexto de uma vanguarda parisiense, a grande maioria dos primeiros desenvolvimentos na arte abstracta ocorreu a alguma distância da capital francesa, na Alemanha, na Áustria, na Holanda e na Rússia. A arte abstracta não era simplesmente uma forma de continuação daquela tradição moderna que tivera em Paris seu centro durante o meio século anterior. Ao contrário, a ideia de uma pintura “pura” ou sem objecto tendia a investir contra o sentido predominante da pintura francesa moderna, cuja força residiria em sua exploração sofisticada dos problemas do realismo e da auto-consciência na representação figurativa. Certamente, essa tradição era um recurso indispensável para todos os artistas envolvidos, mas ela foi estendida, diversificada e modificada sob as diferentes condições históricas e intelectuais da Europa setentrional e oriental. A resolução desse processo, tendo coincidido com o período da Primeira Guerra Mundial, marcou o início do fim da dominância francesa sobre as formas visuais do moderno. Embora Paris permanecesse um centro importante até ao começo da Segunda Guerra Mundial, no começo da década de 1920 a ideia do moderno na arte e no design já havia sido associada nas mentes de muitos com a possibilidade de uma estética universal, e portanto internacional, para a qual as formas de pintura abstracta forneceriam protótipos e exemplos.

Abstracção e significado

O processo de abstracção enfatiza tipicamente aqueles aspectos da pintura que vemos como formais. O artista Theo Van Doesburg ofereceu uma demonstração esquemática do processo de abstracção em seu livro The Principles of New Plastic Art. A ilustração 160 mostra-o transformando por estágios um quadro fotográfico de uma vaca numa espécie de composição abstracta – supostamente ao destacar seus aspectos individualmente e ao enfatizar sua forma “essencial”. Há algo de evidentemente absurdo no contraste entre a primeira e a última imagem de Van Doesburg. Fosse essa absurdez pretendida ou não, o contraste serve para demonstrar um ponto importante a respeito da arte abstracta em geral, e dos possíveis modos pelos quais ela poderia ser interpretada ou considerada significativa. No embate com formas tradicionais de pintura, somos acostumados a ser capazes de comparar certas imagens com o mundo, a perceber onde elas correspondem ou não a aparências (ou a nossas expectativas), e a entender tipos de intenção nas semelhanças e diferenças resultantes. Dada a sequência das ilustrações de Van Doesburg, podemos realmente participar de uma forma similar de comparação. Se formos informados dos estágios intervenientes, podemos com bastante facilidade “entender” a pintura abstracta como referida à “vaca”. Isso quer dizer que podemos reconstruir para a pintura um tipo de história casual, que começa, por um lado, com uma vaca real no mundo e, por outro, com um conjunto de intenções por parte do artista. O processo de abstracção é, por assim dizer, a sequência de efeitos que essas intenções têm sobre a imagem “original” da vaca é, portanto, implicitamente reconstruir uma cadeia de causas, intenções e efeitos, por mais estranhos que eles possam ter sido.


160, Theo van Doesburg, Objecto esteticamente transformado, 1917, Bauhaus-Archiv, Berlim.


Mas se fossemos confrontados só com a última imagem da sequência (ilustração 161), como bem poderia ocorrer no Museum of Modern Art de Nova York, onde está agora a pintura? Possivelmente poderíamos ver nela um padrão semelhante a uma vaca, mas na ausência de seu título duvido que fosse preciso muita coisa para nos persuadirmos de que nossa percepção era acidental De que outro modo, então, poderíamos encontrar sentido na pintura? A questão tem evidentemente relevância para a interpretação da arte abstracta como um todo. De facto, a sequência de Van Doesburg apresenta um caso enganosamente nítido. A ilustração 158 pode ser vista como ilustrando um processo de abstracção similar, e, guiados pelo exemplo de Van Doesburg, poderia, portanto, parecer razoável supor que Composição em linha de Mondrian de 1916-1917 é em certo sentido uma pintura do mar. Mas supor isso seria pressupor uma contínua conectando-a a pinturas anteriores. Esse não é pressuposto que se possa fazer com segurança. Nos anos 1909-14 Mondrian também pintou quadros de árvores, de moinhos e de torres de igreja. Uma sequência diferente de ilustrações poderia parecer conectar a última pintura a um motivo naturalista diferente.




161, Theo van Doesburg, A Vaca, 1917, The Museum of Modern Art, Nova York.


Se tivermos de abandonar a informação que uma sequência de ilustrações parece fornecer, deveríamos buscar outro modo de remontar uma pintura abstracta ao mundo das coisas, e assim entender como ela foi moldada pelas intenções do artista? Ou deveríamos em vez disso buscar o significado nas relações internas da própria pintura, atendendo às diferenças entre formas e cores da forma como poderíamos ouvir as palavras de uma língua desconhecida, não para convertê-las imediatamente nos termos de nossa própria língua, mas para alcançar aquela forma de entendimento que deve acompanhar qualquer acto de tradução como esse, uma compreensão da gramática relevante? Em vez de buscar estabelecer o significado da pintura situando-a num sistema de causas e efeitos, deveríamos considerar o significado como integrante daquele sistema formal que a pintura constitui?

È verdade que todos os tipos de representação humana podem ser vistos como ordenados de acordo com algum sistema. De facto, chamar um objecto de nossa experiência de uma forma de representação é dizer que podemos percebê-lo numa forma de ordem mais intencional; ou seja, uma forma de ordem que é significante do desígnio humano e significante em termos humanos. “Termos humanos” são inescapavelmente os termos da linguagem humana. Mas daí não decorre necessariamente que as formas na arte são como palavras, ou que elas são ordenadas como palavras, ou que elas estão numa correspondência uma a uma com palavras dadas. Elas não estão sujeitas ao mesmo tipo de regras gramaticais nem aos mesmos princípios de coerência no uso, e não se agrupam para formar declarações ou proposições linguísticas.

Essência, expressão, espiritualidade

Como o exemplo de Van Doesburg sugere, a ideia de abstracta como um processo tende a envolver um tipo de essencialismo: até pelo menos a metade do séc. XX, a adesão à tendência abstracta na arte moderna – pelo menos em seus aspectos mais claramente geométricos – tendia a acarretar a crença de que uma forma mais pura, mais elevada ou mais profunda de realidade é revelada através da eliminação dos aspectos acidentais e “inessenciais” das coisas. Esse tipo de essencialismo extrai sua justificação da ideia platónica de que há entidades fundamentais ou universais das quais as coisas com que deparamos são simplesmente exemplos imperfeitos ou impuros. A actividade da arte abstracta era, portanto, associada por muitos de seus primeiros praticantes e defensores a uma espécie de “ver através”; à ideia de que o artista é aquele que penetra o véu da existência material para revelar uma realidade espiritual essencial e subjacente.

Nos primeiros anos deste século, tanto Kandinsky como Mondrian foram atraídos pelas ideias dos teosofistas, que ensinavam que os seres humanos evoluem dos níveis físicos de existência para os espirituais, e que certas leis fundamentais, ocultadas da massa da humanidade, são reveladas por iniciados como os filósofos, os fundadores de religiões e – talvez – os artistas. Por volta de 1915, Mondrian também foi fortemente afectado pelas teorias neoplatônicas do matemático Dr. Schoenmaekers publicadas naquele ano. Ao mesmo tempo, na Rússia, Malevich estava interessado em especulações pseudo-científicas sobre a quarta dimensão.

Não é difícil ver como o desenvolvimento da obra de Mondrian pode parecer a um essencialista uma busca gradual daquela realidade universal que está supostamente escondida no acidental. Numa nota de rodapé a seu primeiro ensaio sobre arte publicado, o próprio Mondrian caracterizava explicitamente o artista como um tipo de médium para a expressão do universal.


Se nessa visão se atribui ao artista um tipo de função profética, também se atribui a ele uma responsabilidade especial. Sua prática deve ser exemplar e sintonizada com o mais alto grau. A circulação dessas ideias (por mais excêntricas que elas possam parecer) nos primeiros anos do século talvez ajudem a explicar o poderoso sentido de missão que é transmitido pelos escritos de Kandinsky, Mondrian e Malevich. Dada a utilidade da analogia entre composição abstracta e gramática, e dado que invocar a gramática é invocar uma condição básica de expressão racional, não devemos esquecer que cada um dos principais artistas envolvidas no desenvolvimento inicial da arte abstracta esteve envolvido em algum período de sua formação com ideias neoplatonicas e místicas – o que quer dizer não racionais. (devemos ser advertidos pelo exemplo de escolha de Van Doesburg. Por que razão uma vaca? Que uma vaca mais um conjunto de ilusões neoplatonicas devam resultar numa pintura abstracta não é, afinal de contas, uma ideia racional.)


Estilo e significado


É claro que nem todas as formas de arte abstracta inicial pressupõem que um ponto de vista neoplatonico ou teosófico seja plausível. Nem se trata de que ver uma obra de arte como abstracta seja necessariamente comprometer-se com o essencialismo. Não é excluir todos os outros interesses naquilo com que a obra se parece ou em como ela veio a ter a aparência que tem, nem é necessariamente negar que possa haver outras categorias nas quais certas obras abstractas poderiam ser situadas de forma mais frutífera. Muitas vezes será mais informativo atentar às diferenças materiais entre obras consideradas abstractas do que perceber aquela evitação de referência figurativa que elas possam ter em comum. Se quisermos discriminar entre aquelas obras que atendem aos requisitos de abstractas, precisaremos de uma gama de subcategorias apropriadas nas quais situá-las, e também de rótulos para essas categorias.


O espaço pictórico é algo que aprendemos a entender, e que o fazemos por referência a outras formas de espaço pictórico. A história da pintura na cultura ocidental é em grande parte uma história das formas relevantes de aprendizagem e dos modos como essa aprendizagem foi feita. Em seu ensaio “A. And Pangeometry”, escrito em 1925, El Lissisky afirmou que “A nova experiência óptica nos ensinou que duas superfícies de intensidade diferente devem ser concebidas como tendo uma relação de distância variável entre si, muito embora possam estar no mesmo plano”, a “nova experiência óptica” que ele tinha em mente havia sido fornecida pela obra de Malevich e Mondrian.


Outro ponto a observar é que o conceito de não-figuração como um modo deliberado pressupõe que o figurativo é o que se espera normalmente. A consequência é que a pintura abstracta depende, para seu estatuto como arte, das expectativas criadas por pinturas que são quadros; quer dizer, por pinturas que, em virtude de sua semelhança com outras coisas do mundo, podem ser vistas como representações ou ilustrações dessas coisas. Segue-se que a possibilidade de pinturas abstractas serem vistas como pinturas (isto é, como formas potenciais de arte elevada) depende de nossa tendência a olhar para suas superfícies como outras que não meramente planas – a olhar para elas, de facto, como potencialmente figurativas. Como o próprio Greenberg observou, “A primeira marca feita sobre a superfície destrói sua planariedade virtual” (“Modern Painting”); o efeito da leitura dessa marca é dividir a tela visual e conceitualmente em “figura” e “fundo”, e portanto, por assim dizer, criar espaço para algum tipo de conteúdo ou significado (mesmo que, de novo nas palavras de Greenberg, não seja uma ilusão “na qual alguém possa imaginar-se caminhando …(ela) é uma ilusão na qual só se pode olhar, percorrer apenas com o olho”. Para enunciar esse aspecto de outro modo, poder-se-ia dizer que não apenas “vemos” a superfície de uma pintura, nós “vemos dentro” dessa superfície a evidência de algum tipo de actividade intencional.


É a invocação pela pintura abstracta dessa experiência de “ver dentro”, penso, que a distingue mais vivamente do ornamento. A arte abstracta pressupõe uma posição crítica diante do figurativo na arte, e da própria predominância na arte europeia daquelas funções descritivas e narrativas que os procedimentos de figuração ajudam a possibilitar e desenvolver. Mas para que se estabeleça essa posição crítica, e para que o espectador se entretenha na experiência real, a obra de arte abstracta deve em primeiro lugar evocar e pôr em prática aquelas mesmas funções que pretende desacreditar. Enquanto vemos o Mondrian como plano, nós o vemos como sem significado (ou, poder-se-ia dizer, o vemos como “mero design”). Por outro lado, se o vemos como lembrando outra coisa do mundo, sua identidade e seu efeito como arte ficam comprometidos. Uma pintura abstracta é algo que está no lugar de um quadro, o qual, não obstante, não é um quadro de coisa nenhuma.


Abstracção, design e decoração


Agora estamos em melhores condições de tratar de uma questão levantada no parágrafo inicial. Apesar dos pressupostos universalizantes e explícitos de muitos dos próprios artistas, o carácter histórica e culturalmente específico da arte abstracta é enfatizado quando consideramos como os dois constituintes – “abstracto” e “arte” – dependem um do outro. Pode ser útil considerarmos alguns exemplos contrários. Por exemplo, numa cultura islâmica em que se desse menos prioridade às funções representativas da arte e mais prioridade ao significado do padrão ou ornamento, uma arte “abstracta” não por si só notável. Nem ela mereceria nenhuma atenção especial numa cultura que não tivesse bases substanciais para distinguir pinturas e esculturas de outras formas de design e decoração. É pertinente que teóricos pré-modernistas como John Ruskin e William Morris, que escreveram em meados e em fins do séc. XIX, tenham idealizado o período medieval como aquele no qual a arte e o design eram indistinguíveis no que diz respeito a seus estatutos e interesses estéticos. Para esses críticos, a realização de uma arte abstracta – uma “arte” que fosse categoricamente distinta do “design” – só poderia ter aparecido como realização de suas piores previsões. Isso quer dizer que eles provavelmente a teriam visto como uma forma extrema daquela tendência a isolar o “estético” e o “utilitário” que eles viam como uma consequência negativa da industrialização.


Em contraste, a teorização modernista da arte abstracta feita por Greenberg pressupõe que, para o bem ou para o mal, as práticas da arte e do design são distintas, embora não realmente incompatíveis. Uma tensão e uma dificuldade crescentes nas relações entre os conceitos de arte e design, respectivamente, é revelada nas fortunas críticas variáveis do termo “decoração”. Em fins da década de 1880, os simbolistas usaram o conceito de decoração para referir-se àqueles valores estéticos positivos que viam como independentes das exigências de descrição e imitação. Para Matisse, escrevendo em 1910, o aspecto decorativo da pintura coincidia com sua função expressiva, em busca da qual cada componente singular era ajustado criticamente. Em 1910, ao apresentar sua tradução do artigo de Maurice Denis sobre Cézanne, Roger Fry escreveu sobre “uma nova coragem de experimentar na pintura aquela expressão directa de estados de consciência imaginados, que foi por muito tempo relegada à música e à poesia”. Ele via essa tendência como associada a uma “nova concessão de arte, na qual os elementos decorativos predominam em detrimento do representativo”. Evidentemente a ênfase assim posta no decorativo era um meio de afirmar a autonomia relativa das formas artísticas como veículos de expressão. Com os inícios do interesse prático no desenvolvimento da arte abstracta, por outro lado, a realização da “mera” decoração tornou-se a marca do fracasso estético – ou do fracasso em estabelecer aquela promessa de profundidade intelectual e emocional que era associada à pintura como forma de arte.


A intenção de produzir arte abstracta era então uma intenção de apresentar obras não-figurativas não como formas de “mera” decoração ou ornamento, mas como formas de arte moderna – quer dizer, como formas de representação. Ao rever seu próprio desenvolvimento em 1913, Kandinsky escreveu sobre a “assustadora profundidade de questões, carregada de responsabilidade” que pensava ter diante de si. ”E o mais importante: o que deveria substituir o objecto perdido?” O perigo da ornamentação era claro, a morte da pretensa existência de formas estilizadas só podia me afugentar”. Como veremos, a intenção de produzir arte abstracta não foi formulada repentinamente ou por um indivíduo que agia sozinho. Ela se desenvolveu, creio, como uma consequência parcial daquelas mudanças de longo prazo nas relações entre “arte” e “design”, e de ambos com a “figuração”, as quais podemos acompanhar ao longo do século XIX – mudanças que são elas mesmas associadas, em algumas teorias do modernismo, ao encetamento do período moderno na arte. Isto é, o surgimento da arte abstracta foi específico de um mundo europeu moderno no qual a tendência predominante do desenvolvimento económico e industrial era impulsionar as distinções entre arte e design, e entre formas elevadas e inferiores de arte, nas quais o significado da arte elevada era associado normalmente à figuração; e nas quais as pinturas e esculturas eram candidatas à condição de arte elevada, ao passo que exemplos de design e ornamento não eram.


Uma nota sobre a arte abstracta em sua época


Como já vimos, as evidências são de que o problema do valor da arte abstracta era uma questão pertinente em particular à prática de arte europeia no inicio do séc. XX. Por que nesse momento? Algumas pistas para uma resposta podem extraídas da discussão anterior, ou seja, da análise da relação entre abstracção e não-figuração. No final do séc. XIX, a crítica prática da configuração – a critica da ilusão e de tudo que as técnicas ilusionisticas costumavam fornecer à arte dos Salões e Academias europeus – tendia com frequência para a abstracção. A ênfase na “pureza” potencial da forma era tanto um meio para desafiar as tradições classicizantes em seu próprio fundamento neoplatonico, como um meio de depreciar o superficialmente descritivo, o imitativo e o anedótico. Coincidentemente, a ideia de uma realidade universal e subjacente serviu aos simbolistas como um tipo de contraste crítico para a incómoda exigência de verdade nas aparências. Nesse meio tempo, a ideia de uma verdade espiritual servia a alguns como um luz pela qual eles viam revelado o que tomavam pelos valores genericamente materialistas do mundo contemporâneo. As justificativas da arte abstracta inicial recorriam não só a criticas bem exercidas das formas tradicionais, mas também a uma literatura variada de pensamento “antimaterialista”, para a qual os filósofos Shopenhauer e Nietzche, o compositor Wagner, o poeta Malarmé, os místicos Ouspensky e Madame Blavatsky e inúmeros outros haviam contribuído de várias maneiras, embora não igualmente. Nos primeiros anos do século esse antimaterialismo ganhou uma feição utópica. Isso quer dizer que ele estava associado a um ideal positivo do potencial humano e da sociedade humana. Numa década que inclui Guerra Mundial, uma revolução fracassada na Alemanha e uma bem sucedida na Rússia, as novas formas de arte eram associadas a formas optimistas de oposição à ordem social e politica predominante, embora geralmente não ao socialismo organizado.


A ideia de arte abstracta – a visão de uma estética universal e de sua extensão potencial à “vida quotidiana” – fazia parte do aparato conceitual por meio do qual certas pessoas, individualmente e em grupos, tentaram no início séc. XX imaginar seu caminho para um mundo melhor. Ou seja, a intenção de produzir arte abstracta, embora fosse uma intenção artística, era formada num e por um mundo que não era simplesmente um mundo da arte.