segunda-feira, novembro 29, 2010

Millennium bcp

Em 2003 é lançada a Marca Millennium bcp, resultado da sucessiva fusão de diversas entidades financeiras num só grupo, ligando histórias e património num acervo único. Dele passou a fazer parte o que chegou via Banco Comercial Português, linha matricial e base renovada instituição, Nova Rede, Atlântico, e através dele, do Banco Comercial de Macau, Banco Mello e Banco Pinto & Sotto Mayor. Mas do exclusivo acervo de bens artísticos passaram, ao longo dos anos, a fazer também parte diversos bens que foram incorporados em consequência de hipotecas, doações ou aquisições.

É também a percepção desta longa narrativa multidimensional que se conta através das obras de arte, consubstanciada nas escolhas das obras aqui presentes e reunidas não por acaso, sob o tema da Abstracção, questão lançada através do núcleo de obras de Vieira da Silva e seus contemporâneos mas que veio permitir um reforço de visibilidade e a leitura dialogante com outros núcleos autorais presentes na colecção Millennium bcp. Ainda que seja notória na colecção a ausência de artistas como Fernando Lanhas para uma revisão mais exacta do conceito, ele permite criar inúmeras situações de encontro entre uma abordagem devedora da experiência do geometrismo, em que o rigor dos traçados se confunda com o simbolismo do vocabulário e o aspecto mais convulso do gesto. Nesse sentido, e partindo da sugestão de construído nas obras de Vieira da Silva, das suas paisagens meticulosamente organizadas ou emotivamente desestruturadas em arrebatamentos de traço enérgico e criador, desdobrou-se em dois a escolha e o espaço de exposição. Tendo como figura proeminente do abstraccionismo geométrico Nadir Afonso, trouxeram-se ao percurso as experiências alicerçadas no recurso aos signos geométricos, à tessitura dos seus ritmos, ao trabalho cromático e formal que os organiza. São propostas que se reformularão anos mais tarde, em trabalhos como os de Fernando Aguiar, fazendo desses elementos vocábulos de uma construção poética visual, ou os de Pedro Casqueiro, em telas de estrutura dissonante.

A edificação de malhas compositivas como elemento fundador da pintura ou desenho é um elemento recorrente que encontramos como sugestão urbanística na gráfica de TOM, suporte austero de equilíbrios instáveis em Angelo de Sousa, dispositivo óptico gerador de ritmos de Eduardo Nery ou indagadores do espaço de construção da imagem com Artur Rosa. Destacam-se dois momentos fundamentais neste núcleo de trabalhos. Um deles que congrega três telas de Fernando Lemos, artista cuja intervenção pictórica e sua exposição se diluiu em face da fotografia e sua aplaudida recepção. São obras não vistas há muito e que foram alvo de um apurado trabalho de restauro por parte de técnicas especializadas e alunos da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa, numa parceria frutífera entre o Millennium bcp e a universidade. O outro, também intervencionado para esta exposição, reúne os trabalhos de Jorge Pinheiro, artista de invulgar erudição que na década de setenta dá corpo a telas de grande dimensão, cromaticamente uniformizadas em toda a extensão, sobre a qual se suspendem frágeis pontuações, como se de uma cartografia ou linguagem cifrada de cânticos e silêncios se tratasse. Em conexão com estes trabalhos, podemos ainda encontrar obras de António Palolo, Eduardo Batarda e Manuel Cargaleiro.

Mas se a Abstracção se gera na relação com o real, o desejo de resgatar a acção na imobilidade, de atravessar o reconhecível, o mimético, o paradigma da figuração e fazer do meio com que se opera um dos motores de construção da própria imagem, ela tem como expressão maior a ideia de movimento. É isso que se encontra nas telas de Vieira da Silva ou de Nadir Afonso. Mas também nas explosões cromáticas de Manuel D’Assunpção, nas visões dramatizadas de Nikias Skapinakis. Um turbilhão de intensidade gestual que se reconhece nos trabalhos de Arpad Szenes, nas delicadas construções de André Lanskoy, nas pinturas por acumulação de Paula Rego, nas lacerações pressentidas de Mário Cesariny, nos espargimentos de António Areal.

Há, em tantos destes trabalhos, uma sugestão paisagística lentamente desorganizada ou, ao invés, recomposta longe do que é reconhecível. Uma espécie de encontro entre o visível e um percurso interior com expressão máxima na exploração da matéria da pintura. Quando Zao Wou-Ki faz suceder o registo dos dias numa espécie de diário pictórico, em composições de grande dimensão e paleta cromática vibrante, o que se observa tem a capacidade de concentrar em si uma longa história (pessoal, política, pictórica, gráfica) em breve impulso. O mesmo sucede com Manessier, ainda que o carácter estrutural com que a pincelada feita mancha se empasta comporte um peso que os trabalhos de Zao Wou-KI não têm. É uma das obras mais relevantes deste núcleo, construída à imagem de painel retabular no auge de um momento de êxtase espiritual. Outra é a composição de Serge Poliakoff, obra imensa, na medida, no engenho formal da sua composição, no modo como a matéria e a cor são trabalhadas. Foi uma das pinturas restauradas para esta mostra, a par das Augusto Barros e Luís Demée.

Na linha de tensão entre figuração e abstracção, fazendo desse encontro terreno produtivo de criação, estão as pinturas de Luís Dourdil. Mas também as figuras abstracizantes de Júlio Resende ou Júlio Pomar, aqui postas em diálogo com as visões sombrias de Justino Alves e as paisagens fulgurantes de Menez e Teresa Magalhães.

Mais do que criar compartimentos estanques na leitura das obras, houve a preocupação de tornar o espaço tão orgânico quanto possível, aberto às descobertas do espectador, sugerindo mais do que uma cronologia estanque, encontros improváveis e mútuas significações.
Les chemins (os caminhos) de Vieira da Silva, à entrada, dão o mote…

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