quinta-feira, dezembro 09, 2010

A Flor e o Cristal: Ensaios sobre arte e arquitectura moderna

A flor e o cristal são dois velhos motivos da iconografia romântica. Novalis deles se aproximou em seus aforismos de estética. A flor, órgão vegetal de reprodução, reúne nos símbolos sensíveis da sedução, do amor e da recriação da vida. No cristal, a matéria sensível concilia-se espontaneamente com a pureza formal, cuja ordem espiritual, geométrica ou matemática, percebemos antes mesmo de conhecer de conhecer objectivamente suas leis. A vida e o espiritual se confundem nesta dupla metáfora, como um ideal estético e, ao mesmo tempo, cultural. Mas, como no romantismo, também na arte moderna – e, de maneira particular, na pintura, na lírica e na arquitectura do expressionismo europeu –, esses símbolos poéticos articulam artisticamente uma esperança social, em meio a uma crise da civilização da qual se dizia, então, que só o final do milénio seria capaz de compreender todo o alcance. A metáfora do cristalino atravessou a estética do modernismo até o cubismo como um fio de ouro secreto, de profundas repercussões, tanto nas questões de conteúdo artístico, como em seus problemas formais.

Mondrian e a filosofia

Quando a arte reivindica programaticamente o princípio de pureza, exactidão e frieza, abstracção e formalização lógicas, habilidade e precisão, limpeza e clareza, seu fazer já não se distingue, então da actividade e da racionalidade técnicas que regem cegamente o progresso acumulativo da sociedade moderna. A estética cartesiana é uma estética instrumental.

Mas a pretensão da arte abstracta não se detém nesse ponto, na mera estilização da razão instrumental como objecto susceptível de beleza artística. É inerente ao próprio postulado da abstracção formal na arte uma aspiração ao universal. A abstracção estética nunca se efectuou, na realidade, a não ser em função dessa universalidade. Assim, o princípio da racionalização formalizadora e técnica da actividade artística enforma também um valor cultural totalizador.

É esse o caso de Piet Mondrian. A abstracção que define a nova arte – o neoplasticismo – se condensa, em sua obra, como princípio geral de uma humanidade nova.

A trivialidade e a imediatez das categorias que Mondrian emprega em seu programa estético são tão atraentes quanto o espantoso pathos que encerra. “Tanto a filosofia como a arte – escreve – são expressões do universal.” Mondrian suprime o conteúdo de verdade da obra de arte, a qual é sempre mediada por uma experiencia individual do real, e instaura em seu lugar uma universalidade pura, do universal e inamovível, da harmonia original e da essência do homem. O pressuposto de uma totalizadora e totalitária, que Mondrian considera ponto pacífico, serve-lhe para legitimar uma missão terrorista da arte. Desse modo, a actividade artística é reduzida a uma receita de cozinha, cujo segredo, na realidade, está na ignorância e ausência de uma verdadeira experiencia estética. Mas não é precisamente o despedaçamento da arte que torna a obra de Mondrian temível, e sim o desprezo e a violência à existência empírica do indivíduo e da sociedade, que, em sua obra, apenas se anunciam e se vestem de uma linguagem formal.

O abstracto universal, que o neoplasticismo postula, é, todavia, um princípio chocho, trivial e vazio, considerado em sua positividade. Já que não transmite, nem pode transmitir, a experiencia real que o tivesse produzido, nem tampouco a história empírica que o percorre, seu conceito de abstracção se converte numa falácia. A abstracção estética de Mondrian só adquire um sentido material e concreto onde coloca em evidência o que as linhas, planos, pontos, cores e formas reprimem, descartam e encadeiam. A declaração da formalização abstracta revela-se, sob esse aspecto, como princípio da violência material esteticamente estilizada. O terrorismo de semelhante missão artístico cultural manifesta-se, em primeiro lugar, na agressividade da linguagem que Mondrian emprega em seus programas estéticos. Assim, o conceito de abstracção do neoplasticismo significa “supressão do trágico”, “superação da nostalgia e da alegria, do fascínio e da dor”; significa, também, “subjugação do feminino e do material, tanto na vida quanto na sociedade”; enfim, “a destruição da corporeidade”, a “ aniquilação do individual”, a “violação dos meios formais”. Mondrian pretende manejar o pincel do mesmo modo que o censor as tesouras: como instrumento de depuração e limpeza. No fundo, sob o extremo racionalismo lógico desse verdugo da arte contemporânea, oculta-se um imperativo moral de resignação e ascese. O mondrianismo, em que pese a novidade que pretende significar na história moderna, pode estar certo de que os princípios tradicionais da repressiva ética cristã proporcionam-lhe sólidas bases.

A agressão verbal é o modo pelo qual veicula este impulso repressor. Essa violência é responsável pela aniquilação do particular e do empírico que a pintura abstracta de Mondrian efectua. A estética do absoluto anuncia, na obra teórica e plástica de Mondrian, um mundo novo: o universo de uma harmonia acabada e de um poder total.

Angustia e abstracção

Temos o grande grito que atravessa a natureza, o grito do desespero.
Edward Munch
Em 1914, Paul Klee escrevia em seu diário: Quanto mais assustador é o mundo (como em nossos dias, precisamente), mais abstracta a arte, enquanto que um mundo feliz cria uma arte terrena.

Apenas algumas linhas adiante, encontramos um comentário nada assombroso para a figura de interioridade que a obra de Paul Klee encarna: “A guerra – escreve ele – eu a tenho vivido faz muito dentro de mim mesmo. Daí eu já não ser afectado interiormente”.

Duas citações que põem em evidência algo mais que uma perspectiva pessimista da realidade. É verdade que dão-nos conta da visão de espanto e da aguda sensibilidade ao terror e à dor. Mas, ao mesmo tempo, são testemunho da resolução inquebrantável de resistir a isso, de tornar-se inexpugnável à destruição histórica que, então como agora, ameaçaram a Europa.

Resistência e afirmação diante do desastre. Mas como, por que caminhos, a que preço?

Sigamos o fio desse diário de Klee. Encontramos várias vezes nele o tema da destruição que converte essa obra em páginas daquela Primeira Guerra Mundial, páginas todavia distintas, porque não foram escritas a sangue e a fogo, mas que revelam a mesma aniquilação da cultura europeia.

“Para sair das minhas ruínas, tive que voar”, acrescenta Klee no mesmo contexto. Uma frase que evoca e nos faz pensar em sua incessante de uma expressão sorridente ou, pelo menos, não patética da dor e da tristeza, ou em sua tendência ao etéreo, em sua inclinação pelos anjos e pelas figuras que voam ou se afastam.

“Pensei que fosse morrer – diz também Klee – guerra e morte. Mas será que posso morrer, eu, cristal?” E na linha seguinte, repete-se a invocação mágica e salvadora: “Eu, cristal”.
Temos aí uma paisagem dilaceradora de ruínas, guerra e morte. E, diante delas, o voo em direcção ao espiritual e ao ideal nórdico de uma existência cristalina e transparente.

Por que esquecemos sempre, ao falar de abstracção ou de arte abstracta, esse outro lado, obscuro, irracional e infernal, que, no entanto, impulsiona-as?

Voltemos um instante às páginas dessa obra.

O coração que bateu por este mundo – prossegue Klee – foi-me ferido mortalmente. É como se já apenas as recordações me ligassem a “estas coisas”. Acaso nascerá a partir de mim o tipo cristalino? Abandona-se o âmbito do aquém e constrói-se, em compensação, um mundo além, que possa ser todo afirmação. Abstracção.

Visão do espanto, pressentimento do caos e do apocalipse. Tudo está aí. È o fim. Mas, depois, invocação de uma nova ordem, afirmação de um reino de beleza, embora à custa de uma transcendência; depois, enfim, o anseio, pictoricamente realizado, da utopia do cristalino.

Podemos considerar como novo o conflito entre o caos, o apocalipse e a dor, e a invocação do cristalino, do transparente e de uma ordem geométrico-matemática, que essas frases de Klee sugerem? Na verdade, não. O ideal de uma espiritualidade cristalina encontra-se, muito antes, no pensamento místico. Muito perto de nós, Santa Teresa d’Ávila expõe, em seu Caminho da perfeição, uma temática idêntica:

“Vivendo eu tão grandes males, pareceu-me que isso é mister, como quando os inimigos em tempo de guerra correram toda a terra e, vendo-se o senhor dela perdido, ele se recolhe a uma cidade que manda fortificar.”

Também aqui, o caminho da perfeição espiritual começa pela conjuração da angústia e da destruição. A ameaça de morte encontra-se às portas da nova ordem que reina nas moradas, na fortaleza da alma crente. E, nas Moradas precisamente, essa identidade do eu, que assume a união mística da alma com Deus, aparece com todo o esplendor radiante de uma cidade celeste: é a fortaleza de cristal, transparência, geometria e espiritualidade. Não diz Santa Teresa, nas primeiras linhas dessa obra, que a alma é “como um castelo todo de diamante e mui claro cristal”?

Mas também na tradição do pensamento filosófico se assume esse ideal cristalino. Devemos recordar, sobretudo, que a estética platónica fundava-se na ordem das formas geométricas (Filebo), mas, já na modernidade, são irrecusáveis os nomes do racionalismo, como Descartes e Spinoza. Este último talvez proporcione o exemplo mais diáfano da conjuração do caótico, do demoníaco e do mal, precisamente sob o signo da geometria, sob o rigor do more geométrico.

Parecerá certamente surpreendente – diz a Ética, de Spinoza – que eu me proponha tratar dos vícios dos homens e das suas doenças à maneira geométrica e que deseje demonstrar, por meio de um raciocínio rigoroso, o que não cessam de proclamar contrário à razão, vão, absurdo e digno de horror.

Não se trata, portanto, apenas do facto de que o princípio da abstracção e da geometrização conta com um passado glorioso, por exemplo, aquele que, na arqueologia, remonta à decoração no alto Egipto ou à cerâmica neolítica. A questão está, antes, num lugar bem definido da nossa cultura, que contrapõe o ideal do cristalino e de uma ordem racional à ideia do caos ou da destruição.

Antes de examinar com maior detalhe essa dualidade de princípios – a angustia e a abstracção – podemos reler as páginas de um dos pioneiros da arte não objectiva e abstracta: V. Kandinsky. O delicado panorama cultural que descreve sua conhecida obra Do espiritual na arte pode prestar-nos algum auxílio.

Kandinsky sempre evoca a exteriorização plástica de um espiritualismo hermético. Os signos sensíveis que nos mostram suas obras aludem a um universo ideal que de imediato, parece-nos fechado, incompreensível. O princípio da abstracção parece sustentar um mundo próprio e interior nesses quadros, cujo acesso dir-se-ia proibido. Que há detrás dessas figuras geométricas simples, sob essas combinações difíceis de cores, realizadas, porém, com uma decisão aparentemente categórica? Que se deve ler ou sentir diante das combinações estritas e rígidas de cores e formas geométricas, ou de formas geométricas entre si? Arnold Gehlen considera que a análise Kandinskiana da interioridade, seus signos e seus ritmos musicais são simplesmente inextrincáveis. “Kandinsky é incompreensível” – escreve esse autor, directa e provocantemente. Grohmann diz ele: pintor absoluto. Os qualificativos, se não exactos, ao menos são sugestivos: hermético, absoluto, dogmático, metafísico.

No entanto, caberia outra possibilidade, outro caminho: não seria mais adequado perguntar-se ante que circunstâncias ou que contexto se ergue a defesa Kandinskiana do espiritual na arte, sua apologia de uma “necessidade interior”, sua busca fanática de uma harmonia matemática das formas e das cores? O próprio Kandinsky veste de bom grado a figura de artista profético e visionário. Que teme, porém, sua visão de um mundo de formas puras e de ideias abstractas e absolutas?

Nas primeiras páginas de Do espiritual na arte, esse pintor expõe um panorama cultural de seu tempo com uma curiosa metáfora:

…como numa grande cidade firmemente construída segundo as regras matemáticas e arquitectónicas, que, de repente, fosse sacudida por uma força incomensurável. Uma parte do espesso muro se desmoronou como um baralho. Uma torre, que se erguia até ao céu, gigantesca, construída sobre muitos pilares espirituais, delicados e imortais, jaz em ruínas. O velho cemitério esquecido estremece. Velhas tumbas abandonadas se abrem e espíritos esquecidos saem delas. No sol, construído com tanta arte, aparecem manchas e tudo fica escuro.

Estranha metáfora? A cidade destruída, os muros que caem, as ruínas, as altas torres derrubadas, as trevas e a ressurreição dos mortos. Na realidade, ninguém poderia jurar que Kandinsky é espiritual na arte evocam, quase involuntariamente, aspectos dos cultos órficos ou, pelo menos, a tradição do platonismo. Já aludi ao carácter iniciático contido em toda a sua teoria da arte e das cores, mas outros autores reconstruíram a experiência artística de Kandinsky nos termos de um processo extático:

Não eram raras as vezes em que Kandinsky tinha êxtases que o transportavam “além do espaço e do tempo” – comentava, nesse sentido, Johannes Eichner. – O rapaz procurava a redenção da opressora inquietude que sentia diante das portas da vida num mundo de signos em que ele “já não sentia a si mesmo”. Quando, posteriormente, converteu-se em artista, tratava também de despertar a mesma a mesma superação do eu nos espectadores de seus quadros.

A concepção da experiencia artística como êxtase procede do próprio Kandinsky, em sua obra Ruckblicke (Retrospectos). O que Eichner acrescenta a essa posição mística é somente a contraposição entre a supressão da consciência individual, por um lado, e, por outro, a identidade contemplativa do “interior” e do “exterior” no quadro, com momentos que, entretanto, já conhecemos: o “ocultamento do eu”, a superação da “inquietude opressora da vida” ou o carácter “perturbador” da realidade imediata.

Em outro contexto cultural, o da literatura, as coisas não parecem ser muito diferentes. Também aqui se fala da crise e da angústia de nosso tempo e da necessidade de sua conjuração espiritual num universo de essências eternas e puras. Limitar-me-ei, porém, a dois exemplos, o de Hermann Hesse e o de Hermann Broch.

Hesse escreveu, por volta de 1922, uma trilogia de ensaios que tinham o título significativo de Blick ins Chaos (uma olhada no caos). A constelação que Hesse descreve é idêntica. Da mesma maneira que os programas artísticos da vanguarda, esse livrinho foi escrito sob o signo da catástrofe e da compulsão do fim da Europa. O primeiro de seus ensaios, dedicado à obra de Dostoiévski, termina com as seguintes palavras:

Já meia Europa, pelo menos a metade oriental da Europa, acha-se a caminho do caos; caminha ébria e presa de um frenesi sagrado pelo abismo, e canta, canta hinos de embriaguez, como os que cantou, uma vez, Dimitri Karamazov. E o burguês ri de nervoso com essas canções, e o santo e o vidente ouvem-nas com lágrimas nos olhos.

O topos literário repete-se nessa citação: fim da Europa e caos; o artista estilizado na figura do santo e do vidente. O mesmo que na obra de Kandinsky. A visão do caos serve de legitimação para as exigências de uma ordem espiritual abstracta. Hesse também inscreve em sua bandeira o princípio de uma necessidade ou de uma ordem espiritual e interior. “Nada é exterior, nada é interior, pois todo o exterior também é interioridade” – é seu grito romântico de guerra.

A complexa obra de Broch ilustra esse mesmo contexto precisamente através do seu romance mais importante, Tod des Vergil (A morte de Vergílio), que é uma alegoria do fim da Europa através da descrição das últimas horas de agonia do seu primeiro poeta. Esse longo romance é, também, uma paisagem de confusão e aturdimento, de espanto e de decrepitude. No entanto, uma nova Babel da harmonia se ergue acima do caos, sob a forma de um Eu absoluto, de irisações platónicas e místicas: isto é, uma vez, mais, na figura cristalina de uma identidade absoluta.

Quer dizer, pois, como ponto final dessa problemática cultural de nosso tempo?

Esse problema pode ser resumido numa só frase: a estética da “construção sobre uma base espiritual pura” não desconhece a dor e o desespero, nem tampouco a destruição e o caos; e os princípios do equilíbrio dogmático físico-matemático das cores ou das formas postulados por Mondrian, Kandinsky Itten ou Klee, passaram anteriormente, apenas sem confessá-lo, pelas visões de decadência de Maeterlinck ou pelos monstros impiedosos de Ensor, George Grosz ou Kubin. A abstracção afunda suas raízes no solo da destruição, da qual pretende escapar como seu contrário, como porta-voz excelso de uma nova positividade. Poderíamos parafrasear, nesse sentido, o título de um romance de Kubin: A outra parte. A arte abstracta da modernidade sabe dessa “outra parte” – a realidade histórica e individual da angústia –, mas comporta-se como quem nega e pretende transcender e superar.

O tema de que tratamos tampouco é novo na reflexão sobre a arte contemporânea, embora a partir da Segunda Guerra Mundial o nexo entre abstracção e angústia tenha sido esquecido em benefício de uma arte abstracta e de uma vanguarda que, à imagem do mundo tecnológico do que pretendeu ser a legitimação artística e a expressão ornamental, existia, vivia e se desenvolvia por e para si, como abstracção pela abstracção.

A relação entre angústia e abstracção foi aludida precisamente durante aqueles mesmos anos em que nasceu a arte abstracta e se configuraram seus princípios programáticos, entre 1906 e 1914, pelo filósofo alemão Wilhem Worringer, embora de um ponto de vista bastante alheio ao que vim esboçando nestas páginas.

Podemos considerar Worringer, em primeiro lugar, como um pioneiro da abstracção, embora no campo específico da reflexão filosófica e histórico-cultural. Sua primeira obra, Abstraktion unt Einfuhlung, publicada em 1908, adianta-se, sob muitos aspectos, às teses formuladas mais tarde por Mondrian, Kandinsky, Severini, Klee ou Malevitch, apesar de não referi-las, como esses últimos, à realidade mais actual das tendências artísticas, mas sim à história da arte e à arqueologia. O lugar de Worringer no pensamento contemporâneo deve ser considerado como ao lado dos primeiros quadros cubistas e dos inícios da arte não objectiva.

É importante tratar a obra de Worringer em relação à arte abstracta por sua formulação do cristalino como categoria geral subjacente a essa concepção estilística e em virtude da sua análise da abstracção formal na arte, da geometrização e da repressão da representação espacial como momentos constitutivos e fundamentais desse ideal cristalino. Tudo isso é sugestivo e actual, mais do que parecia ver o próprio Worringer ao escrever aquela obra; e esses conceitos são susceptíveis de aplicação À realidade histórica e evolutiva da arte abstracta, por exemplo, da obra de Mondrian ou Malevitch. Mas sua análise interessa, no contexto desse ensaio, por um motivo diferente, que não desempenha, porém, em sua obra, um papel central: o problema da angústia.

Citarei um trecho representativo, a esse propósito:

Quais são as premissas psíquicas do impulso da abstracção? – Pergunta-se Worringer. Sua resposta já nos é familiar, depois de termos lido os textos precedentes, de Kandinsky ou de Klee. – Essas premissas, é preciso buscá-las no sentimento cósmico dos povos (primitivos), em sua atitude psíquica diante do universo. Assim como Tibulo dizia “primum in mundo fecit deus timor”, podemos afirmar, também, que esse mesmo sentimento de angústia se encontra na raiz da criação artística. As possibilidades de satisfação que (os povos primitivos) buscavam na arte não consistiam num abandonar-se às coisas do mundo exterior e gozá-las, mas em subtrair a coisa particular do mundo exterior à sua arbitrariedade e aparente causalidade, em eternizá-las na medida em que aproximavam-nas das formas abstractas e em encontrar, assim, uma quietude em meio ao fluxo de aparências. A linha simples e o desenvolvimento regido por leis geométricas deviam proporcionar as possibilidades mais elevadas de satisfação para aquele homem atemorizado diante da falta de claridade e de confusão dos fenómenos.

A tese de Worringer é simples: diante da angústia ocasionada por uma natureza ameaçadora, o prazer estético de geometrização e do cristalino. E parece ilustrar, de uma perspectiva antropológica, os trechos citados de Klee, Kandinsky ou Hesse. Contra o medo, a abstracção.

Naturalmente, como teoria antropológica – e assim a apresenta Worringer –, essa concepção é ridícula; como explicação psicológica das origens da arte é igualmente tola. Em contrapartida, no contexto aqui considerado, da arte abstracta e sua circunstância histórica, essa angústia é plausível, contando que seja considerada como uma simples projecção de um nexo actual no terreno da arqueologia e da história da arte.

Só me deterei mais um instante para considerar esse dualismo no movimento artístico do Stijl holandês. Limitar-me-ei a citar um trecho significativo, nesse sentido, de um ensaio, importante aliás, publicado em 1922 por Theo van Doesburg, sob o título de “A vontade de estilo”:

Se dirigirmos nossa atenção para a imagem geral da nossa vida actual partindo de pontos de vista próprios, chegaremos à conclusão de que essa imagem é portadora de um carácter caótico, e não podemos estranhar que os que se sentem descontentes nesse caos aparente querem fugir do mundo ou perder-se em abstracções espirituais.

Abstracção contra o apocalipse, construção de uma ordem cristalina contra a realidade caótica, na sociedade ou no pensamento. Exemplos: Klee, Kandinsky, Feininger e Gropius, Hesse e Broch, Van Doesburg, Mendelson, Taut e tantos outros. Não se trata de atitude individual, idiossincrática: é antes, um elemento geral que pertence à atmosfera espiritual da época.

Todavia, ao expor o tema desse dualismo, coloca-se uma pergunta imediata. Uma vez cumprido o postulado da abstracção, uma vez realizado o mundo espiritual e harmonioso na esfera da arte, que resulta daquele mundo real dos conflitos, da morte: o caos ou a angústia? Esses momentos são realmente suprimidos e superados, na nova estética do universal e do espiritual e na utopia socialmente efectiva que, desde Mondrian e Le Corbusier, fundava-se nessa estética da abstracção?

Tentarei formular a mesma questão com outras palavras. Até agora, foi considerada a arte abstracta fora do contexto histórico da destruição e da angústia (da guerra, da problemática do fim da Europa e da sua cultura, da consciência de dissolução de uma época). É o que poderia chamar-se de uma reconstrução abstracta da abstracção artística. Mas, considerada do ponto de vista aqui exposto, a arte abstracta constitui fundamentalmente uma forma específica, entre muitas outras que também foram possíveis, de elaboração individual e social do problema da angústia. Uma forma específica e não única, porém, aquela elaboração dessa questão que estava destinada a ter maiores consequências no decurso do progresso das sociedades capitalistas europeias. Pois bem, essa elaboração artística conseguiu dominar e superar realmente o problema histórico da angústia? A arte abstracta e a utopia social a ela ligada se sobrepuseram aos conflitos e tensões da crise europeia, de cuja dilaceração nascia? O princípio da abstracção conseguiu superar a dor?

Eis uma pergunta simples, quase ingénua, cuja formulação, não obstante, me parece extraordinariamente delicada a incómoda. Por uma razão muito clara: que a angústia individual e social deva ser superada e suprimida, não é coisa que, para nossa cultura, por mais paradoxal que isso pareça, seja óbvia. Muito pelo contrário: no medo, precisamente (o medo do castigo, do senhor, do poder, o medo da destruição), fundou-se nosso reino. Em nome da angústia, os poderes tornaram-se grandes e conquistaram impérios. Desde Hegel até Heidegger ou Sartre, a filosofia moderna legitimou, por isso, a angústia como princípio criador. Graças à angústia, foi possível erigir uma imensa cultura espiritual – afirma Kierkegaard, o apologista máximo do medo e da morte. A própria morte, como astúcia do triunfo histórico da razão, não é o mistério secreto oculto pela Fenomenologia do espírito, de Hegel?

Se a morte e o medo são dois princípios constitutivos da cultura, a história da arte abstracta, seu caminho da angústia ante o caos à invocação de uma ordem universal, não seria nada mais que a reiteração dessa eterna litania. Mas que seja realmente essa repetição, é um tema que deixarei em aberto aqui. Pois o que se trata é saber até que ponto aquela angústia foi superada. O que, sublinho mais uma vez, supõe um ponto de vista crítico, tanto diante de uma filosofia que legitimou o império da razão em nome da morte, como diante de uma sociedade que se reproduz infinitamente através da perpetuação do medo, da guerra e da destruição.

Talvez a obra de Klee permita dar um passo adiante em nossa argumentação. Vimos, nas citações anteriores de seu diário, o papel substantivo e explícito desempenhado pela angústia na constituição de uma arte abstracta. Mas a angústia, como as experiencias, a elas ligadas, do caos, da morte, do mal, do misterioso e obscuro, ou do invisível, não são banidas nem suprimidas em sua obra, senão conservadas precisamente em sua tensão e contraposição com o geométrico-construtivo e cristalino. O que klee escreve sobre o caos, em particular (“Eu começo, como é lógico, pelo caos, pois é o mais natural. Nele, sinto-me tranquilo, já que, no início, eu mesmo posso ser caos”); também poderia dizer-se de qualquer elemento artístico dentro de sua concepção decididamente dual do mundo. O princípio do cristalino mantém uma luta com o irracional, o desconhecido, e com a morte, mas sem que nenhum dos dois consiga prevalecer absolutamente sobre o seu contrário.

O caso de um quadro pode proporcionar-nos uma explicação mais precisa desse facto. Trata-se de uma obra deliciosa. Mas sua composição é simples, em aparência, como em muitos quadros de Klee. Há, como base, uma firme trama quadricular, uma estrutura geométrica firmemente construída. Sobre essa estrutura, Klee realiza tensões tonais e luminosas. O resultado é uma obra estritamente construtiva e abstracta: quadrados, cores complementares, tensão finalmente calculada entre claros e escuros. Termina aqui a descrição desse quadro? Absolutamente.

Sua tonalidade geral é escura: o quadro descreve um universo crepuscular. Adivinhamos uma paisagem, um monte, árvores: as paisagens da melancolia e da solidão. Na banda central da composição, Klee abre uma zona apagada. Nela reina uma escuridão ainda maior. Gera-se um silêncio. E, em meio a esse apagado, surge a claridade nítida da lua. É o mundo lírico da noite. Klee intitula, por conseguinte, o quadro de Saída da lua.

Esse quadro, escolhido ao acaso, deixa patente a coexistência do abstracto-construtivo e do princípio cristalino, com o reino da noite e todas as associações poéticas ligadas a ele, com a experiência individual e lírica. Diria mais, porém, acerca dessa relação: o construtivo permite precisamente fixar o lírico, dar firmeza à expressão da dor. O que significa que, em Klee, o princípio da abstracção não suprime o seu oposto, mas permite elaborá-lo, dominá-lo.

No outro extremo dessa problemática dualista, uma obra como a de Mondrian apresenta o facto consumado e imediato da abstracção, o que, em outro contexto, chamei de abstracção da abstracção. Os quadros neoplasticistas afirmam sem reticências uma nova ordem universal, fazendo tábua rasa da menor recordação daquela experiência original do caos. Pois bem, podemos falar aqui da elaboração do caos, de confrontação artística com ele, de luta, tensão? Dificilmente. A realidade da angústia foi deslocada, foi literalmente banida da expressão artística. Aqui não há elaboração da angústia, mas sim sua mais nítida e estrita repressão.

Uma nova questão nos espera ao chegarmos a este ponto. A realidade ruim de que o artista abstracto queria livrar-se, precisamente por meio da abstracção, não foi suprimida realmente por ter sido deslocada e reprimida da realidade artística “obra de arte”. No entanto, onde terá ido parar? A arte abstracta não a superou, mas, antes, desentendeu-se com ela.

Chegamos, assim, ao término das vanguardas, mas não à nossa última palavra. Pois, entretanto, o sonho que habitava o coração da arte abstracta tornou-se realidade. Nosso mundo já é o universo daquela segunda natureza abstracta e absoluta, que a pintura e a arquitectura de vanguarda reivindicaram como nova idade de ouro. Já tivemos em cidades de torres cristalinas e de catedrais brancas e transparentes, encerrados entre paredes lisas e espaços geométricos puros, submetidos à estética da frieza, da exactidão e da esterilidade.

A reflexão crítica sobre a arte moderna deve proceder a partir de agora com a delicada paciência dos restauradores, que têm de separar de um fresco magnífico a fina capa de estuque ou a película de outra pintura que o recobre. Assim, por trás da construção cristalina de um Mondrian ou de um Tatlin, terá de descobrir, não a felicidade Diamantina de uma ordem geométrica acabada, mas a figura da solidão e da morte que inspiravam essa arte, que só encontramos em toda a sua horrível potência nas obras de Schab, no Tríptico da guerra, de Otto Dix, ou nas visões de Hofer.

Talvez seja preciso recordar, como exemplo paradigmático, que um óleo como o Montagne Sante Victoire, de Cézanne, isto é, a representação já clássica, para nós, da natureza como uma ordem abstracta, construtiva e cristalina, é contemporâneo e reflecte a mesma realidade espiritual do Grito, de Edward Munch, em que uma das paisagens mais doces de toda a Europa, a dos fiordes, arde e se agita convulsivamente como um inferno, ao grito da angústia.

Em segundo lugar, esse caminho de recuperação da realidade empírica, tanto histórica como individual, que a arte abstracta havia deslocado, não deve informar apenas a tarefa reconstrutiva da reflexão crítica. Ele é também uma possibilidade aberta para a reflexão artística de nosso tempo.

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Maria Helena Vieira da Silva

Maria Helena Vieira da Silva
Porto, 1962
Têmpera s/ papel


Maria Helena Vieira da Silva (Lisboa, 13 de Junho de 1908 — Paris, 6 de Março de 1992) foi uma pintora portuguesa, naturalizada francesa em 1956.

Era filha do embaixador Marcos Vieira da Silva, e neta de José Joaquim da Silva Graça, fundador do jornal O Século, tendo vivido na casa do avô, em Lisboa.

Despertou cedo para a pintura. Aos onze anos ingressou na Academia de Belas-Artes, em Lisboa, onde estudou desenho e pintura. Motivada também pela escultura, estudou Anatomia na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Em 1928 acompanhada pela mãe, vai viver para Paris.

Em Paris inscreve-se na Académie de la Grande Chaumière, onde frequenta o curso de escultura de Bourdelle; estudou com Fernand Léger, e trabalhou com Henri de Waroquier (1881-1970) e Charles Dufresne, é aqui que conhece o pintor Arpad Szenes, húngaro, com quem se casou em 1930. Nesse ano, participa no 1º Salão dos Independentes, na Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa, aquela que é a sua primeira exposição colectiva em Portugal.

Em Janeiro de 1936, no seu atelier de Lisboa, Vieira da Silva e Arpad Szenes, expõem as suas pinturas abstractas.

Realizou inúmeras viagens à América Latina para participar de exposições, como em 1946 no Instituto de Arquitectos do Brasil (IAB).

Devido ao facto de seu marido ser judeu e de ela ter perdido a nacionalidade portuguesa, eram oficialmente apátridas. Então, o casal decidiu residir por um longo tempo no Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial e no período pós-guerra. No Brasil, entraram em contacto com importantes artistas locais, como Carlos Scliar e Djanira. Ambos exerceram grande influência na arte brasileira, especialmente entre os modernistas.

Vieira da Silva foi autora de uma série de ilustrações para crianças que constituem uma surpresa no conjunto da sua obra. Kô et Kô, les deux esquimaux, é o título de uma história para crianças inventada por ela em 1933. Não se sentindo capaz de a escrever, a pintora entregou essa tarefa ao seu amigo Pierre Guéguen e assumiu o papel de ilustradora, executando uma série de guaches.

A partir de 1948 o Estado Francês começa a adquirir as suas pinturas e em 1956 tanto ela como o marido obtêm a nacionalidade francesa. Em 1960 o Governo Francês atribui-lhe uma primeira condecoração, em 1966 é a primeira mulher a receber o Grand Prix National des Arts e em 1979 torna-se cavaleira da Legião de Honra francesa.

Participou na Europália, em 1992, e veio a morrer nesse ano.

Para honrar a memória do casal de pintores, foi fundada em Portugal a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, sediada em Lisboa

As pinturas de Vieira da Silva são lentas na execução. Não uma lentidão exclusiva da matéria e da composição, erguida em pequenas pinceladas, por acumulação, na demora da espera que a tinta seque ou que determinada solução ganhe corpo, consistência; um tempo de regressos em que cada solução parece inacabada, sendo de novo continuada com persistência. Mas sobretudo uma lentidão dos dias através do quadro, das estadas no ateliê em observação abandonando trabalhos por anos e regressando a eles mais tarde, deixando assentar o encontro entre o que se gera mentalmente e o que ganha forma no quadro, como referiu em entrevista, confessando levar muito tempo a pintar. Não há desenhos prévios sobre a tela, os esboços sucessivamente feitos a ganhar a mão raramente têm utilização posterior.

Conferem destreza, agilizam ideias, são outra etapa do pintar, Desenho e pintura tornados um só quando, nas primeiras pinturas de início da década de 1930, recém-chegada a Paris, onde estudou, Vieira da Silva simplificava o visto em telas de grande despojamento. Mas também mais tarde, quando o encontro com Bonnard ou Cézanne conduziram à percepção dos múltiplos espaços na tela e à sua construção, que irá perseguir obra a obra. Primeiro, o ensaio sobre o espaço fechado, a estrutura das coisas. E depois, o traço a romper os limites, estilhaçando sobre a tela a unidade e fazendo da bidimensionalidade um terreno de polissemia. Chamada pintora de cidades, estratigrafiza a paisagem, desmultiplica construções, arruamentos, filamentos, estruturas, movimentos. Como se a cidade vista fosse apenas uma teia de sugestões erguida com a sabedoria de Ariadne.

Dirá a artista: teço a minha teia de aranha, à medida e ao passo que vivo: e tudo vem parar aqui. Tudo aqui se resume. Poeira, moscas, flores, folhas secas e, de tempos a tempos, faço o inventário das minhas riquezas mas como não tenho nenhum talento para inventários, perco-me e não o faço nunca completamente, e ponho-me de novo a tecer”. Nas telas-teia de Vieira da Silva advinham-se catedrais, labirintos, bibliotecas, jardins, vendavais, arrebatamentos de estilo, sentidos à flor da tela.




Maria Helena Vieira da Silva
Lisbonne, 1962
Têmpera s/ papel

segunda-feira, novembro 29, 2010

Millennium bcp

Em 2003 é lançada a Marca Millennium bcp, resultado da sucessiva fusão de diversas entidades financeiras num só grupo, ligando histórias e património num acervo único. Dele passou a fazer parte o que chegou via Banco Comercial Português, linha matricial e base renovada instituição, Nova Rede, Atlântico, e através dele, do Banco Comercial de Macau, Banco Mello e Banco Pinto & Sotto Mayor. Mas do exclusivo acervo de bens artísticos passaram, ao longo dos anos, a fazer também parte diversos bens que foram incorporados em consequência de hipotecas, doações ou aquisições.

É também a percepção desta longa narrativa multidimensional que se conta através das obras de arte, consubstanciada nas escolhas das obras aqui presentes e reunidas não por acaso, sob o tema da Abstracção, questão lançada através do núcleo de obras de Vieira da Silva e seus contemporâneos mas que veio permitir um reforço de visibilidade e a leitura dialogante com outros núcleos autorais presentes na colecção Millennium bcp. Ainda que seja notória na colecção a ausência de artistas como Fernando Lanhas para uma revisão mais exacta do conceito, ele permite criar inúmeras situações de encontro entre uma abordagem devedora da experiência do geometrismo, em que o rigor dos traçados se confunda com o simbolismo do vocabulário e o aspecto mais convulso do gesto. Nesse sentido, e partindo da sugestão de construído nas obras de Vieira da Silva, das suas paisagens meticulosamente organizadas ou emotivamente desestruturadas em arrebatamentos de traço enérgico e criador, desdobrou-se em dois a escolha e o espaço de exposição. Tendo como figura proeminente do abstraccionismo geométrico Nadir Afonso, trouxeram-se ao percurso as experiências alicerçadas no recurso aos signos geométricos, à tessitura dos seus ritmos, ao trabalho cromático e formal que os organiza. São propostas que se reformularão anos mais tarde, em trabalhos como os de Fernando Aguiar, fazendo desses elementos vocábulos de uma construção poética visual, ou os de Pedro Casqueiro, em telas de estrutura dissonante.

A edificação de malhas compositivas como elemento fundador da pintura ou desenho é um elemento recorrente que encontramos como sugestão urbanística na gráfica de TOM, suporte austero de equilíbrios instáveis em Angelo de Sousa, dispositivo óptico gerador de ritmos de Eduardo Nery ou indagadores do espaço de construção da imagem com Artur Rosa. Destacam-se dois momentos fundamentais neste núcleo de trabalhos. Um deles que congrega três telas de Fernando Lemos, artista cuja intervenção pictórica e sua exposição se diluiu em face da fotografia e sua aplaudida recepção. São obras não vistas há muito e que foram alvo de um apurado trabalho de restauro por parte de técnicas especializadas e alunos da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa, numa parceria frutífera entre o Millennium bcp e a universidade. O outro, também intervencionado para esta exposição, reúne os trabalhos de Jorge Pinheiro, artista de invulgar erudição que na década de setenta dá corpo a telas de grande dimensão, cromaticamente uniformizadas em toda a extensão, sobre a qual se suspendem frágeis pontuações, como se de uma cartografia ou linguagem cifrada de cânticos e silêncios se tratasse. Em conexão com estes trabalhos, podemos ainda encontrar obras de António Palolo, Eduardo Batarda e Manuel Cargaleiro.

Mas se a Abstracção se gera na relação com o real, o desejo de resgatar a acção na imobilidade, de atravessar o reconhecível, o mimético, o paradigma da figuração e fazer do meio com que se opera um dos motores de construção da própria imagem, ela tem como expressão maior a ideia de movimento. É isso que se encontra nas telas de Vieira da Silva ou de Nadir Afonso. Mas também nas explosões cromáticas de Manuel D’Assunpção, nas visões dramatizadas de Nikias Skapinakis. Um turbilhão de intensidade gestual que se reconhece nos trabalhos de Arpad Szenes, nas delicadas construções de André Lanskoy, nas pinturas por acumulação de Paula Rego, nas lacerações pressentidas de Mário Cesariny, nos espargimentos de António Areal.

Há, em tantos destes trabalhos, uma sugestão paisagística lentamente desorganizada ou, ao invés, recomposta longe do que é reconhecível. Uma espécie de encontro entre o visível e um percurso interior com expressão máxima na exploração da matéria da pintura. Quando Zao Wou-Ki faz suceder o registo dos dias numa espécie de diário pictórico, em composições de grande dimensão e paleta cromática vibrante, o que se observa tem a capacidade de concentrar em si uma longa história (pessoal, política, pictórica, gráfica) em breve impulso. O mesmo sucede com Manessier, ainda que o carácter estrutural com que a pincelada feita mancha se empasta comporte um peso que os trabalhos de Zao Wou-KI não têm. É uma das obras mais relevantes deste núcleo, construída à imagem de painel retabular no auge de um momento de êxtase espiritual. Outra é a composição de Serge Poliakoff, obra imensa, na medida, no engenho formal da sua composição, no modo como a matéria e a cor são trabalhadas. Foi uma das pinturas restauradas para esta mostra, a par das Augusto Barros e Luís Demée.

Na linha de tensão entre figuração e abstracção, fazendo desse encontro terreno produtivo de criação, estão as pinturas de Luís Dourdil. Mas também as figuras abstracizantes de Júlio Resende ou Júlio Pomar, aqui postas em diálogo com as visões sombrias de Justino Alves e as paisagens fulgurantes de Menez e Teresa Magalhães.

Mais do que criar compartimentos estanques na leitura das obras, houve a preocupação de tornar o espaço tão orgânico quanto possível, aberto às descobertas do espectador, sugerindo mais do que uma cronologia estanque, encontros improváveis e mútuas significações.
Les chemins (os caminhos) de Vieira da Silva, à entrada, dão o mote…

Colecção de Arte Abstracta Millennium bcp

A proposta expositiva da colecção Millennium bcp, e que teve como origem o núcleo autoral mais significativo do conjunto aqui reunido: o da obra da pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva.

Composto por mais de uma dezena de trabalhos, é invulgar pela quantidade e qualidade das obras no âmbito do coleccionismo português, se exceptuarmos o caso conhecido de Jorge de Brito. É igualmente revelador de circuitos de reconhecimento, comercialização e coleccionismo que se foram estabelecendo, em especial depois de 1970, quando a sua obra foi vista com profundidade na mostra retrospectiva organizada na Fundação Calouste Gulbenkian e noutros eventos expositivos paralelos da Galeria 111 e Galeria São Mamede. Se, em França, a obra de Vieira da Silva era há muito conhecida, em Portugal apenas a mostra de trabalhos na Galeria UP em 1935, no ateliê da artista em Lisboa, um ano mais tarde, em 1956/57 na Galeria Pórtico e um encontro homenagem na Galeria de Março, onde o abstraccionismo era seguido e promovido atentamente, tinham permitido um contacto do público mais directo e amplo, fora dos círculos exclusivos das suas amizades, com as suas pesquisas pictóricas. Talvez por isso, Mário Cesariny refira em sucessivos artigos publicados no início da década de cinquenta que a pintora portuguesa que maior prestígio internacional gozava em Paris, em Portugal era praticamente desconhecida.

Quando, na década de setenta, o trabalho de Vieira da Silva foi exposto e o comércio das suas obras se adensou, fazendo disparar preços no mercado das artes, as atenções redobraram também sobre outros pintores da Escola de paris e seus contemporâneos, cuja importância era de resto conhecida e granjeava coleccionadores. Alguns desses artistas têm uma marcação na colecção do Millennium bcp e encontram-se representados na presente mostra. Tal é o caso de Arpad Szenes, Alfred Manessier, Zao Wou-Ki e André Lanskoy. Outros, estando ausentes desta exposição por não haver justificação em face do tema aqui abordado, não o estão da colecção, como sucede com Sonia Delaunay, Karel Appel, André Lhote, Ossip Zadkine e Bem Nocholson.
Mas esta exposição reúne ainda trabalhos de Mário Cesariny, Manuel Cargaleiro, Augusto Barros, Fernando Lemos e Justino Alves, artistas que, com maior ou menor grau de identidade, cruzaram o universo afectivo de Vieira da Silva. E não sendo esta uma exposição sobre a artista e seus amigos, vocação essa assumida, com toda a propriedade e eficácia, como linha programática, pela Fundação Arpad Szenes Viera da Silva, em Lisboa, esta mostra não poderia desse contexto e revela bem a sua presença e o leque de relacionamento gerados em seu torno. Algumas destas obras foram já vistas noutras circunstâncias: o seu registo fotográfico e documental consta de catálogos então produzidos, as anotações no verso das telas preserva a memória desse trânsito.

Pela qualidade das obras reunidas e pelo significado que adquirem na leitura das correntes internacionais que integraram, no final da década de setenta, início de oitenta, muitas incorporaram o movimento para a constituição de um novo Museu de Arte Moderna sito no Porto, constituindo o embrião de um longo projecto que culminaria com a fundação, primeiro da Casa, e posteriormente do Museu de Serralves.

Numa iniciativa bem articulada, promovida em primeira instância pelo crítico de arte Fernando Pernes, que procurava aliar a uma reflexão sobre o panorama artístico nacional (e portuense em particular) uma acção política e cultural justificada pelas transformações de 25 de Abril de 1974, outros críticos, artistas, galeristas, coleccionadores, instituições públicas e privadas vão sendo convocados a participar no debate. A face mais visível deste processo foi por isso a criação do Centro de Arte Contemporânea (CAC), em 1976, sedeado no Museu Nacional de Soares dos reis, no Porto, que apontava a formação de um novo núcleo museológico como necessidade premente. Para tal, esta nova entidade organiza exposições e reúne obras com vista à constituição de um futuro acervo, cativando os diferentes agentes a associarem-se à causa, depositando, ou emprestando temporariamente, obras das suas colecções no Museu Nacional de Soares dos Reis. Um desses agentes é o Banco Pinto de Magalhães, entidade financeira com sede no Porto, à data nacionalizado, detentor de um património artístico de valor apreciável que é disponibilizado para o futuro museu. Deste processo dá conta Fernando Pernes na rubrica “Carta do Porto” da revista Colóquio Artes, em Dezembro de 1976, mencionando, entre outros, alguns dos artistas representados nesta exposição (ainda que nem sempre com as obras aqui presentes). É o caso de Bual, Fernando Lemos, Jorge Pinheiro, Júlio Resende, Nadir Afonso, Paula rego e os internacionais Vieira da Silva, Arpad Szenes, Andre Lanskoy, Serge Poliakoff e Zao Wou-Ki.

Tratava-se assim do primeiro núcleo de trabalhos que permitia desdobrar até ao presente, de forma temporária e com qualidade abalizada, a acção do Museu Nacional de soares dos Reis – em consequência designado num período de então como “o único museu de arte moderna” – e viabilizar o projecto de um Museu de Arte Moderna na cidade do Porto. Em Dezembro de 1978, as obras da colecção do Banco Pinto de Magalhães são mostradas no Museu Nacional de soares dos Reis.

Com o Decreto nº3-A/78, de 9 de Janeiro foi criada uma nova instituição bancária denominada União de Bancos Portugueses. Resultava da fusão do Banco de Agricultura, Banco de Angola e Banco Pinto de Magalhães, absorvendo todo o seu património. Nesse mesmo ano, algumas obras da sua colecção e outras pertencentes ao Banco Português do Atlântico são apresentadas pelo crítico de arte Helmut Wohl, na mostra Portuguese art since 1910: the diploma galleries, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, na Royal Academy of Arts de Londres. Na sequência da primeira etapa da criação do Museu Nacional de Arte Moderna por assinatura de um despacho em Novembro de 1979, mas ainda sem casa própria, procede-se em 1980 ao arrolamento das obras que formariam o seu acervo. As pinturas pertencentes à União de Bancos Portugueses surgem então elencadas. De modo sucinto, mencionam-se, entre outras, as obras aqui expostas de André Lanskoy, Fernando Lemos, Serge Poliakoff, Júlio Resende, Zao Wou-Ki, Vieira da Silva e Arpad Szenes.

O passo seguinte seria arranjar um espaço condigno para instalar o museu e vencer as dificuldades económicas que até então tinham condicionado a aquisição de novas obras. Mas entretanto estavam lançadas as bases de reflexão do programa museológico e o acervo revelava-se faseadamente no Museu Nacional de soares dos reis, sob a intenção de envolver a opinião pública, fora de circuitos especializados, na defesa do museu e na preservação da sua colecção.

Um longo período medeia esta iniciativa e a consagração da Casa de Serralves, no Porto, como lugar efectivo de gestação do novo espaço museológico. Em Maio de 1987, a Casa de Serralves abre portas e reinicia-se o processo de prospecção, uma espécie de recenseamento artístico, de vários núcleos que poderiam constituir, senão o património do museu, um circuito de divulgação para conhecimento da arte portuguesa de referência, com destaques assinaláveis da arte internacional em colecções privadas. Potenciam-se assim passos dados ao nível do coleccionismo e do mecenato desde finais dos anos sessenta quando, em virtude de um contexto económico favorável e de acção de diversos agentes artísticos, muitas empresas se tinham mostrado sensíveis à promoção de prémios, exposições e à aquisição de obras de arte para as suas colecções. Uma dessas empresas foi o Banco Português do Atlântico, que em 1969 promoveu um evento expositivo na Sociedade Nacional de Belas artes reforçado pela atribuição de prémios de aquisição. Agora, em renovado contexto, incentiva-se ao não alheamento das instituições privadas da vida cultural portuguesa, dando visibilidade ao seu património. Nesse sentido, a Casa de Serralves lança convite para que, através de uma forma continuada de exposição, se possa valorizar esses acervos e colmatar uma falta de contacto endémica dos públicos com as obras de arte. Colocadas ao serviço da causa pública, as instituições privadas tornam-se um dos motores de viabilização do futuro museu e centros de reforçada responsabilidade pelo património que detém.

Assim, depois da abertura da Casa de Serralves com Obras doadas e cedidas para o futuro Museu Nacional de Arte Moderna do Porto e aquisições recentes, apresenta-se de seguida, em Julho, 30 Obras de Arte da Colecção da União de Bancos Portugueses, que inicia o ciclo de realizações culturais, destinado à pública divulgação das mais importantes colecções privadas de arte moderna existentes em Portugal, conforme se pode ler em catálogo. A par de um significativo número de artistas portugueses e brasileiros, de novo a marcação internacional teve destaque com obras de Serge Poliakoff, André Lanskoy, Zao Wou-Ki, Arpad Szenes e Vieira da Silva. Em Maio de 1989 esta mesma exposição é apresentada na Galeria Almada Negreiros, em Lisboa, ligeiramente reformulada.

Em Janeiro de 1988, a Casa de Serralves inaugura 35 Obras de Arte do Banco Português do Atlântico, repetindo-se em Março em Lisboa, na Galeria Almada Negreiros, numa iniciativa apoiada pela Secretaria de Estado da Cultura. Aí foi possível encontrar muitos outros trabalhos actualmente incorporados na colecção Millennium bcp, como Opus II nº40, de António Areal, Sainte Face du triptique bleu, de Messier, e Porto, de Vieira da Silva e de Arpad Szenes, presentes na actual mostra.

Trabalhos de Vieira da Silva e de Arpad Szenes pertencentes a colecções portuguesas voltam a ser vistos na Casa de Serralves, em mostra exclusiva, em Fevereiro de 1989.

A década de noventa trouxe alterações profundas no panorama económico nacional, com a privatização de várias instituições financeiras e, com ela, inevitáveis mudanças na situação das colecções de arte reunidas. O ano de 1999 fica por outro lado marcado pela inauguração do Museu de Serralves, depois de um largo período de indefinições, em termos de espaço, gestão, orçamentação, acervo e programa expositivo. O Decreto-Lei nº 150/95 de 24-06-1995 dá conta do início destes processos de reprivatização, em curso desde final dos anos oitenta: o do Banco Pinto & Sotto Mayor, o da União de Bancos Portugueses, o da aquisição parcial do Banco Português do Atlântico pelo Banco Comercial Português e Seguros Império, fusão cumprida em 2000.

É por isso compreensível que em 1996, quando a União de Bancos Portugueses é incorporada no Banco Mello, se revele uma imediata preocupação em recensear e divulgar as colecções recém-anexadas com a edição de um conjunto de publicações onde algumas obras expostas são reproduzidas.

domingo, novembro 28, 2010

Ana Ruivo

Ana Ruivo foi a investigadora responsável pela selecção das obras da colecção de Arte Abstracta do Millennium BCP. Esta colecção é ampla na dimensão e na cronologia que abrange, diversificada nos suportes, variada na proveniência. Resulta de uma herança de longo percurso que associa, numa só, a história de várias instituições financeiras. Fundidas sob a designação Millennium bcp desde 2003, foram incorporadas na empresa diferentes entidades bancárias e com elas, o património, os contextos, os discursos artísticos que cada uma reuniu, experimentou e absorveu enquanto exercia actividade.

Concebida a diferentes tempos, a colecção é consequência de quatro eixos fundamentais do ponto de vista patrimonial: o que se formalizou por via do Banco Comercial Português, criado em 1985, o que através dele se adicionou pela incorporação do Banco Mello em 2000, e com ele o que tinha sido anterior pertença da União de Bancos Portugueses, fruto da nacionalização, em 1978, dos bancos de Angola, Agricultura e Pinto de Magalhães, e privatizado em 1996 quando o Banco Mello o adquiriu; o que absorveu a extensa genealogia financeira do Banco Português do Atlântico e por fim, o reunido através do Banco Pinto & Sotto Mayor. Necessariamente eclética na sua natureza, congregando linguagens que vão da pintura ao desenho, gravura, fotografia, tapeçaria, cerâmica, mobiliário, numismática e medalhística, a colecção do Millennium bcp revela-se um campo de investigação frutífero: pelo estudo aprofundado dos seus núcleos disciplinares e as abordagens temáticas, transversais a cronologias, que permite; pela evidência de uma de uma história fecundada que se conta através das obras de arte e cruza em simultâneo os terrenos cultural e económico, na dinamização mútua da criação, do mercado artístico e das estratégias empresariais. Adquiridas para decoração de imóveis, inseridas em políticas mais complexas de transacções e incorporações de bens, transferidas a par das instituições a que estavam associadas ou guardadas em reserva, as obras de arte coligidas investem actualmente o Millennium bcp como depositário de um património inestimável do ponto de vista artístico, histórico e estético cuja responsabilidade de salvaguarda, valorização e fruição deve ser partilhadas por todos os colaboradores. E é neste quadro de diversidade e de responsabilidade social da empresa que algumas acções têm sido promovidas com vista à consolidação de um corpo de referência (disponibilizando obras do acervo para exposições capitais ou trazendo à colecção o olhar de diferentes especialistas de forma a contextualizar e valorizar o património reunido), à sua partilha com o público, impulsionando-a como estrutura geradora de conhecimento, identidade e cidadania.

A exposição itinerante Arte Partilhada, concebida pelo Millennium bcp com obras da sua colecção de pintura, marcou uma etapa neste processo e construiu um modo de inscrição de obras de arte que andavam arredadas da visualização pública no pensamento historiográfico da arte. Ainda que assumida pelo Millennium bcp como uma selecção institucional que referenciava algumas obras destacadas da colecção numa exposição intencionalmente plural, assente no paradigma metodológico de “uma obra – um autor”, escolhidos transversalmente ao longo de quase dois séculos, esta colectânea de 41 peças, revelava quanto a nós três aspectos importantes: a preponderância disciplinar da pintura na colecção, a sua amplitude cronológica e a diversidade de propostas visuais e de autores representados.

Se a experiência pictórica foi, na história da colecção do Millennium bcp, matricial na escolha das obras, revelando uma evidente apetência pela recepção desta linguagem, a verdade é que tal facto permitiu, sem que isso formalizasse um programa de aquisições pré-definido, a sua unidade em longa duração, com inúmeras possibilidades de reflexão. Permitiu igualmente que se fossem constituindo áreas de interesse, temáticas recorrentes e alguns núcleos autorais consistentes. Uma dessas áreas, porventura a que maior divulgação tem junto de um público especializado, prende-se com um interesse manifesto pela corrente naturalista que conduziu à reunião de obras de artistas como José Malhoa, Sousa Pinto, Carlos Reis, Alves Cardoso e João Vaz, entre outros. Mas outros há, mais singularizados, que permitem olhares igualmente unificadores e consolidam a percepção de muitos caminhos que artistas e coleccionadores percorreram na sua relação com a pintura.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Raquel Henriques da Silva


A curadora Raquel Henriques da Silva

Raquel Henriques da Silva curadora da Exposição “Arte Partilhada Millennium BCP, Abstracção”, aborda no catálogo deste evento o início da arte abstracta em Portugal, em especial na pintura.

A Pintura Abstracta em Portugal

Como acontece em todas as culturas nacionais que, por volta de 1900, tiveram Paris como centro de referência, também para Portugal foi o mais internacionalizado dos pintores da primeira metade do séc. XX que realizou os primeiros quadros abstractos. Refiro-me a Amadeo de Souza Cardoso, que viveu e trabalhou em Paris, entre 1906 e 1914, bem relacionado com outros artistas portugueses que fizeram o mesmo percurso de viagem, mas tendo sido o único que depressa procurou ligações mais interessantes para a elaboração de uma obra vanguardista. Assim, foi amigo, entre outros, de Modigliani, de Brancusi, de Sonia e Robert Delaunay, no entanto sem nunca cortar as amarras físicas e afectivas com a paterna Casa de Manhufe, onde regressava muito frequentemente.

Amadeo ansiava ser um artista moderno, mas por aprofundamento dos seus próprios interesses. A sua extraordinária obra, dramaticamente quebrada pela morte súbita aos trinta anos, percorre todas as fases do confronto com a tradição, incluindo o cubismo, o futurismo, o orfismo, o expressionismo, a abstracção e mesmo o dadaísmo, embora, neste caso, sem qualquer influência directa. Mas o artista sempre recusou liminarmente qualquer filiação estilística, mesmo que sem enunciados teóricos que seriam, alias, totalmente estranhos ao seu temperamento. Por isso, as suas pinturas abstractas, datáveis de 1912-14 são experiências entre outras, passageiras como todas, mas, como sempre também, magnificamente resolvidas. Em geral são estudos de formas e de cores que radicalizam temas miméticos, nomeadamente paisagens e naturezas mortas, cujos referentes são, deliberadamente ou não, elididos, na sequência de um conjunto de quadros cubistas.

José Augusto França, o primeiro historiador de Amadeo, considera que a sua pintura abstracta de “fins de 1913” permite pôr a hipótese de ele ter sido, senão o primeiro (nunca será possível abarcar os dados historicamente necessários que de vários quadrantes teriam de vir, de Paris a São Petersburgo, para tal afirmação em absoluto) a realizar a passagem por tal caminho, com certeza, porém, um dos primeiros a inscrever-se nessa situação. O que quer dizer, simplificando a afirmação, que segundo este historiador, Amadeo foi um dos primeiros pintores europeus a praticar a abstracção, facto que me parece incerto, nomeadamente em relação a Kandinsky, mas que terá inscrição no meio Parisiense.

Não sendo este o local para me deter, mais circunstanciadamente, no tema de Amadeo e a Abstracção, interessa apenas relevar que, como é sabido, esta obra fulgurante não teve quaisquer consequências no meio artístico português, onde as questões da vanguarda pictórica estiveram então praticamente ausentes. A sua morte em 1918, quando, terminada a Primeira Guerra, se preparava para regressar a Paris, impediu o desenvolvimento natural de uma carreira muito promissora. Apesar da dedicação de amigos, sobretudo Almada Negreiros, e da sua mulher, Lucie Souza Cardoso, Amadeo nunca foi exposto em Portugal antes da década de cinquenta. Então, depois de uma primeira exposição no Porto, na Galeria Alvarez, em 1959, o SNI (Secretariado Nacional de Informação) realizou uma grande exposição retrospectiva que, no ano anterior, fora apresentada em Paris. Houve reflexões entusiasmadas sobre a “descoberta” contemporânea do genial artista. Cito o artista José Escada que, num pequeno excerto, capta um dos traços mais pertinentes da poética da Abstracção: “Na pintura de Souza Cardoso, como em toda a que surgiu depois (cronológica e esteticamente falando), a natureza não está presente na sua aparência exterior, mas nos seus ritmos e cores essenciais.

Depois de Amadeo, a pintura abstracta só voltará a ser praticada em Portugal na década de trinta. Em 1931, Júlio, um dos pintores que se afirma no Salão dos Independentes de 1930, realiza Pequenos animais sobre a areia, composição abstracta, feita de linhas coloridas com curioso movimento. Trata-se de uma experiência poética, sem consequências na produção desse pintor autodidacta, irmão de José Régio e, também por essa via, muito próximo do ideário da revista Presença (1927-1940), onde se defendia a estética subjectiva e psicologizante como um dos veículos da modernidade literária e plástica.

Na mesma década, o abstraccionismo irrompeu na limitada cena artística portuguesa com inesperado fulgor. Refiro-me à exposição de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, em Lisboa, na Galeria UP, 1935, dirigida por António Pedro, uma das personagens fundamentais para a actualização da cultura portuguesa desses anos. Neste primeiro período do seu brilhante percurso, Vieira da Silva, vinda de Paris, encontrou na cidade em que nascera o ambiente afectivo e intimista próprio para a sua reflexão pictural. Aqui realiza algumas pinturas que, para todos os historiadores, marcam o arranque da sua estética labiríntica em que a abstracção é o dispositivo da invenção de complexas espacialidades feitas de pequenas formas coloridas. Sendo verdade que a artista não teve então discípulos e que poucos entenderam a radicalidade das suas propostas, mesmo assim ela deve ser evocada, depois de Amadeo, como o segundo elo da história da abstracção em Portugal.

Na década de quarenta, o abstraccionismo foi fazendo o seu caminho, embora quase sempre por vias paralelas. Podem citar-se experiências dos surrealistas que, afastando-se da realidade, não pretendiam criar um universo plástico abstracto e longe dos acidentes da matéria mas, pelo contrário, configurar a pluralidade de mundos nela contidos. Ou os traços peculiares da pintura de Júlio Resende que, no início da sua carreira, compreende que, para contar histórias em pintura, precisava de a libertar dos apertos da forma mimética e das cores previsíveis. Diverso é o caso de Fernando Lanhas que, sem contactos internacionais, elabora o essencial da sua poética, esta sim determinantemente abstracta, num desejo cosmogónico de equivalências entre a vida em todas as suas expressões e os movimentos misteriosos e antiquíssimos do universo.

Finalmente, na década de cinquenta, o abstraccionismo tornou-se uma corrente cada vez mais pujante na arte portuguesa, em consonância com a voga internacional dessa estética, a partir de Paris e de Nova Iorque. Nas suas formulações concretas, encontramos o abstraccionismo geométrico de Lanhas que, no rigor das sua geometrias e no esbatimento das cores, visa sondar os equilíbrios mais secretos entre o homem e o cosmos; o abstraccionismo geométrico também de outro jovem da Escola do Porto, Nadir Afonso, que com objectivos idênticos uma geometria serializada e em espectro cromático feito de cores primárias; mais exuberante foram os pintores, como Vespereira ou Fernando Azevedo, que, vindos do surrealismo, se envolvem numa gestualidade lírica em que o processamento das cores é determinante. Estes e outros artistas foram apresentados pela Galeria de Março, dirigida por José Augusto França, em Lisboa e, a partir de meados da década, por uma série de iniciativas, muitas delas promovidas na Sociedade Nacional de Belas Artes, que, ao longo dos anos sessenta, apoiou e promoveu as novas gerações de artistas, as suas problemáticas e os seus anseios. Ou seja, a arte moderna institucionaliza-se finalmente, reivindicando uma história de modernidade já prestigiada e, a partir de 1957, conseguindo o apoio determinante da recém aparecida Fundação Calouste Gulbenkian. Nesta época brilhante, dotada de novos dinamismos e de costas voltadas para a cultura retrógrada do Estado Novo, o abstraccionismo foi uma das matrizes mais importantes da atitude vanguardista que, além da sua expressão própria, contaminou as poéticas surrealistas e os novos realismos sob o lastro inquestionável de que para fazer pintura é preciso pôr em movimento a energia da sua específica matéria. Este é o contexto em que o crítico José Augusto França propõe o conceito de arte “não figurativa” para abarcar o território crescente de obras que não eram “arte abstracta geométrica”, afirmando:
“Se a «arte abstracta» cria formas como realmente deviam ser num universo lógico, a «não figurativa» dilui as existentes – e particularmente aquelas que os mitos surrealistas propuseram, já por si contrariando as leis naturais, sob uma nova luz onírica”.
Alargando o seu âmbito e diluindo as suas convicções, sendo geométrica, não figurativa ou informal, a arte abstracta não é nenhum dogma para os artistas que a praticam – por vezes a par de outras expressões estéticas – antes uma espécie de compromisso determinante do pintor com a sua vocação. Melhor do que eu, foi o que disse José Almada Negreiros, pintor vindo da geração de Amadeo e, que, por diversas vezes, no final da sua profícua carreira, cruzou o abstraccionismo (pense-se, por exemplo, no extraordinário painel gravado, Começar, 1969, no hall da entrada da Fundação Calouste Gulbenkian):

“Desde a grande janela aberta pelo impressionismo, ao agarrar a luz do cubismo e orfismo até ao abstraccionismo actual, foram-se dando jeitos para a novidade. Em breve fará um século! Nenhuma tradição de arte foi desmentida pela novidade: nós também iremos ver como vemos. O abstraccionismo ou não figurativo não impõe uma visão ao espectador, colabora com a visão, o pensar, o sentir, o olhar deste, evitando-lhe a passividade da admiração pelo alheio, e reconhecendo-lhe a sua legítima maioridade de gente farta de ter atingido a sua maioridade no mental e no sensível. Amanhã, a humanidade inteira surpreender-se-á de ver tudo nitidamente pelo abstraccionismo, como ontem pelo naturalismo”.

quarta-feira, novembro 24, 2010

A abstracção como estilo e como estética

A abstracção como estilo e como estética é o título da introdução ao catálogo da Exposição “Arte Partilhada, Millennium BCP, Abstracção”, da autoria da Professora de História de Arte, Raquel Henriques da Silva, que pela sua pertinência transcreverei aqui neste blogue.

“Algo teve inicio quando Kandinsky, ao entrar no seu atelier ao fim do dia, ficou surpreendido por ver uma tela «de indescritível e incandescente beleza» que não reconheceu sendo sua porque tinha sido pendurada de lado”
Michel Seuphor, La peinture abstraite. Sa genèse, son expansion.
Paris: Flammarion, 1964, p.11

O texto que escolhi para epígrafe é a narrativa mítica do nascimento da arte abstracta, através da evocação de Seuphor, um dos seus primeiros historiadores. Como é próprio dos mitos, a descoberta surgiu por acaso determinado, posta diante do olhar do artista, sendo o revelador uma pintura que ele próprio executara mas que não podia reconhecer, pela simples razão de que, pendurada incorrectamente, ela iludia o motivo (uma paisagem?) para enaltecer a “indescritível e incandescente beleza” das cores e das formas libertas da exigência de significarem outra coisa. Este momento fundador determinou o pintor a transpor a abstracção do mito para a história, realizando uma aguarela deliberadamente abstracta. Estava-se em 1909 e os artistas de vanguarda viviam a embriaguez de “tudo é permitido”, segundo a expressão do mesmo pintor (Seuphor: 12). De facto a reivindicação do fim da tirania do significado vinha de longe, preparando esse tempo revolucionário (a época das primeiras vanguardas, como lhe hão-de chamar os historiadores) que viu nascer o cubismo, o fauvismo, o futurismo, o orfismo, o suprematismo e, logo em 1913, os primeiros ready made Marcel Duchamp. O sistema das artes, que o século XIX questionara num crescendo de afirmação de subjectividades, colapsava perante uma energia criativa extraordinária que envolvia os artistas, os seus críticos e um número escasso mas aventuroso de coleccionadores. Esse tempo fundador que depressa adquiriu dimensão aurífica, só semelhante à da cultura pictórica italiana entre os séculos XV e XVI, foi vivido como um imperativo. Segundo Henri Matisse, “nós nascemos com a sensibilidade de uma época de civilização. Não somos mestres da nossa produção, ela é-nos imposta” (Seuphor: 9). Para clarificar melhor, vale a pena citar o início da narrativa do autor que vimos seguindo:

“Este século de invenções em cadeia, de crises sociais, de retraimento precipitado do mundo suscitou entre os seus filhos uma arte à sua imagem: revolucionária, inesperada; uma forma de arte ora irritante e agressiva, ora de aparência inofensiva e vazia de sentido – porque é assim, ainda hoje, o primeiro aspecto da pintura abstracta para o homem da rua que lança, casualmente, um olhar distraído para o interior das galerias de arte.” (Seuphor: 7)

Cinquenta anos depois de Seuphor, nenhum historiador de arte negará esse carácter peculiar da arte moderna nas primeiras décadas do século XX: a sua capacidade para espelhar as mutações da história humana. Mas, avaliando com mais cepticismo as revoluções técnicas, sociais e políticas (que não criaram um mundo mais justo, antes geraram uma escalada inaudita da guerra), estamos hoje em condições de considerar que as revoluções na arte, e na cultura em geral, serão talvez a mais prestigiada herança que a Europa de 1900 legou ao mundo. E não só pelas obras-primas, que as concretizam, mas pela reivindicação de liberdade individual e de direito ao sonho que as impuseram, Este esplendor com que a arte se ergue das histórias mortas, representando-as com imortal energia, não o encontramos apenas na Europa de 1900: Florença dos Médici, para restringir a situações consabidas do nosso espaço de pertença.

Na sucessão dos “ismos” que, desde finais do século XVIII, com o Romantismo, marca o advento da modernidade, o Abstraccionismo foi, para gerações de artistas, uma espécie de cumprimento de uma escalada quase natural. Do cruzamento fecundo entre a afirmação do direito do pintor escolher os temas do seu trabalho (liberto da autoridade, antes imperativa, do palácio e da igreja) e a consciência, também técnica e científica, de que o sistema pictórico clássico fora uma convenção idealizada, surgirão rupturas imperativas: a realidade não era um dispositivo de passividades que o artista diligente captava, mas um permanente construído, captável, segundo o naturalismo e o impressionismo, pela velocidade do registo, a valorização do espaço, o trabalho em série, a decomposição externa das possibilidades da cor. Destruídos e sucessivamente recriados, os motivos da pintura (também sob o impacto crescente da fotografia) serão, por volta de 1880, cada vez mais motivos picturais que as particularidades do fauvismo, do expressionismo e do cubismo particularmente exercitaram. A abstracção nasceu pela intensificação deste espírito experimentalista e do confronto de sensibilidades e possibilidades, como ponto de chegada natural do enfraquecimento das iconografias e do exercício académico da profissão. Será assim que Kandinsky poeticamente a afirma, nesse extraordinário livro intitulado Do Espiritual na Arte, publicado em 1910:

“Para o artista criador que quer e que deve exprimir o seu universo interior, a imitação das coisas da natureza, ainda que bem sucedida, não pode ser um fim em si mesma. E ele invejava a facilidade com a que a mais imaterial das artes, a música, o consegue. Compreende-se assim que o artista se volte para ela e que se esforce por descobrir e aplicar processos similares. Daí, a existência em pintura da actual procura do ritmo, da construção abstracta, matemática e também do valor que hoje em dia se atribui à repetição dos tons coloridos, ao dinamismo da cor. Emancipada da natureza como é, a música, para se exprimir, não tem contrário, na hora actual, ainda se encontra dependente desse processo. A sua função é ainda analisar os seus meios e formas, aprender a conhecê-los, como a música, por seu lado, fez desde há muito, e esforça-se por utilizá-los como objectivos exclusivamente picturais, integrando-se nas suas criações”.

Além de Kandinsky e mantendo-nos na esplendorosa cultura alemã vinda do séc. XIX, vale a pena recordar que também a história da arte contribuiu para a valorização da expressão abstracta, Basta evocar a obra de Alois Riegel (1838-1903), que estudou a produção artística da época romana tardia, distinguindo-a do classicismo, pelo seu pendor para a abstracção decorativa, em detrimento da representação do humano idealizado. É neste contexto que aquele historiador propõe o conceito de Kunstwollen, “a vontade artística” ou “a vontade de arte”, analisável ao nível da criação anónima, abarcando e transbordando a vontade individual. Pouco depois, outro historiador da arte, Wilhelm Worringer (1881-1965), abordará questões idênticas em Abstraction et Einfublung (1907), conceito este que significa “comunicação intuitiva com o mundo”, verificável em todos os estádios iniciais das diversas épocas artísticas.

O que esta nova história da arte trata – afastando-se das correntes positivistas ainda dominantes – é de uma dissolução de artisticidade que, afinal, não se restringe aos períodos de grande esplendor estilístico, antes aparece como consubstancial à vida subjectiva e à vida social, relacionada com geografias e histórias precisas. Este reconhecimento da amplidão da vontade e da capacidade artística é um dos aspectos mais interessantes da época: nas academias, desdobrem-se e valorizam-se os períodos de decadência, ao mesmo tempo que se estudam as artisticidades dos “povos primitivos” e das comunidades populares europeias. Simultaneamente, o novo domínio científico da psicologia irá revelar a importância da arte das crianças, dos doentes e dos loucos, pesquisas relacionadas também com as teorias gestaltistas da visão.

Sendo verdade que não há sempre articulações directas entre o trabalho da investigação e o dos artistas, é inquestionável que, nesses anos do início do séc. XX, os cruzamentos se fizeram de diversos modos, contribuindo para democratizar a ideia da arte e os seus desempenhos e para consolidar a sua importância na vivência individual mas também a todos os níveis da existência social.

Os artistas fundadores da abstracção foram particularmente sensíveis ao alargamento do campo artístico. Mais do que outros movimentos vanguardistas de 1900 (do cubismo, ao fauvismo e ao futurismo) Kandinsky, Mondrian ou Malevitch acreditaram, nas fases iniciais das suas carreiras, que estavam a criar uma arte nova que, apesar de ser admirada por grupos muitos restritos, se destinava, a médio prazo, a democratizar a produção e consumo da arte.

Este é o contexto que explica a articulação da pesquisa pictórica abstracta com movimentos artísticos que envolvem a arquitectura moderna e o nascimento do design, no caso de Mondrian, com o movimento holandês De Stijl; no caso de Kandinsky, com a Bauhaus alemã. Quanto a Malevitch, sabe-se quanto o seu abstraccionismo radical, designado Suprematismo, antecedeu os valores utópicos da Revolução Soviética de 1917, mas neles se integrará, situação de curta duração que depressa foi condenada pelo totalitarismo do Estado e pela sua defesa do realismo socialista. Pode ainda recordar-se que os fundadores da Abstracção, especialmente Mondrian, se interessaram profundamente pela essência do religioso que determinará o universo, numa via espiritualista de desdém pelas artes miméticas e de afirmação dos princípios da filosofia platónica.

A partir de 1918, o clima exasperado e expectante do final da Primeira Guerra, a emergência do Dadaísmo e da organização em movimento do Surrealismo tornam mais complexa a análise da produção artística de vanguarda europeia e, crescentemente, americana (do Norte e do Sul). Muitos artistas, vindos de formações académicas e culturais diversas, se cruzam, misturando, em doses subjectivas, os adquiridos de vinte anos de intensa criação. Progressivamente, a Abstracção tornar-se-á um dos movimentos históricos da vanguarda, ora reivindicado como estilística exclusivista, ora utilizado como poética inter-relacionada com outras. Os pintores que se consideram abstractos têm, à partida, duas matrizes estilísticas e estéticas de referência: o abstraccionismo geométrico, proposto por Mondrian e Malevitch, ou o abstraccionismo lírico de Kandinsky. Este evoluirá para práticas de contornos difusos, como gestualismo, o tachisme e a action painting de Pollock, figura referencial da arte americana dos anos quarenta que, na sua juventude, fora intensamente influenciado pelo realismo mágico e o surrealismo de Orozco. Quanto ao abstraccionismo geométrico, ele articula-se, desde o meio do século, com a Op Art e, com diversos influxos alheios, com o arranque do Conceptualismo.

Numa ampla diversidade interna, o Abstraccionismo é, por volta de 1950, uma das práticas mais internacionalizadas da arte contemporânea, centrado em dois focos irradiadores, Paris e Nova York, mas contando com relevantes escolas ou personalidades em todos os países. Mas não cumpriu o “fim da arte” sonhado pelos jovens Mondrian e Kandinsky, vendo-se permanentemente confrontado com as artes da realidade, imbuídas da dimensão fantasmática do surrealismo, das experiências dos Novos Realismos ou da energia urbana da nascente Pop Art.

Para encerrar esta sintética reflexão sobre a eclosão da arte abstracta, citarei um grande e popular historiador da arte, especialista de inquestionáveis épocas nobres (o Renascimento, por exemplo) mas que dedicou muito do seu trabalho a motivar os seus alunos e leitores para o facto de que a arte não está apenas nos museus e não é feita apenas por grandes mestres, antes nos é consubstancial, condição mesma da nossa existência individual e colectiva enquanto humanidade. Refiro-me a Ernst Gombrich (1909-2001), em texto de 1950:

“Muita gente que não tem paciência para o que chama “estas tretas ultra-modernas”ficaria surpreendida se soubesse como muitas delas já entraram na nossa vida, e ajudaram a modelar o nosso gosto e as nossas preferências. Formas e cores esquema, que foram desenvolvidas por pintores rebeldes ultra-modernos, tornaram-se a moeda corrente da arte comercial; e quando as encontramos em cartazes, capas de revista ou tecidos, parecem-nos afinal muito normais. Pode mesmo dizer-se que a arte moderna descobriu uma nova função ao servir como laboratório para novos modos de combinar formas e padrões.”

quinta-feira, novembro 18, 2010

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