quarta-feira, agosto 07, 2019

A Escola de Gaia


Laura Castro
A Escola de Gaia

Ao falar de artistas de Gaia num período compreendido entre os anos 60 do século XIX e os anos 20 do século XX, o panorama reduz-se quase obrigatoriamente à escultura.

De Escola de Escultores de Gaia se começou a falar insistentemente desde que António Arroio, em 1909, utilizou a expressão para caracterizar o núcleo de escultores que nasceram ou trabalharam em Gaia, sobretudo a partir da figura de Soares dos Reis. É com José Joaquim Teixeira Lopes (1837-1918), e à laia de preâmbulo, que começa a história dos escultores de Gaia. Só depois do introito que representou a sua atuação, se pode definir uma primeira geração com o nome de Soares dos Reis (1847-1889), ao qual se segue um grupo de escultores nascidos na década de 60: Joaquim Gonçalves da Silva (1865-1912), José Fernandes Caldas (1866-1923), António Teixeira Lopes (1866-1942), Augusto Santo (1869-1907), estes dois últimos discípulos de Soares dos Reis, a que pode reunir-se António Fernandes de Sá, da década seguinte (1875-1959). Contemporâneo deste núcleo é o pintor Manuel Maria Lúcio (1865-1943). Por último um conjunto de escultores nascidos nas décadas de 80 e 90, com numerosa presença de discípulos de Teixeira Lopes: José de Oliveira Ferreira (1883-1942), António Alves de Sousa (1884-1922), Diogo de Macedo (1889-1959), António Azevedo (1889-1968), Zeferino Couto (1890-), Henrique Moreira (1890-1979), José Fernandes Sousa Caldas (1894-1965), Adolfo Marques (1894-1960). Contemporâneos deste núcleo, sublinhem-se o pintor Joaquim Lopes (1886-1956) e o arquiteto Francisco Oliveira Ferreira (1884-1957).

Soares dos Reis regressa de Paris e Roma em 1872. Será preciso esperar treze anos para ver partir Teixeira Lopes para a capital francesa. E quando Teixeira Lopes se prepara para entrar na Academia (1901) e Fernandes de Sá, mesmo na viragem do século, obtém êxito em Paris (1896-1901), Oliveira Ferreira e Alves de Sousa estuda ainda nas Belas Artes do Porto, terminando o curso em 1905. Finalmente, quando Alves de Sousa está como pensionista em Paris e Oliveira Ferreira chega ao fim do seu período de bolseiro, terminam o curso António de Azevedo, Sousa Caldas, Henrique Moreira, Diogo de Macedo e Zeferino Couto (1911). Poucos anos separam a formação destes escultores, cuja atividade haveria de cruzar-se em diversas ocasiões.  Necessário se torna esclarecer a este respeito de “artistas de Gaia” que a questão da naturalidade não me parece decisiva na definição de vocações e de formações, sendo mesmo um critério pouco legítimo para apurar gerações de artistas e suas tendências dominantes ou mesmo para organizar, unicamente em função dele, uma exposição ou um estudo. O século XX veio diluir, de forma acentuada, a questão da geografia artística que impunha escolas por países ou regiões. Na contemporaneidade, e salvo algumas exceções, o termo “terra natal” não tem grande sentido quando falamos de artes plásticas. Portanto, esta fronteira gaiense é um pretexto para encarar um conjunto de artistas que viveram e desenvolveram a sua atividade a partir de Vila Nova de Gaia. Verifica-se até que alguns dos representantes dessa “Escola de Gaia” são oriundos de outros pontos do país: José Joaquim Teixeira Lopes é natural de S. Mamede de Riba Tua.

Para enfatizar esta ideia deve referir-se que, se a maioria é natural de Gaia, quase todos trabalharam no Porto e para o Porto. Ou seja, em Gaia medita-se, concebe-se, produz-se; no Porto, concretiza-se a obra, implanta-se em local público, perpetua-se a peça e o seu autor. Porto e Gaia mantiveram desde sempre estas relações estreitas, porque se as oficinas e os ateliers existiam em Gaia, era no Porto que se cumpria a formação. Afinal, este grupo de artistas apenas tirava partido das condições de mercado que lhe oferecia a cidade vizinha. E era também aí que se encontravam os locais de exposição: Ateneu, Misericórdia, Palácio de Cristal, Pátio da Associação Comercial (o local preferido por Teixeira Lopes, segundo relata nas suas Memórias) Salão Silva Porto.

Mesmo em relação aos ateliers que os escultores mantinham, alguns situavam-se no Porto: Fernandes de Sá trabalhava na R. Álvares Cabral (Bertino Daciano, 1949), Joaquim Gonçalves trabalhou numa oficina de escultura religiosa na R. da Fábrica (Romero Vila, 1964) e Henrique Moreira no Largo Actor Dias. O caso mais paradigmático desta situação é o de Henrique Moreira, natural de Gaia e que marcou decisivamente a imagem da cidade do Porto, em termos de estatuária pública.

Na mesma ordem de ideias, mas de razão inversa, refiram-se os irmãos Oliveira Ferreira – arquiteto e escultor – naturais do Porto, mas com oficina em Gaia, e com parte fundamental da sua obra aqui desenvolvida.

Forçando o esquema a adaptar-se aos exemplos disponíveis, outros poderiam ser acrescentados, como Eduardo Tavares, natural de S. João da Pesqueira, professor da Escola de Belas Artes do Porto e que manteve atelier na oficina de Soares dos Reis, já numa fase mais avançada do nosso século.

Prova bastante da apetência por esta terra e pelas suas figuras emblemáticas, e da capacidade de proporcionar alguma continuidade ao movimento nascido no século XIX. Apesar de toda a contenção de critérios anunciada, convém reconhecer a existência, em Gaia, de uma comunidade de escultores, em número muito razoável, que dominou parte da atividade artística, das encomendas e das exposições na passagem do século. As causas, se não cabem desenvolvidamente nesta abordagem, também não se poderão alhear dela. Têm sido frequentemente aduzidas razões como a proliferação de oficinas de barristas, de canteiros, de fundidores; a tradição da imaginária em madeira; a existência de fábricas de cerâmica; a realização de figuras de proa para os barcos, nos estaleiros de Gaia.

Mas o movimento inverso também será verdadeiro, a julgar pelas palavras de outro autor que considera terem as imagens religiosas de Teixeira Lopes – como a de Santa Isabel – exercido influência na arte dos santeiros populares (António Arroio, 1909). Todos estes fatores, ainda que indiretamente, contribuíram para um ambiente propício à criação artística e à decoração; montaram uma atmosfera habituada a conviver com estas áreas como atividades produtivas, conferindo-lhe um sentido utilitário e interveniente; geraram a habituação à tridimensionalidade, à modelação, em formas acabadas e prontas a colocar no remate de uma fachada, na decoração de uma frontaria, no conjunto ornamental de uma fonte, num jardim. É neste sentido que Ramalho Ortigão discorre sobre a superioridade da escultura, baseando-se no facto de os “escultores terem de ser submissamente, obrigatoriamente, operários (…) indispensavelmente (…) canteiros, fundidores, cinzeladores, barristas ou entalhadores” (Ramalho Ortigão, 1905). 

Nesta linha, leiam-se atentamente as considerações de outro crítico que estranha a falta de interesse pela escultura porque, reconhecendo que é mais difícil do que a pintura, é também “menos abstrata. Ocupa-se da forma em toda a sua verdade (…). Nenhuma convenção tem o escultor, apresenta a forma real que a sua conceção criou. (…) Passam as multidões quase sempre impassíveis diante das realidades do mármore ou do bronze para correrem entusiasmadas às seduções convencionais das imagens coloridas”. E noutro passo: “É pena por ser ela a arte que melhor faz a educação artística de um povo, pois em lugar de esconder-se sempre no recinto fechado dos edifícios, é à luz plena e livre das praças e dos jardins que ostenta o melhor das suas maravilhas.” (Ribeiro Artur, 1896).

A consciência crítica da época em relação à escultura revela ainda: “é a expressão de arte que em Portugal descreve a mais completa linha de evolução ininterrupta, desde os primeiros monumentos arquitetónicos coevos da fundação da nacionalidade até aos nossos dias”. E continua: “Não podemos, portanto, dizer, ao deparar-se-nos no século XIX tão admiráveis escultores como foi Soares dos Reis, como é Teixeira Lopes, que na sua raça não existisse a poderosa seiva artística de que eles desabrocharam”. (Ramalho Ortigão, 1905).

Qualquer dos dois autores citados trabalhou e exerceu atividade crítica face ao movimento de escultores que em Gaia se gerava e o facto de realçarem desta arte o seu lado mais oficinal e a sua faceta mais concreta, parece-me conferir-lhes um entendimento muito correto quanto ao interesse dedicado à escultura naquela vila. Toda esta argumentação encontra correspondência na conceção segundo a qual “a escultura se ocupa do corpo e a pintura da alma” (António Arroio, 1899).

Um caso muito particular da relação entre o tipo de oficinas referido e a escultura, é o de Adolfo Marques. Filho de um entalhador com o mesmo nome, desenvolveu, a partir da tradição familiar dos trabalhos em madeira, um conjunto de pequenas imagens celebrizadas como “bonecos de pau”. As peças realizadas, que recorrem à nogueira como material predominante, são de pequenas dimensões e apresentam uma fatura que cruza uma visão representativa com traços construtivos, tornando-as duras e facetadas. Traem a aprendizagem familiar inicial, mas também uma vontade de enveredar por novos caminhos que teriam sido aprofundados, não fora a desistência da Escola de Belas Artes frequentada até ao quarto ano. E é impossível não ver nestes “bonecos”, de ferreiros, de varredores, de figuras de procissão, de outras lendo a sina, de velhos sentados, de músicos populares, de D. Quixote e outros tantos de recorte literário, um aceno das figuras de cerâmica de Teixeira Lopes (Pai), no inventário de profissões e atividades populares. Muito mal conhecidas estas esculturas de Adolfo Marques provam a influência e a continuidade, atrás referida, da produção de barros, cerâmicas e trabalhos em madeira.

Um outro caso é o de Sousa Caldas que começou a conviver com a estatuária realizada  pelo pai – José Fernandes Caldas – autor de numerosas imagens religiosas, das quais as mais célebres se destinaram à Capela dos Bragas, no Porto, encontrando-se outras no Brasil, onde se radicou após a implantação da República, aí vindo a falecer. Sem que se possa estabelecer uma ligação direta entre as obras de Fernandes Caldas e as do filho, em termos de resultados plásticos, é inevitável admitir um traço de união entre as atividades que ambos escolheram.

Uma terceira figura é a de Fernandes de Sá, cujo pai tinha uma oficina de marmorista, o que permitiu transmitir àquele escultor o gosto pelos materiais que mais tarde viria a utilizar.

Diogo de Macedo iniciou-se na escultura a partir do contacto com a oficina de Fernandes Caldas, onde aprendeu a desenhar, a modelar e a esculpir a madeira.

Finalmente, nas suas memórias, Teixeira Lopes conta como começou por realizar os olhos de vidro com que abastecia os santeiros e figuras em barro, fornecendo feiras e romarias.

Da atividade destas gerações, Gaia conserva três edifícios simbólicos: o atelier de Soares dos Reis; a Casa Museu Teixeira Lopes, atelier do escultor a que se associaram, mais tarde, as Galerias Diogo de Macedo; o atelier de Oliveira Ferreira em Miramar. Edifícios que, na existência atribulada que conheceram, relatam também histórias dos artistas a eles associados.

O atelier de Soares dos Reis foi sempre um objetivo dos defensores do escultor que propunham a sua aquisição pela Câmara de Gaia, em movimentos mais ou menos organizados a partir dos anos 10 (Joaquim Antunes, 1990). Foi adquirido pelo industrial Manuel Pinto de Azevedo em 1938 e legado, por este, à Escola de Belas Artes do Porto, em 1947. Neste processo foi de grande importância a pressão exercida, nomeadamente por Joaquim Lopes, à imagem do que fazia em prol de uma casa oficina António Carneiro.

A Casa Museu Teixeira Lopes resulta do atelier fundado em 1895 pelo escultor e concebido pelo seu irmão arquiteto, José Teixeira Lopes. Em 1932 é doada com todo o seu recheio à Câmara Municipal de Gaia ficando o escultor como seu conservador e recebendo uma pensão mensal vitalícia. A este espaço ficou associado o nome de Diogo de Macedo ao qual foi igualmente dedicado um espaço de exposição das suas obras e da sua coleção, de que a Câmara tomou posse em 1971, tendo-se repetido a fórmula de uma pensão a receber, neste caso, pela viúva do artista.

O atelier de Oliveira Ferreira, onde trabalharam os dois irmãos, o escultor e o arquiteto, foi concebido por este último, autor muito desigual na sua produção que espelha ainda característica do ecletismo da passagem do século, que desenhou, entre outros, o edifício dos Paços do Concelho de Gaia (1925), rompe radicalmente com traços historicistas na Clínica Heliântia (1916). A oficina de Oliveira Ferreira foi doada à Associação Cultural Amigos de Gaia (Boletim dos Amigos de Gaia, 12, Maio 1982).

Com a preservação destes três edifícios, com o monumento a Soares dos Reis, com o busto de Henrique Moreira (de Manuel Pereira da Silva) e o de Teixeira Lopes (de Gustavo Bastos) Gaia vai homenageando a sua escola de escultores. Ultrapassando o âmbito cronológico, haveria ainda um conjunto de artistas a tratar: José Pereira dos Santos (1902-), Manuel Teixeira Lopes (1907-) Guilherme Camarinha (1912-1994), António Sampaio (1916-1994), António Coelho de Figueiredo (1916-1991), Manuel Pereira da Silva (1920-2003), Isolino Vaz (1922-1992), Paulino Gonçalves.


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