quinta-feira, janeiro 01, 2015

Charles Esche

Vanessa Rato entrevista Charles Esche (Público 22/12/2014), diretor do conhecido Van Abbemuseum.

É preciso uma arte útil, uma arte que possa liderar o processo de reconstrução do Estado, hoje em ruína.

Na conferência que na semana passada deu na Fundação Calouste Gulbenkian, Charles Esche comparou o descalabro do conceito de Estado na Europa a uma cidade após um terramoto de grande escala: num edifício tudo parece intocado e a funcionar, o prédio ao lado, porém, foi-se – abrimos a porta e percebemos que a fachada guarda apenas uma ruína, um buraco cheio de escombros.

Isto já aconteceu, constatamo-lo todos os dias, a cada passo. Agora resta reinventar. E Esche acha que os museus e teatros podem tomar as rédeas desse processo. Os tempos da arte pela arte acabaram – é preciso uma “arte útil”, diz ele. Um demagogo? O que ele diz é: “Eu sei que pareço um marxista enfurecido, mas não sou, sou apenas realista.”

Há dez anos à frente do conhecido Van Abbemuseum, de Eindhoven, na Holanda, e um dos responsáveis pela Afterall Publishing, que fundou em 1998 com o artista plástico Mark Lewis, Esche foi este ano um dos comissários da Bienal de São Paulo, depois de ter feito a de Gwangju (2002) e a de Istambul (2005). Fundador, em 2010, da Internationale, uma confederação de museus europeus, foi apontado pelo Center for Curatorial Studies do Bard College como o bolseiro de 2014 do Audrey Irmas Award for Curatorial Excellence, antes atribuído, por exemplo, a Harald Szeemann, Catherine David, Okwui Enwezor ou Lucy Lippard.

O Estado, ou os Estados, entraram em crise existencial. Uma crise de um tipo que já não se via há bastante tempo – provavelmente desde o fim do século XVIII, com o nascimento do conceito de Estado-nação. Diria que a combinação do projecto europeu com a globalização do capital e a perda de soberania – que é muito clara em Portugal mas é visível por todo o lado desde o início da actual crise, em 2008 – produziu um desafio fundamental: a ideia de Estado, tanto em termos de estrutura identitária, como em termos económicos e de estrutura social, que define um grupo de pessoas como cidadãos e lhes atribui direitos e responsabilidades, essa noção de Estado – que até certo ponto nasce da Revolução Francesa, mas que também deriva do estabelecimento da social-democracia na Europa do pós-guerra e que foi o modelo até agora dominante na Europa –, está ameaçada. Não é um fim que se possa propriamente celebrar. Em muitos sentidos, torna a vida mais difícil. Mas, através de várias manipulações e fracassos da social-democracia – manipulações através dos mass media, mas também fracassos do próprio Estado – a ideia de Estado parece, de facto, em decadência. E não vejo forma de que possa ser salvo de si mesmo na forma que até agora lhe conhecíamos. Os objetivos desse Estado talvez ainda se possam salvar. Mas é preciso que sejam traduzidos para novos suportes.

O fracasso do Estado em se adaptar a contextos e necessidades em mutação, ao fracasso do modelo do Estado providência, dos serviços nacionais de saúde, da ideia de que a cidadania é partilhada pelas pessoas e que, portanto, todas têm certos direitos, a própria ideia dos direitos que derivam de uma cidadania e dos deveres que lhe estão associados... No fundo, estamos a afastar-nos de uma estrutura democrática e a retomar um modelo oligárquico em que um pequeno grupo de pessoas organizam a maior parte das decisões e em que os governos, que não estão completamente em controlo, se alinham com essas decisões. Presume-se que um Estado tem um Governo e que o Governo determina o que acontece nesse Estado. Acontece que esta oligarquia é transnacional, é global, e é a nível global que opera. Se um Estado diz: vamos tentar lidar com esse problema, por exemplo, criando impostos mais altos para as atividades dessa oligarquia, ela diz: ah, bom, então vamos para outro Estado, o problema é vosso. Neste sentido, o Estado já não opera da forma que costumava. E isso nos últimos anos tornou-se óbvio para todos nós. Portanto, é o Estado que está em apuros.

Um dos conceitos para que me parece que devemos olhar com atenção é o dos “commons”, um conjunto de valores ou de bens que não têm um proprietário individual, mas coletivo. O Estado manteve para si durante muito tempo a ideia de “commons”, agora parece-me que há oportunidade de generalizar a ideia de propriedade coletiva. E parece-me que as próprias instituições artísticas incorporam já em si o conceito de “common”. As coleções dos museus, por exemplo: de certa forma, são já propriedade partilhada. Apesar de esta ser a Fundação Calouste Gulbenkian e de, basicamente, pertencer à família Gulbenkian, a forma como foi criada permitiu que todos os portugueses sintam alguma propriedade sobre ela. E é ainda mais assim em relação a uma coleção num museu nacional. Portanto, há uma ideia de “common” já inscrita nas instituições artísticas. E esse é um legado sobre o qual podemos construir. Outra coisa é esta estranha função que a arte manteve em toda a sociedade democrática e burguesa que é assumir-se como um espaço de liberdade, um espaço de experimentação. Não é um valor universalmente partilhado, mas é uma assunção comum que a arte é uma esfera onde são permitidas coisas que não são permitidas noutras esferas – a maior parte das pessoas dirá que é importante que a arte seja livre e que os artistas possam fazer o que querem. E isto é uma coisa de que nos podemos aproveitar. Podemos instrumentalizar a ideia de autonomia inscrita na aceção ocidental de arte, que é que a arte faz as suas próprias regras. Podemos instrumentalizar isso para ajudar a resolver a questão do fracasso do velho Estado social e das estruturas do Estado em geral.

Vivemos tempos assustadores, precisamos de conceitos assustadores para lidar com eles. Essa autonomia é uma posição que a sociedade nos permite ocupar – então vamos usá-la, vamos aproveitar o facto de podermos usufruir dessa liberdade! Temos uma condição diferente da das instituições de educação, por exemplo, que são altamente instrumentalizadas. O tipo de educação que se oferece está hoje diretamente ligado aos mercados, exatamente como acontece em tantos outros sectores da sociedade que já pertenceram ao Estado e foram entretanto privatizados, ficando nas mãos da mesma oligarquia internacional de que falava há pouco. O mundo da arte, à sua pequena e impotente escala, é ligeiramente diferente. O que peço é que usemos essa diferença.

A arte se oferece como espaço para a experimentação. E defendo essa ideia de experimentação. Mas digo que ela não deve ser apenas estética, deve também implicar-se em termos de organização social. De novo: é qualquer coisa que os puristas, os modernistas, vão rejeitar, mas se virmos a arte como tendo uma função, uma delas tem que ser imaginar qualquer coisa que ainda não existe. Isto é necessário e verdade em qualquer processo criativo, quer seja socialmente criativo, individualmente criativo ou mesmo criativo em termos capitalistas, de criação de um novo produto: o processo de imaginar o que ainda não existe é fundamental – se não conseguimos imaginar, será muito difícil criar. E o que estou a dizer é que se o espaço da arte é já imaginar coisas diferentes das que existem, então porque não imaginar a sociedade? Porque não imaginar uma sociedade diferente da que temos e não apenas aplicações para um vermelho ou verde?

Uma das grandes questões nos museus é o que fazer com a herança que recebemos – as nossas coleções. No Van Abbemuseum temos uma coleção de arte moderna. Uma das perguntas é como podemos torná-la mais atual, mais contemporânea. Limitamo-nos a mostrá-la? Quer seja um Sol LeWitt ou um Lawrence Weiner, mostrar e dizer: ‘Esta era a cultura que existia nos anos 1970; não era maravilhoso?’ Da mesma maneira que podemos mostrar uma urna grega e dizer: ‘Não era fantástica esta cultura?’ Ou será que podemos tornar a coleção relevante face a conceitos contemporâneos? Uma coisa que fizemos com um coletivo dinamarquês, os Superflex: eles copiaram um dos Sol LeWitt da coleção e depois distribuímos as cópias gratuitamente aos visitantes. O que aconteceu foi que a ideia de uma obra de arte conceptual, que se materializou num objeto com um valor de mercado, voltou à sua matriz conceptual – porque o que o Sol LeWitt dizia que importava era a ideia, não o resultado material dessa ideia. Neste projeto, voltámos à ideia original e tentámos atualizá-la para o público de hoje. As pessoas puderam realmente levar uma obra de arte para casa. Houve um momento maravilhoso em que se via as pessoas a saírem do museu com uma obra de arte na mão. Que é o oposto do que um museu é suposto fazer, que é proteger tudo, garantir que não foge. Nós, na verdade, escancarámos as portas. E ao quebrar os protocolos que dizem que não se distribuem as obras de arte dos museus pelo mundo, começámos a atualizar o potencial que existe nessas obras. É um exemplo. Haveria muitos.

A arte pela arte existiu dentro de uma estrutura socio-politico-económica específica, um contexto de excesso produzido pela burguesia, que achava que a arte não devia ter uma função porque a sociedade era rica ao ponto de poder conceber um fora do utilitarismo. Nessa sociedade, a arte recebeu um papel específico, um papel que, à sua maneira, também era político. E no período da Guerra Fria essa arte pela arte foi instrumental, servia para provar a liberdade do mundo ocidental por oposição à instrumentalização que o leste fazia da arte e dos artistas. Portanto, tanto em tempos mais recuados como mais recentes, essa ideia existiu em contextos muito específicos. Contextos que já não existem. Faz muito pouco sentido em 2014. E a sua sobrevivência até agora foi, na minha opinião, um acidente histórico, um lastro deixado por regimes anteriores.

No museu usamos a expressão espanhola “arte útil”. A ideia da arte como ferramenta [porque, em castelhano, “útil” quer também dizer ferramenta] parece-me mais sedutora do que a ideia de uma arte utilitária. Creio que transmite bem a capacidade da arte em assumir um papel funcional dentro das estruturas de pensamento. E isto implicará determinadas características: uma arte útil terá uma relação real com o mundo, não será apenas simbólica, não usará apenas uma linguagem simbólica, mas fará propostas reais para mudanças reais do mundo real, satisfará talvez uma necessidade ou produzirá um resultado com efeitos fora das instituições da arte. Isto tem antecedentes. Certas formas modernistas, como as ligadas às vanguardas russas, estão muito ligadas a ideias como estas. E se formos até ao século XIX temos as propostas do [crítico de arte e social britânico] John Ruskin, ou as do [artista e fundador do movimento socialista inglês] William Morris, em resistência à industrialização. Um conceito como o de “arte útil” recorda que a arte pode ter uma função genuína na sociedade. O lugar que ocupava e as funções que tinha no Estado-nação da social-democracia estão a desvanecer-se, tal como essa ordem do mundo. Temos que encontrar novas justificações para o papel da arte e acho que esta é uma delas.

Se pensarmos que um Jackson Pollock foi profundamente instrumentalizado pelas políticas do período da Guerra Fria, não sei onde fica essa arte pela arte sem uma relação com a sociedade, sem um papel social. Não me parece que a noção do “espectador desinteressado” ainda seja especialmente válida. Não me parece que hoje ainda seja possível ocupar a posição de alguém que pode produzir julgamentos estéticos tendo por base o seu “desinteresse”, a sua exterioridade e neutralidade. Vivemos tempos de necessidade, tempos em que temos que perceber o papel da arte. E ela sempre teve um papel, nunca foi não instrumental. A única questão é que durante muito tempo nos recusámos a ver isso. Em suma: acho que a questão é como é que instrumentalizamos a arte e não se podemos instrumentalizá-la.

Quando falamos da crise, no singular, parece haver apenas uma [a financeira e económica]. Não é verdade. Uma das crises é ambiental. Algumas pessoas não aceitam a sua existência, mas, genericamente, vemos que os recursos de que precisamos para viver bem exigem sistemas de valores e padrões comportamentais diferentes [dos que temos vindo a adotar]. Depois, também há uma crise política, uma crise de representação – os políticos já não nos representam. Diria que a maior parte das pessoas que viveram as velhas democracias não sentem que o atual sistema seja representativo delas ou das suas comunidades de forma eficaz – o Syriza [coligação de esquerda grega] ou o [partido espanhol] Podemos são exemplo da forma como continuamos a batalhar por uma representatividade, mas o próprio sistema reage contra. É uma tragédia, mas acho que temos que ser honestos: estamos a encaminhar-nos para uma pseudodemocracia em que os pseudo processos eleitorais e os sistemas de pseudo representatividade mascaram uma oligarquia. Uma oligarquia sendo um grupo de pessoas bastante fixo – o chamado 1%, a classe dominante – que basicamente manipula as decisões políticas de forma a que os seus interesses sejam protegidos acima de quaisquer outros. Acho que, neste momento, todos vemos isto e percebemos que essa oligarquia se mantém intocada. Mas, paradoxalmente, a força e poder dessa oligarquia também se tornaram maiores. Se olharmos para as consequências da crise, constatamos que a oligarquia maximizou o seu potencial de rendimento. Fê-lo às custas da maioria das pessoas. E os media e a maioria das forças de persuasão usadas para nos convencer de que isso é aceitável dedicam-se a proteger esses interesses. Ou seja: vivemos tempos oligárquicos, a questão é o que vamos fazer a esse respeito.

Ao levar o Estado a retirar-se [a oligarquia] alarga cada vez mais o seu espectro de atuação. A maioria dos museus foi criada a partir de fundos públicos – e isto tanto é verdade para os Estados Unidos, com os incentivos fiscais, como para a Europa, com o financiamento público direto. Entretanto, começaram a abrir cada vez mais museus privados. O que levou a uma explosão brutal do mercado da arte, que foi uma consequência do excesso de riqueza que a oligarquia produz. E como o domínio público tem muito menos riqueza do que o privado, torna-se cada vez mais difícil reter certo tipo de obras nos museus públicos. Ou seja, o interesse coletivo começou a ver-se cada vez menos representado, em prol dos interesses dos colecionadores privados. E houve uma mudança nas estruturas de poder nos museus, que passaram da dependência de estruturas democráticas como as câmaras municipais e os ministérios da cultura para a dependência de conselhos administrativos normalmente compostos por membros diretos da oligarquia. As fundações privadas, por exemplo: uma vez mais, são instrumentos usados pela oligarquia para libertar alguns dos seus lucros, algum do seu excesso financeiro. E os museus estão cada vez mais nas mãos destas figuras oligárquicas. Dantes, para verem os seus projetos financiados, os diretores dos museus tinham que ir em visita suplicante a ministros democraticamente eleitos, agora têm que ir em visita suplicante a oligarcas.

Em qualquer das grandes feiras de arte contemporânea, seja em Miami, Basel ou Hong Kong, vemos as consequências estéticas disto. Obras reluzentes, planas, superficiais, grandes. Sobretudo, obras de grande escala, feitas para grandes palácios. Ainda há pouco tempo ouvi alguém comentar que a verdadeira felicidade de comprar uma obra de arte reside na negociação do preço e no momento de vanglória ao jantar. O objeto, aqui, não é grande coisa – o que importa é o processo de consumo. O que, em parte, é verdade: o capitalismo construiu uma lógica de consumo em que um objeto nunca é tão desejável como no minuto exatamente antes de o comprarmos; no momento em que o compramos surge uma sensação de desilusão. Isto acontece em grande escala nas oligarquias. A grande emoção está no objeto que se segue. E claro que isso determina o facto de o [conhecido artista plástico britânico] Damien Hirst poder fazer uma caveira de [platina e] diamantes [que o artista disse ter sido vendida por 63,8 milhões de euros]. Pode porque esta estrutura lho permite. É óbvio que o domínio oligárquico tem consequências estéticas. Mas a estética e a ética estão muito ligadas: são também decisões éticas as que os artistas estão a tomar ao decidirem contribuir para esse sistema.

Damien Hirst e alguns teóricos dirão que a caveira é, na verdade, uma crítica ao sistema. E até certo ponto é. No sentido em que qualquer sociedade decadente produz uma arte que, retrospetivamente, poderá sempre ser vista como crítica do seu contexto. Assim, seguramente que o século XXI tardio olhará para tudo isto dessa forma. A maioria da arte a ser feita hoje poderá ser vista assim. Os Damien Hirst e Jeff Koons, gente assim. Que realmente capturam o sabor deste momento, sem dúvida…

O que me interessa não são tanto os objetos, mas os próprios processos da arte e o que eles possam possibilitar. E o Damien Hirst e o Jeff Koons também poderão possibilitar certas coisas. Mas menos do que os artistas a trabalhar hoje em contextos muito específicos no nordeste do Brasil, por exemplo, ou no Líbano, ou artistas maori da Nova Zelândia. Interessam-me as culturas onde há um sentido especial de relação à terra e à história mas onde, ao mesmo tempo, se tenta transcender isso, construir um diálogo entre a experiência da maioria da raça humana e uma noção de existência planetária, um discurso que leva em consideração as condições ambientais em que vivemos e a dureza da história de dado lugar. Trabalhos que lidam com a complexidade destas relações são os que me interessam, porque acho que são aqueles que antecipam um futuro. No fundo, acho que são uma vanguarda, enquanto os Damien Hirst e os Jeff Koons são o “mainstream”. No fundo, estou à procura do que será, em vez de daquilo que já é.

sexta-feira, dezembro 19, 2014

Os artistas, as suas obras e a necessidade de risco

Nuno Crespo, ípsilon o melhor de 2014

Em 2014, houve uma insistência na exposição antológica e uma deslocação da atenção nas obras para a atenção no artista.

Indiscutivelmente e a muitos níveis este ano será marcado pelo fim do BES e por todas as consequências desse fim. Nas artes visuais a falência do banco trouxe o fim do Avenida 211, um espaço de ateliers e de exposições com enorme qualidade, diversidade e onde se puderam assistir a exposições notáveis que dificilmente encontrariam outro contexto para serem desenvolvidos.

O que predomina é a crise e neste cenário a pergunta que mais recorrentemente todos fazem é: até quando? E esta não é só uma pergunta pela recuperação da saúde e dinamismo do mercado da arte, mas essencialmente uma pergunta por um outro contexto institucional em que obras, autores e público se possam relacionar de um modo mais livre, diverso e arriscado. E uma das expressões desta ausência de risco está na inexistência de exposições coletivas, de investigação, em que a atenção monográfica sobre os autores dá lugar à construção de um pensamento com e a partir de obras de arte singulares.

Há as exceções conhecidas em que outras geografias da arte e do mundo são trazidas a debate, mas na sua generalidade assiste-se a uma deslocação da atenção nas obras para a atenção no artista e a uma insistência na exposição antológica, na afirmação da autoridade de um autor, na confirmação de um percurso.

Não se trata de minorar autores individuais e o papel fundamental que alguns deles têm ao conseguirem, através das suas obras, iluminar todo um tempo e uma geração em conjunto com as suas aflições e transformações, mas trata-se de constatar o domínio de uma tipologia expositiva e daí retirar consequências. Esta é uma situação para a qual todos contribuem — os jornais e a sua ideia de informação, a crítica, as direções dos museus e centros de arte e o predomínio das análises estatísticas, a sua obsessão pelo público como principal critério de gestão cultural e programação, etc. — e em que predomina o preconceito do sucesso: os espaços expositivos são hoje lugares dos casos de sucesso de onde estão ausentes a experimentação, a investigação, os projetos exploratórios e o risco a eles associados.

A primeira consequência desta transformação é que as exposições são hoje, sobretudo, reflexo das dinâmicas do mercado e não expressão da singularidade das propostas artísticas, nem tão-pouco materializam linhas de pensamento sobre a realidade, a qual se questiona, investiga e se tenta alterar. Muitas vezes e motivado pelo forte constrangimento financeiro, é o mercado que possibilita exposições, são os seus agentes que através de generosos patrocínios possibilitam e viabilizam exposições, pagam catálogos, oferecem obras a troco da promoção e valorização do conjunto certo de artistas. E as exposições que requerem mais investigação, mais tempo, maiores riscos são secundarizadas e esquecidas. Trata-se do predomínio do artista bem-sucedido (sendo que os critérios de sucesso são muitos e variados) e da ausência de exposições que pensem a nossa condição presente, isto é, exposições que sem caução e sem as garantias da história da arte, dos seus acontecimentos consagrados e longe dos seus protagonistas principais arrisquem pensar os paradoxos do quotidiano.


Num importante texto Alison Gingeras, conhecida historiadora de arte americana, dizia numa importante revista de arte, a ArtForum, sobre um artista: não interessa pensar sobre as suas obras, elas são imunes a tudo o que sobre elas se disser, porque o seu autor através da mitologia que sobre si forjou e do sucesso obtido, conseguiu tornar as suas obras indiferentes a qualquer disputa e, com isso, garantir no olimpo da história um lugar de destaque para toda a sua obra. O texto de Gingeras é sobre Jeff Koons, mas ele serve aqui como ilustração e sintoma da deslocação da atenção que temos vindo a descrever em que os autores colocam à sua sombra o seu trabalho e, assim, o eclipsam.

quinta-feira, dezembro 11, 2014

Martha Rosler

Martha Rosler, tinha 20 anos quando o século XX entrou na década de 1960. Assistiu à transição entre o que restava do mundo moderno e o novo mundo contemporâneo. Mudança após mudança. “Se queremos algum tipo de revolução, temos que fazer manifestações, estar lá fora, organizarmo-nos, dedicarmo-nos.” E isto nem sequer é ativismo. É “cidadania”, disse ao PÚBLICO numa entrevista à margem do Fórum do Futuro, no Porto, onde foi conferencista convidada.

Começou a sua conferência por explicar que, nos anos 1940, quando Jackson Pollock estava a fazer as suas pinturas abstratas, nem os artistas nem os públicos da arte poderiam imaginar a ligação intrínseca entre o seu mundo e os grandes fluxos financeiros internacionais.

A forma como Pollock trabalhava as telas, no chão, tinha qualquer coisa a ver com a ideia de território e posse territorial. Na verdade, o facto de ele desistir da perspetiva – que foi o que fez com a sua pintura – liga-se com a história da posse de terra. Há isso e o mais óbvio: a relação com o dinheiro, que se intensificou muito, porque se tornou muito mais visível. Pollock fez parte da primeira geração de artistas em que os mercados financeiros mundiais se tinham focado nos Estados Unidos e se tinham tornado completamente hipertróficos. Tudo isso e a emergência da cultura de celebridades pesou muito sobre os expressionistas abstratos, a maior parte dos quais faziam parte de uma cultura de boémia outsider vagamente empobrecida.

Acho que podemos dizer que o expressionismo abstrato foi destruído pela sua relação com o dinheiro e a fama. Diria ainda que há uma razão para o modelo de transcendência que ele propunha não poder legitimamente manter-se no mundo do pós-guerra: a economia. Portanto, sabemos mais [sobre a relação entre arte e dinheiro] e a pressão intensificou-se vastamente. Toda a gente que tem hoje alguma relação com o mundo da arte, mesmo ao nível mais popular, percebe a ligação deste mundo ao mundo das finanças, especialmente nos Estados Unidos. Como alguém dizia, chegámos a um momento em que alguns dos artistas são tão ou mais ricos quanto os seus colecionadores. Não é exatamente assim porque alguns dos patronos da arte são incomensuravelmente ricos, mas, obviamente, há artistas que se tornaram extremamente ricos. A ‘financialização’ da arte disparou até para o topo da cobertura [mediática] que se faz do mundo da arte. Em publicações [de referência] como o New York Times os leilões são tão história quanto [as exposições]… É como os desportos profissionais – aquilo de que ouvimos realmente falar é dinheiro, quem custou quanto, quem está a fazer quanto, qual dos grandes jogadores conseguiu o melhor contrato e quantos milhões de euros ou dólares por ano faz.

O mundo da arte tornou-se numa espécie de grande sprint anual, os cem metros barreiras para ver quem chega ao fim melhor cotado no mercado. É uma quantificação e ‘financialização’ de qualquer coisa que antes considerávamos estar fora do sistema de avaliação das mercadorias [cujo valor depende das leis da oferta e da procura] e que agora sabemos estar completamente lá dentro. Isto começou a acontecer há pelo menos quatro ou cinco décadas. Não podemos fingir que é novo. Mas atingiu um ponto inaudito. Vejamos uma referência mais popular – os filmes: hoje em dia julga-se um filme pelos seus resultados de bilheteira. Se um filme for um sucesso de bilheteira, as pessoas nem se dão ao trabalho de falar do facto de ser ou não um bom filme. Talvez, mais tarde, numa coluna mais especializada [na imprensa], mas o grande título imediato é sempre: “Nº 1 nas bilheteiras”.

A pintura era uma arte de cavalete. Depois, tornou-se grande de mais para estar no cavalete. O que Pollock fez que ninguém tinha feito antes foi tornar a pintura não numa representação da paisagem mas em paisagem. E há uma certa ironia no facto de a tela passar a ser um território para ação [action painting] e de essa ser uma boa janela através da qual ver a relação entre a arte e o poder. Os terra tenentes não poderem definir a sua propriedade sem um sistema métrico. Também não se pode representar a paisagem de forma a que pareça real sem a perspetiva. Ora, a história da pintura é a história do desenvolvimento e da rejeição da perspetiva – porque o abstracionismo é a rejeição da perspetiva, a opção pela bidimensionalidade, sendo ainda, ironicamente, sobre território. Isto é especialmente irónico no caso do Pollock, porque ele pinta com a tela no chão. A tela dele é um espaço em que percorremos um território. E mesmo quando ele, no fim, volta a pôr a tela na vertical [na parede] toda a gente percebe que a forma como ali se chegou a um “significado” derivou da horizontalidade. Tal como a terra tenência está na base da acumulação de capital, estas pinturas também se tornaram num princípio de acumulação de capital. Na altura, ninguém estava a pensar sobre isto, mas eu não consigo deixar de pensar.

O modelo de transcendência proposto pelo expressionismo abstrato não poderia ter lugar no mundo e na economia do pós-guerra, porque os artistas dependem das ideias dos seus patronos. Por isso é que costumo falar no desenvolvimento dos públicos burgueses a partir de finais do século XIX e nas teorias que apontam o abstracionismo, o simbolismo e etc., como formas de fugir às questões do realismo, que levaria à representação das classes trabalhadoras e da militância do operariado. Claro que os artistas fizeram muito disso, mas principalmente no desenho e na gravura. E os que o fizeram não se viram muito bem pagos por isso pelos seus patronos, que, na verdade, queriam era ver outras imagens.

O modelo de transcendência corresponde ao facto de os artistas nos mostrarem outro mundo. Era uma teoria muito importante. Mas, no momento em que o [centro do] mundo da arte se muda [de Paris] para Nova Iorque [na década de 1940]… O patronato nos Estados Unidos nunca se interessou muito por especializações intelectuais ou teorias da representação, quer apenas coisas muito imediatas. Como Rockefeller disse um dia sobre [a pintura de Mark] Rothko – e vou parafrasear: oferece um espaço de relaxamento ao homem de negócios cansado. Isto é perfeito! O espaço da abstração é uma vista sobre outro mundo, sem quaisquer especificidades. Mas isto não podia durar, porque a arte passou a ser apreciada de forma massificada. Quando se tornou numa mercadoria, uma mercadoria cara, Jackson Pollock apareceu na capa da revista Life. A revista Life estava praticamente em todos os lares americanos! Estava nos consultórios médicos – estava em todo o lado. Definia a imagem do mundo. Antes de a televisão estar em casa de toda a gente, estava lá a Life. E, na capa, um dia, apareceu este artista que estava a destronar Picasso como o mais importante artista do século XX. Pollock acabou por morrer bêbado num acidente de carro muito pouco tempo depois e esta ideia de que a arte é suposto ser sobre outra coisa qualquer, misteriosa, transcendente… É um bocadinho doutrina católica, tudo isto. Não sei…


Os jovens artistas hoje vêem-se como produtores de mercadorias transacionáveis. Os que se projetam numa carreira de sucesso de cerca de 10 anos. É como os milionários.com: tinham uma ideia, que era comprada, reformavam-se e tinham uma vida feliz algures a não fazer nada que não quisessem. É o que pensam muitos jovens das escolas de elite, pelas quais pagaram muito dinheiro. Pensam: faço uma fortuna e desapareço durante a noite.

terça-feira, dezembro 02, 2014

Hiper-arte

A idade da inflação estética está descentrada, des-hierarquizada, estruturalmente eclética.
Estamos numa cultura fragmentada, balcanizada, onde se multiplicam as mestiçagens mais diversas, onde coabitam os estilos mais dissemelhantes, onde as tendências cool proliferam sem ordem, sem regularidade temporal, sem unidade de valor. Com o capitalismo transestético triunfa uma profusão caótica de estilos num imenso supermercado de tendências e looks, de modas e de design. É uma proliferação dissonante, desregulada, que caracteriza o domínio estético contemporâneo, paralelamente às desregulamentações económicas, constitutivas do turbo capitalismo.

Encontramos em todos os grandes museus do mundo as obras ou exposições dos mesmos artistas contemporâneos em voga.

Segundo a Organização Mundial de Turismo, tornou-se, com os seus 900 milhões de viajantes internacionais, a primeira indústria do mundo, representando cerca de 12% do PIB mundial. Nunca as exposições e os museus atingiram tais recordes de frequência, 8,8 milhões para o Louvre, 6,5 milhões para o Palácio de Versalhes, 3,6 milhões do Centro Pompidou, em 2011.

A dinâmica inflacionista não diz unicamente respeito aos objetos, estilos e tendências, mas também aos monumentos classificados (em França conta com 38.000 monumentos históricos e 300 aldeias pitorescas) e lugares de exposição de arte. Em primeiro lugar, os museus e os centros de arte contemporânea: em todo o mundo, o número de museus aumenta 10% de cinco em cinco anos, havia nos Estado Unidos, antes de 1920, 1200 museus e cerca de 8000 no início da década de 80. Diz-se por vezes, por graça, que se cria um museu por dia na Europa: mais de 30.000 museus estão hoje inventariados nos 27 países da União Europeia. Paris conta por si só com mais de 150 museus. O número de museus em França é objeto de debate: em 2003, a Direção de Museus de França declarava 1200 na categoria de “museus de França”, mas além desta categoria alguns guias publicam listas que vão dos 5000 aos 10.000 museus. Dificilmente se encontra uma comunidade que não queira ter o “seu” museu, como sinal de afirmação identitária e, o que não é menos importante, como centro de atração turística suscetível de gerar visitantes e, portanto, repercussões comerciais.

No decorrer da década de 80, o número de galerias de arte conheceu um grande aumento, tendo praticamente duplicado. Em 1988, o número de galerias elevou-se par 848. Muitas destas galerias tiveram uma duração muito breve, o que fez com que, sendo a sua taxa de mortalidade compensada por uma taxa de natalidade elevada, o seu número permaneça relativamente estável. A edição do guia Bill’art 2004 apresentava 590 galerias de arte moderna e contemporânea e estimava cerca de 6000 lugares “abertos ao público com a vocação de apresentar todas as formas de arte”. Galerias que, de facto, continuam a multiplicar-se ao mesmo tempo que o mercado da arte, saindo dos limites do Ocidente, se mundializa. Presentemente são milhares de galerias e de lugares de arte que apresentam em Xangai, São Paulo, Istambul, Abu Dhabi, milhares de exposições e dezenas de milhares de obras de artistas, eles próprios agora inúmeros.

Vaga que revela ainda a multiplicação de bienais, salões e feiras de arte internacional em todo o mundo. Depois da Documenta de Kassel e da Bienal de Veneza, contamos agora com mais de cem bienais, que apresentam centenas e milhares de artistas. Mais de 260 feiras são anualmente organizadas em todo o mundo. A Ásia participa já em pé de igualdade: a feira Art Stage Singapore reuniu em 2012, 140 galerias e o HK Art, de Hong-Kong, o dobro. Às quais se junta as feiras paralelas ou em “off”, que juntam galerias mais jovens, menos estabelecidas e que apresentam artistas menos conhecidos e mais baratos. Em Paris, em 2009,a FIAC apresentou 203 galerias de 210 países, e ainda mais 4 feiras off e 73 exposições. Em 2010, a Art Basel Miami recebeu 2000 artistas, 29 países e 250 galerias, enquanto uma multitude de feiras e de manifestações paralelas se desenrolava um pouco por todo o lado na cidade. Feiras que se organizam agora em rede, e que funcionam como multinacionais de arte: Art Basel, depois de Basileia investiu em Miami e Hong-Kong, e a feira inglesa Frieze estendeu-se a Nova Iorque. E o processo de expansão ampliou-se ainda com VIP Art Fair, a primeira feira de arte em linha que reuniu em 2011, durante uma semana, 130 galerias internacionais que apresentaram 7500 obras de 2000 artistas.


Com o capitalismo artístico, o pequeno mundo da arte à antiga deu lugar à híper-arte, superabundante, proliferante e globalizada, onde desaparecem as distinções entre arte, negócios e luxo. Aqui, a profusão (obras e manifestações) nada tem a ver com esbanjamento da “parte maldita”, cara a Georges Bataille; ela mostra a nova face do capitalismo artístico que, ao adaptar-se com eficácia à multiplicação planetária das grandes fortunas e de colecionadores, de investidores e outros especuladores, criou um sistema de comercialização e de difusão da arte à escala internacional.

Como escrever acerca da arte contemporânea


Orit Gat é uma escritora e editora colaboradora da Rhizome. Ela vive em Nova York, EUA. O artigo de Orit Gat na revista frieze, Edição 167, Novembro-Dezembro de 2014, acerca do novo livro de Gilda Williams sobre como escrever sobre arte contemporânea.

Vamos supor que há uma crise na escrita sobre arte. A última década viu uma série de ensaios, livros, painéis de discussão e eventos que debatem o estado da crítica, a morte do crítico e o desaparecimento das publicações de arte. Então, vamos imaginar que a crise: todas as análises simplesmente descrevem o que está em vista, em vez de dizer nada sobre isso; ensaios para catálogos nunca produzem novos conhecimentos, só servem para promover o valor de mercado de um artista; e a linguagem da imprensa é muitas vezes ridicularizada como oca. Todas essas mesas-redondas que trazem os críticos de volta dos mortos e ao pódio refletem uma crescente ansiedade sobre as possibilidades comunicativas da escrita.

Gilda Williams preocupa-se com todos os itens acima. Chamá-lo por qualquer nome – a sua ligeira depreciação “art-patois", mística" falar em línguas ", ou o simples velho “Artspeak” – é tudo de difícil compreensão para Williams. Ela propõe-se corrigir esse problema num novo livro, como escrever sobre Arte Contemporânea (publicado pela Thames & Hudson), que está estruturado para desembaraçar a confusão linguística que supostamente se estabeleceu. Em inúmeros pontos de vista, ela descreve o campo, seus jogadores-chave e suas inclinações particulares (citando, entre outras coisas, uma série de artigos frieze), e move-se então para discutir o estilo, o trabalho de lançar e as diferentes formas de escrita no contexto da arte contemporânea. A metodologia de Williams é impecável. Ela traz cerca de 50 exemplos de textos, que vão desde exposições comentários para trechos de ensaios para catálogos e declarações do artista, e analisa-os atentamente. Ela destaca o uso de verbos ativos, aponta substantivos específicos, desconstrói estruturas gramaticais complexas e, apesar de tudo, parece ler estas amostras mais de perto do que ninguém fez antes. Num estilo confiante – “menos discutir um certo tubarão flutuando em um tanque, ou aquele objeto de porcelana no banheiro assinado "R. Mutt", nunca assume o seu leitor lembrar-se ou viu a arte – Williams salienta que a abordagem essencial para escrever sobre arte deve ser para responder a três questões, facilmente resumidas: (1) O que é? (2) O que isso significa? e (3) Então, o que? Esta fórmula destina-se a responder ao que Williams vê como o paradoxo inerente a escrever sobre arte – “estabilizar a arte através de riscos de linguagem matando o que faz a arte valer a pena escrever sobre, em primeiro lugar ".

No mundo Williams descreve, o crítico da velha escola desapareceu, substituído por um "pau para toda obra", mas ela não se debruça sobre a origem deste desaparecimento – a realidade de escrever sobre arte, que é mal remunerada, essencialmente exercida por freelance e uma luta constante para manter uma ética em cheque – ou das suas consequências. Enquanto Williams reconhece que os escritores estão implicados de alguma forma na maior economia da arte, a conclusão que ela desenha é que "os críticos de hoje não são tão poderosos quanto foram [...] Ocupando quase a nível económico a base da pirâmide arte-indústria, os críticos são menos afetados por ciclos de expansão e contração. Quando as bolhas de arte estouram, arte-escritores muitas vezes têm mais para escrever sobre e nada de especial para se preocupar. Como Boris Groys afirma, já que ninguém lê ou investe em critica de arte de qualquer maneira, os seus autores podem-se sentir libertos para ser tão sincero como quiserem, por escrito, com poucas ou sem amarras. "Será que uma posição de poder escravizar um escritor? Não necessariamente. Na verdade, ela poderia dar ao crítico mais tração e apoiar a sua / seu papel como alguém que deve - e, potencialmente, poderia - manter o mercado em cheque. Quanto à avaliação do Groys que ninguém lê a crítica mais, à conclusão de que deve ser elaborada a partir dele é que o que precisamos urgentemente agora não é mais escrita, mas a escrita mais crítica.

Nenhum livro poderia ensinar um escritor a ser interessante, opinativo, envolvido ou apaixonado. E esse não é o presente objetivo. O seu objetivo é pegar numa disciplina que Williams concebe como altamente desregulamentada – e profissionaliza-la. Ao delinear exatamente como um catálogo do leilão difere da etiqueta da parede de um museu e de uma revista, até o vocabulário e tom que cada um deve acomodar, Williams dá uma visão para o funcionamento interno de muitos diferentes setores: academia, casas de leilão e imprensa profissional. Tendo em conta a ascensão de inúmeros programas académicos sobre a escrita de arte, um livro sobre o assunto poderia ser visto como uma entidade democratizante, mas a diferença entre um livro e uma escola é a interação. Mesmo que se recue na ideia de precisar de um mestrado em crítica de arte, a fim de escrever para uma revista  outro exemplo de um mundo da arte em que os termos de participação são um grau secundário, muitas vezes acompanhada de um deficit académico que poucos podem justificar financeiramente  pelo menos os programas permitem aos alunos um sentimento de comunidade. Quer se encontre num programa de pós-graduação ou não, é a participação no discurso e interesse em seus contemporâneos que faz de alguém um crítico. A técnica de Williams é casada com a obra de arte  deixa o trabalho guiar-te – que os riscos resultantes da escrita de arte estereotipada que negligencia o contexto intelectual a partir do qual a obra de arte emerge.

A escrita sobre arte não é uma indústria em crise – muito pelo contrário. As publicações de arte tornaram-se um reino complementar ao trabalho, não aquele que simplesmente descreve. A expansão física e conceitual do que a arte pode ser também produziu uma paisagem de publicação com um positivo tudo vai ethos, que devemos promover, ao invés de sufocar. Escrever sobre arte tornou-se um espaço em que os bons escritores podem discutir qualquer coisa, sublime ou mundano, da política às gravatas, tendências filosóficas para memes de internet. Enquanto Williams afirma que a escrita sobre arte precisa ser fundamentada em descrições da arte  o "o que está lá"  eu diria que este campo alargado de publicação é o que faz o material de leitura vibrante, se é ou não nunca menciona que esta ou aquela instalação de vídeo tem duas telas e um tempo total de 15 minutos. A escrita sobre arte deve ser acentuada e opinativa, mas também, por vezes frágil e errática. A escrita sobre arte não precisa ser mais profissionalizada  ela precisa ser concebida como um espaço para experimentar e expandir. Estas formas mais retrógradas da escrita criam um mundo da arte que é mais perceptivo, onde o que lemos é igual na sua ambição intelectual ao trabalho para o qual olhamos.

segunda-feira, novembro 24, 2014

Quatro lógicas principais do capitalismo artístico

Os traços gerais que especificam o capitalismo artístico podem ser reduzidos a quatro lógicas principais:

Primeira: a integração e generalização da ordem do estilo, da sedução e da emoção nos bens destinados ao consumo comercial. O capitalismo artístico é o sistema económico que funciona para a estetização sistemática dos mercados de consumo, dos objetos e do contexto quotidiano. Agora o paradigma estético já não é exterior às atividades industriais e comerciais, mas incorporado nestas. Resulta de um modo de produção marcado pela osmose ou pela simbiose entre racionalização do processo produtivo e do trabalho estético, espirito financeiro espirito artístico, lógica contabilística e lógica imaginaria. Nesta configuração, o trabalho artístico é mais frequentemente coletivo, confiado a equipas com uma autonomia criativa limitada, enquadrado por gestores e integrado no seio de estruturas hierárquicas mais ou menos burocráticas. O facto é que se trata de criar beleza e espetáculo, emoção e entertainment para conquistar mercados. Neste sentido, é uma estratégia ou uma “engenharia do encantamento” que caracteriza o capitalismo artístico.

Segunda: uma generalização da dimensão empresarial das indústrias culturais e criativas. Agora, os mundos da arte, constituem cada vez menos um “mundo à parte” ou uma “economia às avessas” são regidos pelas leis gerais da empresa e da economia de mercado, com os seus imperativos de concorrência e de rentabilidade. Com o capitalismo artístico triunfa o management das produções culturais. Mesmo os museus devem ser geridos como empresas, implementando políticas de comercialização e de comunicação, fazendo aumentar o número de visitantes e encontrar novas formas de receita. No capitalismo artístico as obras são julgadas em função dos seus resultados comerciais e financeiros, muito mais do que pelas suas características propriamente estéticas.

Terceira: uma nova superfície económica dos grupos comprometidos nas produções dotadas de uma componente estética. O que era uma esfera marginal tornou-se num setor importante da atividade económica envolvendo capitais gigantescos e realizando negócios de verbas colossais. Já não estamos no tempo das pequenas unidades de produção de arte mas no de mastodontes da cultura, dos gigantes transnacionais das indústrias criativas, da moda e do luxo, tendo o globo como mercado.


Quarta: o capitalismo artístico é o sistema no qual são desestabilizadas as antigas hierarquias artísticas e culturais, ao mesmo tempo que se interpenetram as esferas artísticas, económicas e financeiras. Onde funcionavam universos heterogéneos desenvolvem-se, agora, processos de hibridação que misturam de uma maneira inédita estética e indústria, arte e marketing, magia e negócio, design e cool, arte e moda, arte e divertimento.

quarta-feira, novembro 19, 2014

Arte business

Se a idade hipermoderna do capitalismo, que é a do mundo desde há cerca de três décadas, é a da planetarização e financeirização, da desregulação e da excrescência das suas operações, também é a que está marcada por uma outra espécie de inflação a inflação estética. Não são apenas as megalópoles, os objetos, a informação, as transações financeiras que são envolvidas numa escalada hiperbólica, mas o próprio domínio estético. Eis os mundos da arte envolvidos por sua vez nas redes do híper, o capitalismo contemporâneo que incorpora em grande escala as lógicas do estilo e do sonho, da sedução e do divertimento, nos diferentes setores do universo consumista. Se há uma bolha especulativa, existe um outro tipo de bolha cujo extremo inflado não conhece, no entanto, nem crise nem crash, com a exceção notável do domínio circunscrito do mercado de arte contemporâneo, cuja bolha especulativa, como vimos, poderia explodir em diferentes momentos, vivemos o tempo do boom estético sustentado pelo capitalismo do hiperconsumo.

Com a época hipermoderna exige-se um novo período estético, uma sociedade sobre-estetizada, um império onde os sois da arte nunca se põem. Os imperativos do estilo, da beleza, do espetáculo adquiriram uma tal importância nos mercados de consumo, transformaram de tal maneira a elaboração dos objetos e dos serviços, as formas de comunicação, de distribuição e do consumo que se torna difícil não reconhecer o advento de um verdadeiro modo de produções estética que chega, agora, à maturidade. Chamamos este novo estado da economia comercial liberal: capitalismo artístico ou capitalismo criativo, transestético.

No momento da financeirização da economia e dos seus danos sociais, ecológicos e humanos, a própria ideia de um capitalismo artístico pode parecer oximórica e mesmo radicalmente chocante. Contudo, este é o rosto do novo mundo que, ao esbater as fronteiras e as antigas dicotomias, transforma a relação da economia com a arte como Warhol transformara a relação da criação artística com o mercado, defendendo uma art business. Depois da época moderna das disjunções radicais, temos a idade hipermoderna das conjunções, desregulações e hibridações, onde o capitalismo artístico constitui uma figura particularmente emblemática.

A importância das lógicas mercantis no mundo da arte não é nova, mas evidentemente, no momento da globalização, é um novo patamar que se atinge, como o testemunham particularmente o crescimento dos investimentos dos colecionadores e os aumentos vertiginosos a que chegam os preços das obras. A arte aparece cada vez mais como uma mercadoria entre outras, como um tipo de investimento do qual se espera uma alta rentabilidade. A idade romântica da arte deu lugar a um mundo no qual o preço das obras é mais importante e mediatizado do que o valor estético: é agora o preço comercial e o mercado internacional que consagram o artista e a obra de arte. Estamos no momento da “arte business” que vê triunfar as operações de especulação, de marketing e de comunicação. Se o capitalismo incorporou a dimensão estética, esta encontra-se cada vez mais canalizada ou orquestrada por mecanismos financeiros e comerciais. Donde o sentimento muitas vezes partilhado de que quanto mais o capitalismo artístico domina, menos haverá arte e mais haverá mercado.

quinta-feira, novembro 13, 2014

Arte para o mercado

Uma quarta fase de estetização do mundo é estabelecida, remodelada no essencial, por lógicas de comercialização e de individualização extremas. A uma cultura modernista, dominada por uma lógica subversiva em guerra contra o mundo burguês, sucede um novo universo no qual as vanguardas são integradas na ordem económica, aceites, procuradas, apoiadas pelas instituições oficiais. Com o triunfo do capitalismo artístico, os fenómenos estéticos já não regressarão aos pequenos mundos periféricos e marginais integrados nos universos de produção, de comercialização e de comunicação dos bens materiais, constituem imensos mercados moldados por gigantes económicos internacionais.

No momento da estetização dos mercados de consumo, o capitalismo artístico multiplica os estilos, as tendências, os espetáculos, os lugares de arte, lança continuamente novas modas em todos os setores e cria em grande escala o sonho, o imaginário, emoções; artializa o domínio da vida quotidiana no mesmo momento em que a arte contemporânea, por seu lado, está comprometida num largo processo de desdefinição. Uma desdefinição da arte que, no entanto, implica uma forma inédita de experiencia estética. É um universo de superabundância ou de inflação estética que se combina aos nossos olhos: um mundo transestético, uma espécie de hiperarte em que a arte se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da vida vulgar. O domínio do estilo e da emoção passou ao regime híper: isto não quer dizer beleza perfeita e acabada, mas generalização das estratégias estéticas com fim comercial em todos os setores das indústrias de consumo.

Uma hiperarte igualmente no que já não simboliza um cosmos nem exprime narrativas transcendentes, já não é a linguagem de uma classe social, mas funciona como estratégia de marketing, valorização distrativa, jogos de sedução sempre renovados para captar os desejos do novo consumidor hedonista e aumentar o volume de negócios das marcas. Estamos no momento do estado estratégico e comercial da estetização do mundo, na idade transestética.

Cada vez mais as indústrias culturais ou criativas funcionam em modo hiperbólico, com filmes com orçamentos colossais, campanhas de publicidade criativas, séries de televisão diversificadas, emissões de televisão que misturam o erudito e o music-hall, arquiteturas-esculturas de grandes efeitos, videoclipes delirantes, parques de diversão gigantescos, concertos pop com encenações “extremas”. Nada mais escapa à rede da imagem e do divertimento e tudo o que é espetacular cruza-se com o imperativo comercial: o capitalismo artístico criou um império transestético fecundante onde se misturam design e star system, criação e entertainment, cultura e show business, arte e comunicação, vanguarda e moda. Uma hipercultura comunicacional e comercial que vê degradar-se as oposições clássicas da famosa “sociedade do espetáculo”: o capitalismo criativo transestético que não funciona com a separação, com a divisão, mas com o cruzamento, com a trama dos domínios e dos géneros. O antigo reino do espetáculo desapareceu, foi substituído pelo hiperespetáculo que consagra a cultura democrática e comercial do divertimento.

As estratégias comerciais do capitalismo criativo transestético já não poupam nenhuma esfera. Os objetos comuns são invadidos pelo estilo e pelo look, muitos deles tornam-se acessórios de moda. Os designers, os artistas plásticos, os criadores de moda são convidados a redesenhar o aspeto dos produtos básicos industriais e dos templos de consumo. As marcas de moda do grande público copiam os códigos do luxo. As lojas, os hotéis, os bares e os restaurantes investem nas suas imagens, na decoração, na personalização dos seus espaços. O património é reabilitado e encenado à maneira dos cenários cinematográficos. Os cenários urbanos são retocados, encenados, “disneyficados” com o intuito do consumo turístico. A publicidade quer ser criativa e os desfiles de moda parecem performances. As arquiteturas de imagens florescem, valem por si mesmas, pela sua atração, pela sua dimensão espetacular e funcionam como vetor promocional nos mercados concorrenciais do turismo cultural.

Os termos utilizados para designar as profissões e as atividades económicas têm igualmente a marca da ambição estética: os jardineiros tornaram-se paisagistas, os cabeleireiros hair designers, as floristas artistas florais, os cozinheiros criadores culinários, os tatuadores artistas tatuadores, os joalheiros artistas joalheiros, os costureiros diretores artísticos, os construtores de automóveis “criadores de automóveis”. Frank Gehry é celebrado por todo o lado como o arquiteto artista. Mesmo alguns business men são descritos como “artistas visionários” (Steve Jobs). Enquanto se desencadeiam as competições económicas, o capitalismo trabalha para construir e difundir uma imagem artística dos seus atores, para artializar as atividades económicas. A arte tornou-se um instrumento de legitimação das marcas e das empresas do capitalismo.

A extraordinária extensão das lógicas transestéticas vê-se também no plano geográfico. Estamos no momento do capitalismo globalizado a impulsar uma estilização dos bens de consumo de massas que já não está circunscrita ao Ocidente. Nos cinco continentes estão a trabalhar indústrias criativas, criando produtos com estilo, moda, entertainment, uma cultura de massas mundializada.

Mas o processo de estetização hipermoderno extravasa em muito as esferas da produção: conquistou o consumo, as aspirações, os modos de vida, a relação com o corpo, o olhar sobre o mundo. O gosto pela moda, pelos espetáculos, pela música, pelo turismo, pelo património, por cosméticos, pela decoração da casa generalizou-se em todas as camadas da sociedade. O capitalismo artístico impulsionou o reino do hiperconsumo estético no sentido do consumo superabundante de alguns estilos, mas mais largamente, no sentido etimológico da palavra, dos gregos, de sensações e de experiencias sensíveis.

O capitalismo levou não tanto a um processo de empobrecimento ou de delinquência da existência estética mas à democratização de massas de um homo aestheticus de um género inédito. O individuo transestético é reflexivo, eclético e nómada: menos conformista e mais exigente do que no passado, aparece ao mesmo tempo como um “drogado” do consumo, obcecado com o descartável a celeridade, os divertimentos fáceis.


À estetização do mundo económico responde um estetização do ideal de vida, uma atitude estética para com a vida. Já ninguém quer viver e sacrificar-se por princípios e bens exteriores a si, mas inventar-se a si mesmo, criar as suas próprias regras com vista a uma vida melhor, imensa, rica em emoções e espetáculos.

segunda-feira, novembro 10, 2014

Arte pela arte

O terceiro grande momento histórico que organiza as relações da arte e da sociedade corresponde à idade moderna no Ocidente. Encontrando a sua plenitude a parir dos séculos XVIII e XIX, coincide com o desenvolvimento de uma esfera artística mais complexa, mais diferenciada, libertando-se dos antigos poderes religiosos e nobiliários. Enquanto os artistas se emancipam progressivamente da tutela da Igreja, da aristocracia e, depois, da encomenda burguesa, a arte impõe-se como um sistema de alto grau de autonomia ao possuir as suas instâncias de seleção e de consagração (academias, salões, teatros, museus, comerciantes, colecionadores, editoras, críticos, revistas), as suas leis, valores, e os seus próprios princípios de legitimidade. À medida que o campo da arte se autonomiza, os artistas reivindicam em voz alta uma liberdade criativa para obras que apenas têm de prestar contas a si próprias e que deixam de se vergar aos pedidos que vêm do “exterior”. Uma emancipação social dos artistas muito relativa, na medida em que é acompanhada por uma dependência de um novo género, a dependência económica em relação às leis do mercado.

Mas enquanto a arte propriamente dita evidência a sua orgulhosa soberania no desprezo pelo dinheiro e no ódio pelo mundo burguês, constitui-se uma “arte comercial” que, voltada para o lucro, para o sucesso imediato e temporário, tende a tornar-se um mundo económico como os outros ao adaptar-se à exigência do público e ao oferecer produtos “sem riscos”, de obsolescência rápida. Tudo opõe estes dois universos da arte: a sua estética, os seus públicos, assim como a sua relação com o “económico”. A idade moderna organiza-se na oposição radical entre arte e comercial, cultura e industria, arte e divertimento, puro e impuro, autêntico e Kitsch, arte de elite e cultura de massas, vanguardas e instituições. Um sistema de dois modos antagónicos de produção, de circulação e de consagração, que se desenvolveu no essencial dentro dos estritos limites do mundo ocidental.

Esta configuração social histórica traz consigo uma reviravolta geral dos valores, arte investida de uma missão mais alta do que nunca. No fim do século XVIII, Schiller afirma que é pela educação estética e prática das artes que a humanidade pode avançar para a liberdade, para a razão e para o Bem. E para os românticos alemães, o belo, via de acesso ao Absoluto, é posto, com arte, no cume da hierarquia dos valores. A idade moderna constitui o quadro no qual se efetuou uma excecional sacralização da poesia e da arte, únicas reconhecidamente capazes de exprimir as verdades mais fundamentais da vida e do mundo. Enquanto, no seguimento do criticismo kantiano, a filosofia deve renunciar à revelação do Absoluto e a ciência deve concentrar-se com enunciar as leis da aparência fenoménica das coisas, atribui-se à arte o poder de fazer conhecer e contemplar a própria essência do mundo. Agora, a arte é posta acima da sociedade, traçando um novo poder espiritual laico. Não uma esfera destinada a dar o consentimento, mas o que revela as verdades últimas que escapam à ciência e à filosofia: um acesso ao Absoluto, ao mesmo tempo que um novo instrumento de salvação. O poeta entra em concorrência com o padre e toma o seu lugar em matéria de revelação última do ser: a secularização do mundo foi o trampolim da religião moderna da arte.

Deve acrescentar-se, no entanto, que a sacralização da arte realizada pelo romantismo e pelo simbolismo foi seguidamente combatida ferozmente por diversos movimentos vanguardistas, como o construtivismo, o dadaísmo e o surrealismo.

Sacralização da arte que se ilustra tão bem na invenção e desenvolvimento da instituição dos museus. Ao extrair as obras do seu contexto cultural de origem, ao cortar o seu uso tradicional e religioso, ao não limitá-las ao uso privado e à coleção pessoal, mas oferecendo-as ao olhar de todos, o museu encena o seu valor especificamente estético, universal e intemporal; transforma objetos práticos ou culturais em objetos estéticos para serem admirados, contemplados por si próprios, pela sua beleza que desafia o tempo. Lugar de revelação estética destinado a fazer conhecer obras únicas, insubstituíveis, inalienáveis, o museu tem a responsabilidade de as tornar imortais.

Enquanto dessacraliza os objetos culturais, dota-os, por outro lado, de um estatuto quase religioso, as obras-primas devem estar isoladas, protegidas, restauradas, como testemunhos do génio criativo da humanidade. Espaço de adoração consagrado à elevação espiritual do público democrático, o museu está marcado por ritos, solenidade, por um certo ambiente sacro (silencio, recolhimento, contemplação): impõe-se como um templo laico da arte.

Sacralização do museu que ao mesmo tempo desencadeou a ira das correntes de vanguarda denunciando a instituição simbólica pela excelência da arte antiga a destruir: “Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas (…). Museus cemitérios!...” (Filippo Tommaso Marinetti, “Manifesto Futurista” em Le Figaro, de 1909).

A arte supostamente proporciona o êxtase do infinitamente grande e do infinitamente belo, faz contemplar a perfeição, ou seja, abre as portas da experiencia do absoluto, de algo para além da vida comum. Tornou-se o lugar e o próprio caminho da vida ideal outrora reservada à religião. Nada é mais elevado, mais precioso, mais sublime do que a arte, a qual permite, graças ao esplendor que produz, suportara a hediondez do mundo e a mediocridade da existência. A estética substituiu a religião e a ética: a vida apenas vale pela beleza, diversos artistas afirmam a necessidade de sacrificar a vida material, a vida política e familiar à vocação artística: trata-se, para eles, de viver pela arte, consagrar a sua existência à sua grandeza.

Ao afirmar a sua autonomia os artistas modernos insurgem-se contra as convenções, investem incessantemente em novos objetos, apropriam-se de todos os elementos do real para fins puramente estéticos. Impõe-se o direito de tudo estilizar, de tudo transmutar em obra de arte, sejam o medíocre, o trivial, o indigno, as máquinas, as colagens resultantes do acaso, o espaço urbano era da igualdade democrática tornou possível a afirmação de igual dignidade estética de todos os temas, a liberdade soberana dos artistas de qualificar como arte tudo o que criam e expõem. Perante a soberania absoluta do artista já não há realidade que não possa ser transformada em obra e perceções estéticas. Depois de Apollinaire e Marinetti, os surrealistas lançam o lema “A poesia está em toda a parte”. Ao romper com toda a função heterogénea da arte, ao afirmar-se na transgressão dos códigos e das hierarquias estabelecidas, a arte moderna pôs em marcha uma dinâmica de estetização sem limites do mundo, qualquer objeto podia ser tratado de um ponto de vista estético, ser anexado, absorvido na esfera da arte somente por decisão do artista.

Mas a ambição dos artistas modernos foi muito mais além do horizonte exclusivamente artístico. Com as vanguardas nasceram as novas utopias da arte, tendo esta como objetivo último ser um vetor de transformação das condições de vida e das mentalidades, uma força política ao serviço da nova sociedade e do “homem novo”. Em oposição à arte pela arte e ao simbolismo, Breton declara que é “um erro considerar a arte como um fim” e Tatline proclama a: “A arte morreu! Viva a arte da máquina” ao recusar a autonomia da arte, não reconhecendo nenhum valor à estética decorativa “burguesa”, os construtivistas proclamam a glória da técnica e o primado dos valores materiais e sociais sobre os valores estéticos. O belo funcional deve eliminar o belo decorativo e as construções utilitárias (imoveis, vestuário, mobiliário, objetos…) substituir-se ao luxo ornamental, sinónimo de esbanjamento decadente. A arte já não deve ser separada da sociedade e apenas um agradável passatempo para os ricaços: a estética do engenheiro deve poder reajustar num “design total” a integralidade do ambiente quotidiano dos homens. Já não os projetos de embelezamento do quadro de vida, mas “a máquina para habitar” (Le Corbusier), respondendo às necessidades práticas dos homens e a custo mínimo. A era moderna vê assim afirmar-se, por um lado, a “religião” da arte, por outro, um processo de desestetização produzido muito particularmente pela arquitetura e pelo urbanismo, que condenam o ornamento e o embelezamento artificial do edifício, preconizando construções geométricas totalmente despojadas, a substituição da composição harmoniosa dos jardins clássicos por “espaços verdes”.

Ao mesmo tempo, em diversas correntes surge um novo interesse pelas artes ditas menores. Enquanto se multiplicam as críticas dirigidas à indústria moderna – acusada de disseminar a fealdade e a uniformidade – florescem os projetos de embelezamento da vida quotidiana de todas as classes, a vontade de introduzir a arte por toda a parte e em todas as coisas pela regenerescência e difusão das artes decorativas. De Ruskin à Arte Nova, William Morris ao movimento Arts & Crafts, e, depois, à Bauhaus, não faltam correntes modernistas que denunciaram “a conceção egoísta da vida de artista” (Van de Velde), a distinção nefasta entre “Grande Arte” e “artes menores”, preconizando a igual dignidade de todas as formas de arte, uma arte útil e democrática sustentada pela reabilitação das artes aplicadas, das artes industriais, das artes de ornamentação e de construção. Já não se quer quadros e estátuas reservados a uma classe social alta, mas uma arte que investe no mobiliário, nos papéis de parede, nas tapeçarias, nos utensílios de cozinha, nos têxteis, nas fachadas arquitetónicas, nos cartazes. Com a época democrática, a arte assume como missão salvar a sociedade, regenerar a qualidade da casa e a felicidade do povo, “mudar a vida” de todos os dias: o Modern Style foi batizado por Giovanni Beltrami como “socialismo della Belleza”.

A estetização própria da idade moderna seguiu, assim duas grandes vias. Por um lado, a estetização radical da arte pura, da arte pela arte, de obras libertas de todos os fins utilitários, não tendo outros fins senão elas próprias. Por outro, precisamente no oposto, os projetos de uma arte revolucionária “para o povo”, uma arte útil que se faz sentir nos mais pequenos detalhes da vida quotidiana e orientada para o bem-estar da maioria.


Com efeito, o universo industrial e comercial foi o principal artesão da estetização moderna do mundo e da sua expansão democrática.

terça-feira, novembro 04, 2014

Arte para os príncipes

Herdeiro da Antiguidade clássica, pela excecional importância deste período na história da arte, as suas obras constituem um modelo de perfeição estética da Renascença até aos nossos dias. São impostos os princípios de harmonia, de equilíbrio das proporções, de simetria, de justa medida. O processo de estetização já não se separa do projeto de purificação das formas, da aspiração a uma beleza idealizada e equilibrada, sinónimo de elegância e de graça. A arte não imita a natureza, ela deve sublimá-la, transfigurá-la exprimindo a beleza ideal, a perfeição harmoniosa que é a do próprio cosmos.

O humanismo da Renascença reabilita e reivindica expressamente, no fim da Idade Média surge um segundo momento que se estende até ao séc. XVIII. Constitui as premissas da modernidade estética com o aparecimento do estatuto de artista separado do de artesão, com a ideia do poder criativo de o artista-génio assinar as suas obras, com a unificação das artes particulares no conceito unitário de arte no seu sentido moderno, aplicando-se a todas as belas-artes, com obras destinadas a agradar a um público afortunado e instruído e já não simplesmente a comunicar os ensinamentos religiosos e a responder às exigências dos dignatários da Igreja. A dimensão propriamente estética da arte ganha relevo, o artista deve esforçar-se por eliminar todas as imperfeições e procurar imagens que estejam de acordo com o que há de mais belo, de mais harmonioso na natureza. Com a emancipação progressiva dos artistas relativamente às corporações, estes vão beneficiar, através dos seus contratos com os patrocinadores, de uma margem de iniciativa desconhecida até então: a aventura da autonomização do domínio artístico e estético está em marcha.

  Este momento secular é contemporâneo da vida de corte, do aparecimento da moda e dos seus jogos de elegância, dos tratados de “boas maneiras”, mas também de uma arquitetura que oferece a própria imagem do refinamento e da graça, de urbanismo de inspiração estética, de jardins que parecem quadros com esplanadas, esculturas, lagos, fontes, vastas perspetivas, destinados a encantar e a maravilhar o olhar. Não só apenas a commoditas, mas a graça das formas harmoniosas, o prazer estético, a venustas (Alberti), em cidades agradáveis, belas, “de aparência aprazível e de agradável estadia” (Francesco di Giorgio Martini). Os artistas são solicitados e convidados para as cortes europeias para criar cenários magníficos, ornamentar o interior de castelos e a planificação de parques. As igrejas, querendo seduzir e atrair os fieis, oferecem, com o período barroco, um espetáculo teatral exuberante com fachadas sobrecarregadas de esculturas, estruturas que desaparecem sob as ornamentações, efeitos de ótica, jogos de sombra e luz, baldaquinos, tabernáculos, púlpitos, custódias, cálices, cibórios abundantemente decorados: é exibida toda uma arte exuberante para criar um espetáculo grandioso, valorizar a beleza da decoração e esplendor dos ornamentos. Os monarcas, os príncipes, as classes aristocráticas lançam-se em grandes que se destinam a tornar as suas cidades e as suas residências mais admiráveis, mandam edificar castelos marcados pela elegância de estilo, constroem palácios, hotéis, villas sumptuosas, enquadrados por parques imensos cheios de estátuas e confiados aos melhores arquitetos. Remodelam cidades segundo um ponto de vista estético, criando praças compostas por edifícios alinhados de fachadas harmoniosas, ruas que oferecem grandes efeitos de perspetivas o embelezamento das cidades tornou-se um objetivo político de grande importância. Impõe-se uma “arte urbana”, uma encenação teatral da cidade e da natureza, enobrecendo o ambiente habitado e aumentando o prestígio, a magnificência, a glória de reis e príncipes.


A partir da Renascença, a arte, a beleza, os valores estéticos adquiriram um valor, uma dignidade, uma importância social novos, o que é testemunhado pelo planeamento urbano, pelas arquiteturas, jardins, mobiliário, obras de cristal e faiança, pelo nu em pintura e escultura, pelos ideais da harmonia e proporção. Gosto pela arte e vontade de estilização do enquadramento da vida que funciona como um meio de autoafirmação social, maneira de fazer marcar o estatuto e ampliar o prestígio dos mais poderosos. A estetização aristocrática, durante todo este ciclo, o intenso processo de estetização (elegância, refinamento, graça das formas) em vigor nas altas esferas da sociedade não é impulsionada por lógicas sociais, estratégias políticas da teatralização do poder, o imperativo aristocrático de representação social e o primado das competições pelo estatuto e pelo prestígio constitutivo da sociedade holística em que a importância da relação dos homens vence a da relação dos homens com as coisas.